Usina de Letras
Usina de Letras
82 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 62574 )
Cartas ( 21339)
Contos (13279)
Cordel (10457)
Crônicas (22549)
Discursos (3244)
Ensaios - (10499)
Erótico (13582)
Frases (50947)
Humor (20092)
Infantil (5516)
Infanto Juvenil (4840)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1377)
Poesias (140972)
Redação (3332)
Roteiro de Filme ou Novela (1064)
Teses / Monologos (2439)
Textos Jurídicos (1963)
Textos Religiosos/Sermões (6270)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->Quem não se lembra: Maria Petronilho -- 23/08/2024 - 05:40 (Brazílio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

 

 

 

Cronicas-->Costumes de Natal : O Madeiro e a Missa do Galo -- 02/12/2003 - 19:23 (MARIA PETRONILHO)  Siga o Autor Destaque este autor Envie  Outros Textos
Costumes de Natal : 
O Madeiro e a Missa do Galo 



Era no adro da igreja que o Natal se festejava. 
Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa. 
Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, mesmo indo leve, gemia vereda fora. 
No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas. 
E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa. 
Os machados afiados jaziam a um canto. 
Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas. 
Soavam risos e palmas. 
No campo, erguia-se altiva a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança. 
Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste. 
Erguiam-nos bem alto acima da cabeça, nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe: 
- hemp! 
Faziam fila, o segundo golpe soava: 
- Hemp! 
E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio 
- Hemp! 
- Hemp! 

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia. 
Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas! 
Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes, podavam os verdes ramos. 
Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros. 
- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço. 
Içava-se o tronco parra o carro e passava-se à merenda. 
Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga. 
Enfim, rumava-se à vila. 
A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas. 
Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha. 
Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro. 
O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho. 
Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia de um lado ao outro. 
Borrifava-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios. 
E recolhia-se ao agasalho da ceia. 
Juntava-se alguma lenha e ateava-se o fogo ao lenho. 
A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, se derramando, cedendo. 
Na torre, tocava o sino: 
- Dling dlong dling dlong... dling! 
De todas as direcções vinha o povo convergindo. 
Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita. 
Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria. 
Elas entravam na igreja. 
Eles juntavam-se mais: tirava de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo. 
Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo: 
- Está mesmo boa! 
- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério. 
De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro: 
"Da vara nasceu a vara 
Da vara nasceu a flor 
E da flor nasceu Maria 
De Maria o redentor" 
Subia o bafo no ar. 
As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono. 
O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro. 
O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados. 
Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?! 
Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis de marionetas: 
Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago. 
Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico: 
- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda! 
- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe! 
Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa. 
Uma cotovelada certeira, fazia-las retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha. 
Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam. 
Era a tradição que as movia, como um mágico coreografo. 
No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada. 
O padre, retirava do fundo mágico de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco. 
Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz: 
- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito! 
De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados. 
Mais uma bênção, mais uma vénia e ala... para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta. 
Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas! 
Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado. 
Os homens olhavam as mulheres, contrariadas. 
Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos. 
Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano! 
Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto. 
O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão. 

Maria Petronilho, 
Lisboa, 2/12/2003
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 8Exibido 33 vezesFale com o autor