O TEMPO AMARELO[i]
L. C. Vinholes
Dezembro de 1959
Nota 01: artigo encomendado pela revista The Geiditsu-shincho = A Nova Revista de Arte.
Nota 02: mais um achado na memória do meu velho computador, artigo de há sessenta e dois anos e que, agora 17.08.2024, torno público para os que não leram a revista The Geiditsu-shincho, de 1959.
Há muito que não assistimos a uma apresentação de dança moderna que, realmente, pudesse ser considerada como dá mais autêntica vanguarda. Chamou nossa atenção o recital que Masami Kuni e seu grupo deram, dia 21 de novembro, no Nihon Toshi Center Hall, de Tokyo, apresentando pela primeira vez o Tempo Amarelo. Chegamos à conclusão de que o discípulo dileto de Mary Wigman[ii], cada vez mais realiza, na prática, o que escutávamos na teoria de sua arte, quando o conhecemos em 1956, no ciclo de conferências em São Paulo.
O Tempo Amarelo compõe-se de nove movimentos: 1 - A Category, 2 - Love Disposition, 3 - Another Cetegory, 4 - Bargain Sale Counter, 5 - Another Category, 6 - Paceful Use, 7 - Another Category, 8 - Farewell Service e 9 - The Last Category.
A nosso ver a obra divide-se em valores de caráter distinto que grupamos em duas séries: a dos movimentos ímpares e a dos pares. As “cinco categorias”, desintegrando, desenvolvendo, multiplicando, dividindo, transformando, metamorfoseando e integrando um elemento de oito figuras, as dançarinas (Nº 1), foram o que mais convenceu a quem quisesse ver dança moderna, concreta, na sua mais alta acepção.
Nº 1 - A Category
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Aplaudimos em especial modo a genialidade e riqueza coreográfica em 1, 3 e 9. O movimento Bargain Sale Counter foi aquele que mais se distanciou do caráter marcante da criação de Masami Kuni, mas tanto nele como nos demais - 2, 6 e 8 -, encontramos uma caraterística que pode ter sido intencional por parte de Kuni: realçar e fazer contraste com as “categorias” e justificar o título O Tempo Amarelo. Há uma história contínua nos títulos dos movimentos Love Disposition, Bargain Sale Counter, Peaceful Use e Farewell Service. Nos dois últimos, abstraindo o que seus títulos queiram sugerir, são movimentos que podem ser vistos como “dança criativa”, dada a contextura coreográfica que apresentam.
Quanto à música, achamos que melhor elaborada cumpriria melhor sua função e que devia dispensar os efeitos de estereofonia, de caráter pseudo espacial. A música para dança concreta, deve ser a mais discreta possível, ter um papel secundário, se usarmos a expressão vulgar.
A constante rítmica na parte musical cria um ambiente mágico, em desacordo com o espírito da “dança criativa”. Compreendemos, entretanto, que, com a constante rítmica ou ritmo unário - ostinato[iii] -, a intenção por parte do criador da dança é superar os efeitos dos ritmos binários e ternários, integrando-os.
Sob o ponto de vista estético-filosófico contemporâneo de vanguarda, a obra de Masami Kuni apresenta elementos que comprovam em quanto, na sua própria realização, ela vem superando os valores dualísticos da filosofia racionalista. Ela cria um ambiente de polaridade, de aparência nova e escapa a qualquer percepção metodológica ou esquematizadora. A presença constante do imprevisto, a criação permanente, a unidade do material usado, rico em possibilidades e a ausência de planejamento preestabelecido, sensível na obra, são suas características.
No jogo de movimentos para a criação de espaço, se concretizam a cada momento as categorias de presente, passado e futuro do tempo dos próprios movimentos. Espaço e tempo surgem como um todo, um novo valor, que exige de nós, uma nova medida, sem a qual não podemos apreciá-lo. Quanto ao problema “espaço-tempo” a obra de Kuni realiza-se em plenitude.
Auguramos que a obra de Masami Kuni, como criador e mestre, encontre em seus discípulos acolhida sincera e que, com responsabilidade, estudo e trabalho sério e constante, seja cumprida a missão de tão convincente arte.
O Tempo Amarelo como as demais manifestações artísticas realmente de vanguarda - na música, pintura, poesia, teatro, etc. -, requer não só do público em geral, mas também da crítica em especial modo, o despertar de uma nova capacidade de entendimento (Kant) e percepção, até agora latentes na consciência humana. Não é possível querer julgar o mundo do presente só com normas e conceitos do passado, mas é isso, infelizmente, e uma “parti pris” injustificável, o que mais notamos na crítica da imprensa de todo o dia.
[1] Na capa do programa distribuído ao público na estreia desta obra no Nippon Toshi Center Hall, em Tokyo, em 21.11.1959, o título está em japonês, 黄色ã„時間 = kiiroidikan. e na página central aparece o título em inglês (The Yellow Time), juntamente com os títulos das nove partes que a compõe, em japonês e inglês.
[1] Carta de 26/0/1959 de Mary Wigman para Kuni diz: Caro Masami. Espero que você possa usar as frases anexadas para o seu programa. E espero que chegue às suas mãos a tempo. Estou muito doente há 3 semanas. Mas está melhorando e hoje posso sair da cama pela primeira vez. Apenas esta carta curta hoje, Nora deve levá-la ao correio. Do fundo do meu coração desejo-lhe todo o sucesso e sucesso total com o seu novo programa; Sempre sua Mary. E complementa com três pensamentos sobre dança: 1) A dança é mais e nada menos do que a vida intensificada na experiência e intensificada na afirmação artística. 2) A dança é uma linguagem viva, falada por pessoas e para pessoas. 3) A dança é uma afirmação artística que oscila sobre os pêndulos da realidade para falar, em um nível elevado, em parábolas e imagens do que move as pessoas interiormente e as incita a se comunicar.
[1] Na música, ostinato é um motivo ou frase que se repete persistentemente.
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