Usina de Letras
Usina de Letras
22 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 63022 )
Cartas ( 21348)
Contos (13298)
Cordel (10353)
Crônicas (22573)
Discursos (3246)
Ensaios - (10603)
Erótico (13586)
Frases (51458)
Humor (20160)
Infantil (5570)
Infanto Juvenil (4918)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1386)
Poesias (141211)
Redação (3354)
Roteiro de Filme ou Novela (1065)
Teses / Monologos (2441)
Textos Jurídicos (1965)
Textos Religiosos/Sermões (6336)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->POESIAS PARA PRETAS E OS TABORES DO OLODUM -- 02/02/2025 - 18:54 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

POESIAS PARA PRETAS E OS TABORES DO OLODUM

L. C. Vinholes

02.02.2025

Depois que mudei para São Paulo em 1953, comecei a observar mulheres e homens que dividiam comigo os espaços do dia a dia. Comparava meus vizinhos da Rua General Argolo, de Pelotas, com os moradores da Rua Sergipe do Bairro de Higienópolis; tinha curiosidade com o que vestiam, com o que calçavam, com o caminhar tranquilo dos primeiros e com a pressa dos paulistas. Pouco a pouco descobria as diferenças entre as duas comunidades e me dava conta de que a diferença entre eles era o que sentiam, o que sonhavam e o que conseguiam alcançar/ganhar com seus sonhos.

Em um ano e meio de São Paulo tive oportunidade de conhecer outra face dos brasileiros. Fui a Salvador e lá fiquei entusiasmado com o que via e vivia.

Os amigos que fiz, de pele pretas ou negras, mais escura do que a minha, eram a maioria. O que eles tinham para mostrar com sua arte e suas relações sociais era tanto que eu me sentia atraído, como que me afogando em uma nova realidade. Foi uma estada de pouco mais de um mês na qual me capitalizei tanto com a alegria que tive que, voltando à pauliceia, não faltaram momentos em que uma certa tristeza me abatia. Faltavam tambores, faltava negritude.

O tempo passa e, acomodado de certa forma distraído pelo que nos cerca, não me dei conta quão rápido ele passa. E foram anos que se passaram com muito estudo, com muito aprendizado, com muito alcançado nos cinco anos em que frequentei a Escola Livre de Música (ELM) Pró Arte.

Na minha memória continuavam indelevelmente guardadas as lembranças do Nei[i], menino magro de olhos grandes e semblante introvertido, meu vizinho companheiro de infância da Rua Argolo, filho do cisqueiro[ii] seu Virgílio, que na sua carroça de duas rodas e duas mulas, passava em frente as casa recolhendo o que não mais servia; da figura imponente do sargento Pedro da Silva Rodrigues, regente da Banda da Brigada Militar e primeiro clarinete da Orquestra Sinfônica de Pelotas; do médico doutor Peni, sempre a pé, com sua valise típica de médicos, voltando das visitas aos seus pacientes; do casal dona Maria e seu Antônio sempre gentis e acolhedores quando com meu pai passávamos pela casa que tinham à margem dos trilho da ferrovia que por ali passava ligando Pelotas a Bagé, vendedores de iscas vivas para pesca e onde, sem pedir, eu ganhava uma caneca de café com leite engrossado com farinha; da Casturina, velha baixinha, cabelos quase brancos,  despachada, usava palavrões quando irritada, levantava a saia quando provocada, sempre com farto balaio no braço esquerdo, pesando com suas apetitosas empadas recém-feitas; o outro Peni da Casa de Fogos da Rua Paissandú, a mesma onde morava minha avó paterna, vovó Miróca,viúva, e meus avós maternos, vovó Maria Emília e vô Nico; de seu Otacílio, alfaiate que morava em frente à casa da vó Maria e que fazia meu uniforme para o Colégio Gonzaga; do policial conhecido por Zarôlho, com sua barriga dependurada no cinturão largo da farda de brigadiano; de “sia” Maurícia, cozinheira de primeira, fazedora de pão em forno de barro, mãe de Maricota filha mais velha, das meninas Ecila e Nilza e do menino Vadinho de pouca saúde mental, crianças com as quais eu brincava na frente da casa onde eles moravam construída no alto do piquete da fazenda Boa Esperança dos meus tios prediletos Orestina e Germano, onde eu, também menino, passava as longas férias do final do ano que começavam em dezembro e findados no início de fevereiro; Maricota que  foi trabalhar na casa da fazendola de minha prima Ecila e que ali continuou a brindar-me com apetitosas espigas de milho assadas no braseiro à lenha; Virgílio e Dinarte,  os dois capatazes da fazenda do tio Germano,  o primeiro pai do primogênito que recebeu meu nome e ficou meu xará; Maneca o preto velho, de chapéu e roupas pesadas, sempre descalço que a meninada atrevida com voz gritava: “abre a boca Maneca” e ele com um sorriso inexpressivo, atendia mostrando a boca que tinha e que amedrontava a pirralhada; o Jacinto Chagas Trindade Cruz, jovem tenor que, como eu, participava do coral da catedral Metropolitana de Pelotas, regido pelo maestro José Duprat Pinto Bandeira; a Ester, a carioca habilidosa e dedicada, que criava e imprimia convites e atraentes cartazes, casada com o pintor italiano Enrico que, em 1996  convidei para ser a secretária executiva do Instituto Brasil-Itália em Milão, projeto por mim implementado, seguindo instruções do Departamento Cultural do Itamaraty;  José Maria Neves, natural e São João del Rei, MG, regente, musicólogo, historiador e um dos diretores-criadores dos Cursos Latino Americanos de Música Contemporânea; Marinalva, diretora da Escola Municipal do terreiro de Mãe Estela, em Salvador,  BA, que Helena e eu recebemos em nosso apartamento em Milão, quando lá estivera com as alunas Carolina e Marília, para, a convite, demonstrar aos estudantes italianos a refinada habilidade de aproveitamento de garrafas pet como matéria prima para criar coloridas flores e insetos; Alice, minha ex concunhada, jornalista, ainda afetuosa parceira dos encontros de família.

Nos anos que vivi em São Paulo, predominantemente na área central da capital paulista, no ambiente da ELM, a convivência parecia ser mais com uma população de descendentes europeus e japoneses que estavam onde o comércio e o consumo predominavam. Não conheci as periferias.

Anos depois, chegou a vez de um mergulho definitivo no que me movia, no que continuava a me atrair, no que não me abandonava e não era por mim abandonado: a negritude, os tambores. Tambores de um Olodum[iii], permanente faltando ao meu redor.

No trabalho que desempenhava na Agência Brasileira de Cooperação do Itamaraty, em Brasília, coordenei os cursos de cooperação técnica de formatação e acompanhamento de projetos, oferecidos aos governos dos países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) da África e Timor Leste. Durante os cursos no Brasil, de dez dias duração, a convivência com profissionais africanos, mulheres e homens, intensificava minhas relações e afinidades com nativos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Principe. Nossas trocas de experiências de ex-colonizados, diversas e todas válidas, se complementavam e nos enriquecia mutuamente. A descontração e a alegria nos passeios que fizemos a Pirenópolis, GO, no final de semana da metade de cada curso, funcionava como elixir, facilitando diálogos descontraídos onde até mesmo experiências pessoais eram motivo de trocas.

A intensidade de todas essas experiências anteriores passou a ser a máxima que se podia esperar quando, para minimizar gastos, os cursos passaram a ser realizados nas capitais dos países membros da CPLP. Nos anos de 2002 a 2004 viajei a Luanda, Praia, Bissau, Maputo e São Tomé. Nessas viagens, via Lisboa, em Portugal, ou passando por Joanesburgo, na África do Sul, tinha como parceiros o saudoso engenheiro Marcos Fernandes, autor das apostilas dos cursos, e o técnico em informática Sandro Moreira Rossi, que se tornaram grandes amigos. Destaco como representantes de todos os africanos os moçambicanos Antonio Muiaiê de quem recebi típica camiseta ornada com uma sofisticada máscara, e Hauita, gerente do Hotel Avenida, onde os cursos se realizavam, que me presenteou com colorida foto sua, na qual aparece ricamente vestida com um formal e elegante tailler enviado de Salvador, BA, onde sua irmã residia.

Certo dia, de maneira simples, minimalista como gosto, resumi, em três versos, meus sentimentos pelos brasileiros afrodescendentes e por toda(o)s da Mãe África:

 

              siamesa do meu torrão[iv]

separada pela sorte

  África do meu querer

 

Hoje, numa época em que os governos, as instituições oficiais e privadas e a sociedade em geral são levados a avançar no reconhecimento da barbárie que foi o dia a dia da nossa sociedade pós-descoberta, as minhas esporádicas manifestações poéticas passam como pingos d´água em um oceano de lágrimas, mas não por isso de menor importância, face ao que o Brasil será para as novas gerações.

                                                                                                                                 Poesias às negras que conheci

 

No período de 2002 a 2004 quando tive oportunidade de encontros no Brasil e em viagens a serviço, conheci inúmera(o)s preta(o)s a quem, buscando aprofundas afinidades e bem-querências, dediquei meus versos. Quero lembrar a Alessandra que estudava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), de São Paulo, que foi viver a Alemanha; Regina, especialista em cooperação técnica, trabalhou na ABC, que nas suas roupas preferia os tons verdes, que eu a chamava de Clorofila, apelido que apreciava e ria, casou com jamaicano, mudou-se para o Caribe, hoje é embaixatriz; Jovelina Imperial, angolana, era nos cursos na África, orgulhosa representante do Escritório da CPLP em Lisboa; e, finalmente, Hauita, acima citada. Às quatro pretas citadas nesse parágrafo dediquei a poesia de 9 de julho de 2014:

 

                                             Alessandra

                                               preta da fau

                                                disse adeus à pauliceia

                                                  foi viver na alemãnha

 

                                                   outra preta é Regina

                                          trabalhou na abc

                                            preferia tons verdes

                                             chamei-a de clorofila

                                               alegre ria

                                                encontrou jamaicano

                                       se mudou para o caribe

                                         deixando saudades

                                           hoje é embaixatriz

 

                                           Jovelina angolana

                                             namorada de lisboa

                                    braço da cplp

                                      pretendendo ser política

                                        em terra irmã do brasil

 

                                         Hauita moçambicana

                                           pele preta veludo

                                  suavidade à mostra

                                   sorriso abraçante

                                    recebendo quem chegava

                                     no avenida hotel

                                       memória: lourenço marques

 

                             minhas pretas

                               muitas mais

                                das que a lembrança contou

                                  na África embebedei-me

                                   de tanta preta que vi

 

Numa outra ocasião, para louvar as mulheres que num domingo de festa passeavam na Feria do Pau[v], não pensei duas vezes e aproveitei os últimos dois versos da poesia acima e escrevi:

 

                                 lá em Maputo

                                    o vento

                                      bule o veludo da pele

                                        da moçambicana

 

                                          beleza jovem vibrante

                                  cheia de sonho, de luz

 

                                   minhas pretas

                                     muitas mais

                                       das que a lembrança reconta

 

                                        na África embebedei-me

                                de tanta preta que vi

 

                                                                                                              A paródia “negra da perna dura”

 

No Carnaval dos anos de 1940, celebrando a beleza e a identidade negra, a marcha carnavalesca Negra do cabelo duro era cantata pelo bloco organizado pelo

Ferro Velho do Rosinha, português dono do bric-brac[vi] provedor de tudo o que se procurava. Era também o patrocinador dos blocos Bumba Meu Boi e Tigre, rivais do bloco Girafa da Cerquinha[vii]. Os blocos com áreas limitas por um quadrado definido por resistente corda, ao entardecer ensaiavam e depois, em alvoroço para alegria dos participantes e curiosos, saiam da esquina das ruas Argolo com Barão de Santa Tecla, em Pelotas, e percorriam as ruas da cidade. Certo dia, participei de um arrebatante ensaio e fiquei entusiasmado com a desenvoltura da pelotense negra mostrando suas habilidades como passista durante o aquecimento do ensaio. Voltei para casa e, ato contínuo, coloquei no papel a letra em sete versos, parodiando o estribilho da tradicional marcha, trocando Nega do cabelo duro por Nega da perna dura, nada mudando na mesma figura ícone de todos os tempos.

 

Vejam como ficou:

 

                                                            Nega da perna dura

                                                            qual é a muleta que te segura (bis)

                                                                                     Quando tu entras na roda

                                                             A tua perna bamboleia

                                                                                    Negra dessa perna dura

                                                                                   Qual é a muleta que te segura

                                                            Oh! Negra.

Segundo verifiquei na internet, nas últimas décadas são muitas as versões da letra e música dessa tradicional marcha carnavalesca que voltou a ter popularidade, com rítmos e intérpretes novos e letra modificada.

Nas minhas visitas à África tive incontáveis oportunidades de ver e conhecer o quando seu povo sofreu e ainda sofre com a maldade e a ganância daqueles que pertenciam ao que hoje é a imensa colcha de retalhos chamada Europa, irresponsável “mãe de duas guerras”.

 

Que voltem os Tambores do Olodum.

 

 

[i] Os nomes pelos quais eram conhecida(o)s a(o)s preta(o)s citados neste artigo estão em negrito como modesta, mas sincera homenagem a cada um deles e a todos os demais que aqui não foram lembrados.

[ii] Cisqueiro ou lixeiro, aquele que recolhia o lixo, o descartável, produzido pelas casas da cidade.

[iii] Olodum é palavra de origem yoruba, língua falada na África Ocidental, que significa “Deus dos deuses” e, numa acepção atual “resistência”.

[iv] Poesia escrita em dezembro de 2002, na minha primeira viagem à África. Esta poesia está na página 276 da antologia Retrato de Corpo Inteiro reunindo poesias de 1947 a 2007.

[v] Feira do Pau é como é conhecida a maior praça-parque de Maputo onde exibem a mais rica e variada produção artesanal em madeira que vi na África.

[vi] Bric-a-brac tem origem na expressão francesa do século XVI, significando “de qualquer jeito”. Local onde se encontra de tudo a preços módicos.

[vii] Cerquinha era o nome de um dos bairros pobres da periferia de Pelotas

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 11Exibido 43 vezesFale com o autor