DAS INSTRUÇÕES[i]
Parâmetros para música aleatória
“Quando você se vê diante do inédito, você não tem parâmetros, porque está habituado com o lugar comum, como clichê. Aí, vem alguma pessoa com uma proposta original, você fica sem parâmetro para avaliar o antecipado, e não ter parâmetro é se sentir inseguro. Qual é a reação do inseguro? Desancar o que provocou sua insegurança, pois ele saiu da zona de conforte”[ii]
Carlos Ayres Brito
“... para ornamentar a estrema simplicidade e despojamento, em cousas moldes do que Niemeyer planejava: o braço sobe o banco e em volta do braço. Assim. Simples, puro, claro, que chega a chocar aqueles habituados a visitar grandes catedrais góticas”.[iii]
Jane Godoy
L. C. Vinholes
Outubro de 2014
As dúvidas que me foram apresentadas pelos jovens pianistas - mais do que justificáveis -, me fizeram decidir escrever este texto sobre como ler os sinais gráficos constantes dos cartões da Instrução 61[iv], para quatro instrumentos quaisquer, e da Instrução 62[v], para piano ou instrumentos de teclado, que comemoraram meio século de história em dezembro de 2011 e março de 2012, respectivamente.
Premissas
Em primeiro lugar, para que se alcance o pretendido com as Instruções, vale chamar a atenção e ser indispensável usar cartões quadrados, de cartolina branca, com 12 cm de lado[vi]. A Instrução 61 utiliza 100 cartões e a Instrução 62 utiliza 144. Para que aconteça música aleatória com o uso das instruções, além dos instrumentis[vii], é necessário um colaborador[viii] para cada um deles. As instruções não são composições, obras ou peças, mas sim e simplesmente parâmetros[ix] que, seguidos, permitem obter resultado sonoro de caráter aleatório.
Em segundo lugar deve ficar claro que na Instrução 61 são exploradas, como material para viabilizar sua realização musical aleatória, apenas as relações temporísticas e de relatividade deste material, indicadas pelos sinais gráficos que figuram dos cartões usados: a linha longa fina, a linha curta fina - ora na posição horizontal, ora na vertical -, o ponto e o sinal gráfico do branco.
Na Instrução 62, além dos sinais gráficos e das suas relações acima mencionadas, são exploradas, como material para a realização musical aleatória desta Instrução, as relações de concomitância dos sinais gráficos citados para a Instrução 61 e, ainda, suas relações com dois novos sinais gráficos nela introduzidos: linha longa grossa e linha curta grossa, que, dependendo da posição do cartão, também podem aparecer na posição horizontal ou vertical. Nas duas instruções, fica a critério dos instrumentistas a escolha das alturas, intensidades e demais recursos viáveis em cada instrumento, uma vez que não são objetos nelas tratados. A duração dos sons produzidos é decorrente do comportamento simultâneo da apresentação de cada cartão pelo colaborador e sua leitura pelo instrumentista.
Sinais gráficos e suas leituras
As linhas longas e curtas, finas ou grossas, podem aparecer na posição horizontal ou na vertical dependendo da maneira como os cartões forem baralhados ou não pelos colaboradores, quando, alguns deles, poderão ser girados, voluntária ou involuntariamente, de 45º à direita ou à esquerda do seu eixo. Sendo os cartões quadrados, o sinal gráfico do ponto aparece sempre no centro do cartão; e, em qualquer circunstância, o sinal gráfico do branco, sobreposto ao espaço branco do cartão em branco, em nada muda. Nas Instruções 61 e 62, o sinal gráfico do branco não é silêncio, nem vazio, nem ausência de sons[x] é o branco, elemento estrutural como as linhas e o ponto, não representa nem ausência nem potencial possibilidade de vir a ser ocupado por algum som; o branco sobre o branco dos cartões em branco representa um novo material, um novo elemento, audível, perceptível, tão válido quanto os elementos sonoros, e que com estes participa, em igualdade de condições, do resultado sonoro obtido.
As linhas longas, finas ou grossas, quando na posição horizontal duram mais do que as linhas curtas, finas ou grossas horizontais
As linhas longas, finas ou grossas quando na posição vertical sugerem a formação de um aglomerado[xi] de sons em número maior do que o aglomerado de sons das linhas curtas, finas ou grossas, quando nesta mesma posição.
A linha fina na posição vertical indica que a duração dos sons por ela representados deve ser menor do que a dos sons representados pela linha grossa vertical.
Ao ponto deve ser atribuída a menor duração possível, aquela suficiente para que o som seja percebido e faça parte do resultado sonoro do uso dos cartões.
A duração do sinal gráfico do branco tem leitura igualmente aleatória e independe da dos demais sinais gráficos. Sua duração é aquela dispensada pelo instrumentista somada às que ocorrem entre a exibição do seu cartão e a dos cartões anterior e posterior.
Os sons representados pelas linhas finas ou grossas na posição vertical ou das linhas grossas na posição horizontal são aglomerados, grupos de sons aleatóriamente escolhidos pelos instrumentistas, nunca acordes convencionais que, entretanto, podem ocorrer, por acaso ou pela instintividade, em virtude da formação e prática do instrumentista.
A cada exibição de um sinal gráfico sua realização sonora é de plena escolha do instrumentista.
Uso dos cartões das Instruções 61 e 62
Da Instrução 61, para quatro instrumentos quaisquer, além dos quatro instrumentistas é indispensável a participação de quatro colaboradores, responsáveis pela manipulação dos cartões, cada um deles mostrando para cada um dos instrumentistas, um grupo de 25 cartões, assim singularizados: 7 com linha longa fina, 7 com linha curta fina, 7 com ponto e 4 com branco (não em branco).
Da Instrução 62 para instrumentos de teclado, além do instrumentista é indispensável à participação de um colaborador, responsável pela manipulação de 144 cartões com sinais gráficos que serão tratados em outro texto: Os cartões da Instrução 62.
Os sinais gráficos tanto nos cartões da Instrução 61 quanto nos da Instrução 62, são lidos da esquerda para direita, seguindo a convenção padrão ocidental.
Instrumentista, Colaborador e Proponente
O instrumentista é aquele que lê os cartões que lhe são apresentados, sendo sua função diferente daquela do executante tradicional que, o mais fielmente possível, segue o material previamente definido que lhe é apresentado sem lhe ser dada liberdade de escolha do que com ele fazer. Por mais livre que possa ser o executante - também chamado intérprete -, ele está sempre limitado ao que está convencionado na partitura escrita pelo compositor da obra. O instrumentista tem total liberdade da escolha dos sons, das intensidades, das durações, etc. apenas seguindo a bula que lhe for disponibilizada. No caso das Instruções a bula é materializada nos sinais gráficos dos seus respectivos cartões.
O colaborador é aquele que se coloca à frente do instrumentista e, independentemente deste, na ordem e velocidade que desejar, manipula e exibe os cartões, baralhados ou não. O colaborador não pode ser comparado e confundido com o virador de páginas de uma partitura convencional cuja tarefa visa, apenas, a facilitar ao intérprete a leitura da partitura que utiliza. Suas funções são distintas e inconfundíveis.
O colaborador é a figura que representa o público, mas não o público que de maneira contemplativa ou passiva, assiste e aprecia o que é realizado por um intérprete/executante seguindo, à risca, o básico e os mínimos detalhes do que está determinado na obra escrita pelo compositor. O público das Instruções pode participar na escolha/determinação da ordem de apresentação dos cartões, inclusive, se o desejar, escolhendo quem desempenhará o papel do colaborador. É assim que ele se faz presente, na pessoa do colaborador, como corresponsável pelo resultado sonoro obtido.
As Instruções não reconhecem a figura do compositor, no conceito vigente nos períodos que as antecederam, mas sim a do proponente de simples parâmetros com os quais envolva a outros atores para, em ação conjunta e impessoal, obter resultado sonoro que não seja consequência de técnicas, linguagens e estilos tradicionalmente consagrados.
Levando as últimas consequências o que está registrado nos parágrafos alinhavados neste texto, as Instruções permitem que até mesmo os não músicos, os leigos, possam desempenhar o papel do instrumentista e do colaborador, utilizá-las e obter um resultado sonoro que, evidentemente, será distinto do que é obtido pelos atores que seguem o que ditam técnicas, linguagens e estilos convencionais, tradicionalmente aceitos e consagradas como produtoras de música. Não deixa de ser também viável surgir um proponente, sem conhecimento das diferentes linguagens musicais, sugerindo parâmetros que atendam aos conceitos acima expostos.
Resultado sonoro
Resultado sonoro, conforme a própria palavra informa, é o que resulta do uso das Instruções, fruto de trabalho/ação conjunta dos coatores e não coautores: proponente(s) do(s) parâmetro(s)/instrução(ções) + colaborador(es) + instrumentista(s). O resultado sonoro, não é obra, não é composição, não é peça, na concepção histórica.
Duração do resultado sonoro
A duração do resultado sonoro decorrente do uso tanto da Instrução 61 quanto da Instrução 62 pode ou não necessitar de ser determinada com antecedência; pode terminar a qualquer momento seja por decisão coletiva do(s) instrumentista(s) e/ou do(s) colaborador(es) ou, até mesmo, por decisão individual de cada um deles que, no momento que desejarem, poderão deixar de ler ou de apresentar os cartões levando, paulatina ou subitamente, ao término do resultado sonoro.
Os cartões da Instrução 62
Na Instrução 62, para instrumento de teclado, são utilizados 144 cartões com os sinais gráficos da Instrução 61 e os novos sinais gráficos da linha grossa longa e da linha grossa curta. A linha grossa, longa ou curta quando na posição horizontal, indica a presença de mais sons do que a linha fina, longa ou curta, que indica a presença de apenas um som. A quantidade de sons de uma linha grossa fica a critério do instrumentista e não necessita ser exatamente a mesma em cada momento que seja lida. A linha grossa quando na posição vertical indica um conjunto/aglomerado de sons maior do que o que ela indica quando na posição horizontal. A linha grossa quando na posição vertical indica uma duração maior do que a duração da linha fina na mesma posição.
Nos 144 cartões os cinco sinais gráficos, apresentados no parágrafo anterior, são assim distribuídos: quatro grupos de 12 cartões cada um com os mesmos sinais gráficos da Instrução 61: linha fina longa, linha fina curta, ponto e branco sobre branco do cartão; quatro grupos de 6 cartões cada um combinando 2 sinais gráficos: ponto + linha fina longa, ponto + linha grossa longa, linha fina curta + linha grossa longa e linha curta grossa + linha longa fina; e quatro grupos de 12 cartões cada um combinando 3 sinais gráficos: linha fina longa + ponto + linha grossa curta, linha grossa longa + ponto + linha fina curta, linha fina longa + linha grossa curta + ponto e linha grossa longa + linha fina curta + ponto. A leitura dos cartões que combinam dois ou três sinais gráficos deve ser feita levando em consideração que eles têm entre si uma relação de concomitância quando aparecerem um acima ou abaixo do outro e uma relação de sequência, quando aparecem antes ou depois um do outro.
É indispensável que os cartões tenham as dimensões indicadas e sejam confeccionados de cartolina, como as de baralhos, e não de papel flexível a fim de facilitar o manuseio por parte do colaborador e a leitura por parte do instrumentista.
Concomitância e sequência
Concomitância é a simultaneidade de duas ou mais coisas que se manifestam ao mesmo tempo e sequência – precedente ou antecedente - é a sucessão de duas ou mais coisas, uma depois ou antes das outras, em continuidade. Na Instrução 62, o fato de um sinal gráfico - ponto, linha fina (curta ou longa), linha grossa (curta ou longa) -, estar acima ou abaixo um do outro implica em concomitância. E é dentro do tempo da duração do sinal gráfico de maior duração que deve ocorrer a leitura dos que estejam acima ou abaixo dele. Dentro da mesma lógica, o fato de um sinal gráfico - ponto, linha fina (curta ou longa), linha grossa (curta ou longa) -, estar antes ou depois de outro sinal gráfico implica em que eles devam suceder um ao outro na ordem em que estejam no cartão, sendo a leitura da esquerda para a direita. Na sequência de sinais gráficos suas leituras são independentes uma das outras no que diz respeito às alturas e demais características dos sons escolhidas para sua realização sonora.
Conclusão
O leitor deste texto, cotejando com os originais das duas instruções aqui tratadas, notará que, sem alteração do conteúdo, houve mudanças de redação, com relação àquelas dos textos originais e verificará um como que maior ajuste na maneira como é expressa a conceituação e a linguagem escolhida para seu registro. Em nada fica comprometida a ideia inicial que norteou a escolha dos seus parâmetros.
Visando manter coerência na elaboração dos parâmetros das instruções de 1961 e 1962 sempre levei em consideração que liberdade se tem em plenitude ou não é liberdade e que o novo ou é novo ou é meia verdade[xii], corolários que me distanciaram de outras conceituações vigentes nas primeiras décadas da segunda metade do século XX.
As Instruções 61 e 62 e seus parâmetros são fontes inesgotáveis de resultados sonoros de caráter aleatório.
[i] Texto e modelos dos cartões das Instruções 61 e 62, poderão ser solicitadas pelo endereço leceleve@gmail.com que serão oferecidos graciosamente.
[ii] Da entrevista do ministro aposentado do Supremo Tribunal de Justiça e poeta Carlos Ayres Britto, publicada no Correio Braziliense, de Brasília, edição de 09.12.2012.
[iii] Em artigo “O mais lindo dos monumentos de Brasília”, a Catedral Metropolitana, de Jane Godoy, na coluna 360 Graus, na edição do Correio Braziliense, pg. 2, de 06.10.2013.
[iv] Utilizada pela primeira vez em 31.12.1961 pelos músicos do Estúdio Nakajima do Grupo de Música Nova de Tokyo; e publicada no Japão, com texto em inglês e japonês, na revista Design nº 37, p.30, em setembro de 1962.
[v] Utilizada pela primeira vez em 30.03.1962 por Tomohisa Nakajima (piano) e sua esposa Mie Nakajima, do Estúdio Nakajima do Grupo de Música Nova de Tokyo; e publicada no Japão, com texto em inglês e japonês, na revista Design nº 37, p.31, em setembro de 1962.
[vi] Na musicalização de crianças a Dra. Lilia de Oliveira Rosa propõe cartões na variante retangular justificada como forma prática para facilitar ao aprendiz a distinguir as diferenças entre os cartões com o ponto, a linha curta, a linha longa e o branco e a identificação dos respectivos sons que elas sugerem bem como a relatividade dos seus tempos de duração. Vide tese de doutorado “Três peças aleatórias de L. C. Vinholes numa abordagem pedagógica para crianças”, pg.113 e seguintes, Unicamp, 2011.
[vii] Abandona-se a expressão intérprete.
[viii] A expressão colaborador foi sugerida pelo pianista Paulo Affonso de Moura Ferreira (1940-1999), ex-diretor do Departamento de Música da Universidade de Brasília, quando pela primeira vez no Brasil, na Sala Martins Pena do Teatro Nacional, em Brasília, em 30.03.1976, utilizou a Instrução 62, tendo como colaboradora a flautista Ingrid Madson.
[x] Aqui, o sinal gráfico do branco é explicitado de maneira mais adequada, ampliando, sem contrariar, a definição original constante do texto em inglês publicado em Tokyo (vide notas II e III) onde lê-se “The cards in blank are silences=pauses=absence of sound-sounds.” Branco sobre Branco (1918), é o título que Kazimir Malevich, criador do Suprematismo, deu a um os seus quadros, valorizando “os aspetos materiais da pintura”, declarando, em 1919: “superei o forro do céu colorido... nado no abismo livre do branco”.
[xi] Grupo, conjunto, cluster.
[xii] Às pg.161 a 166 da tese da Dra. Lilia de Oliveira Rosa, citada na nota vi, acima, estão os “Comentários Sobre as Instruções por L. C. Vinholes”, ampliando os argumentos pertinentes à proposição dos parâmetros que viabilizaram as duas instruções: Instrução 61 e Instrução 62.
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