O MALG DESTINO FINAL DE UMA SAGA
L. C. Vinholes
01.09.2016
Quando deixei Pelotas em 1953 e desembarquei em São Paulo para dar início às aspirações embrionárias de meus sonhos, claro que fiquei encantado com tantas e variadas facetas oferececidas por aquela capital. Seleciono o que talvez tenha sido o motivo de minha maior supresa: tudo aquilo relativo ao Japão. Restaurantes, cinemas e lojas do Bairo da Liberdade foram vitrinas que me cativavam desde o primeiro encontro. Em uma das esquinas da Praça Dom José Gaspar, um comércio oferecendo principalmente cerâmicas dispostas em rústicas caixas de madeir, foi o ponto de meus frequentes retornos. Fazia comigo mesmo o cotejar do abundante do que ali estava com o quase nada a mim disponível até então. Estudante lutando para sobreviver, sem máquina fotográfica, satisfazia-me descrevendo o que via por carta a alguns amigos que deixara definitivamente para trás. Em São Paulo, enriqueci-me também nas visitas aos museus e galerias paulistas e em outras experiências do cotidiano.
Chegando a Tokyo em 1957 experimentei o que poderia ser chamado de embriaguês total. Em todos os cantos tudo era novidade, tudo era fonte de aprendizado. Em 1959, minhas atividades remuneradas permitiram começar a reunir uma variedade infinita de peças que me acompanhariam por décadas, enquanto eu fosse o seu depositário fiel. Imaginava outros pelotenses a meu lado olhando, escolhendo, adquirindo o que lhes chamasse a atenção. As minhas escolhas foram, pouco a pouco, tornando meu comportamento mais seletivo, pois a cada dia aprendia um tanto a mais que, positivamente, definia minhas prioridades.
Cheguei a Tokyo dez anos depois do término do segundo conflito mundial do século XX que vitimou não só ao Japão, mas também a outros países do Extremo Oriente.
Nas cidades japonesas eclodiram comércios dedicados à compra e venda de refinados objetos de cerâmica, metais, madeira, marfim, etc., bem como de livros e gravuras que, certamente, até então tiveram alguém que por eles zelava. Nos antiquários e sebos de Tokyo, Osaka, Nara, Kyoto, Kamakura, etc. encontrei a grande parte do que consegui reunir, nos dois períodos em que vivi no Japão: agosto de 1957 a julho de 1967 e abril e 1974 a agosto de 1977. Não pode ser esquecida uma fonte preciosa que foi o contato, iniciado em 1957, com Kenzo Tanaka pintor, gravador, escultor, professor e líder dos grupos TAO e Maison de Création e da International Society of Plastic and Audiovisual Arts, por intermédio dos quais não só me foi dado conhecer a dezenas de artistas plásticos japoneses, mas, principalmente, conseguir introduzir no Japão obras de artistas brasileiros.
Assustado com a significativa valorização da moeda japonesa em meados da década de 1970, decidi mudar para o Canadá onde uma nova fase de minha doença colecionista concretizou-se. Museus e galerias exibiam o que de melhor se poderia esperar para aprender sobre a arte de matriz europeia da qual o que sabia até alí era apenas uma pequena e insuficiente amostra. Graças ao contato com os mercadores do Canadá e da Inglaterra as gravuras e mapas produzidos com matrizes de madeira, metal e pedra passaram a fazer parte da bagagem que em 1982 entraria no Brasil, acompanhada da devida documentação alfandegária.
Durante a estada em Ottawa atendendo mais do que exigia meu compromisso como funcionário responsável pela divulgação da cultura brasileira, vali-me dos contatos e das amizades com artistas brasileiros, resultado da vivência em São Paulo, para divulgar a sua arte. Sempre que possível adquiria pelo menos uma obra para ficar como tangível lembrança.
Em meados 1954, tive oportunidade de viver em Salvador e de usufruir da singular e preciosa experiência de compartilhar meu tempo com os brasileiros filhos de antepassados africanos e sentir, pela primeira vez o vigor e o peso de sua cultura e de seus costumes. Sonhei, mas nunca acreditei ser possível conhecer a África, assim como havia acontecido com o Japão. Eu não imaginava que o destino seria extremamente generoso e que nos anos de 2002 a 2004, a trabalho, me levaria por duas vezes a cada uma das capitais dos países africanos de língua portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Priíncipe. Em todas elas, frequentei as feiras populares e fui testemunha das habilidades artesanais de sua gente, mas, apesar disso, em mim permaneceu a insatisfação de não poder conhecer mais a respeito do que vi e de não ter comigo o suficiente para compartilhar com quem também tem curiosidade e interesse pela cultura africana que, há séculos, é nossa também.
No início dos anos 1970, pela primeira vez, tentei confiar à UFPel todo o acervo que havia amealhado, mas a válida preocupação com segurança que me foi apresetada não permitiu que, naquela ocasião, minha missão tivesse um término. Recentemente, o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG) encontrou as condições propícias à concretização da meta que eu havia estabelecido: compartilhar com os de hoje e com os de amanhã.
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