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Artigos-->MÚSICA ANTIGA E MEUS MESTRES NO JAPÃO -- 30/03/2025 - 11:36 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 MÚSICA ANTIGA E MEUS MESTRES NO JAPÃO

L. C.Vinholes

                                                                                                                                                   30.03.2025

Uma das fazes impactantes na minha formação foi vivida naqueles dias em que saía da pensão na casa da família Oka, em Jyugaoka[i], e, depois de valer-me do trem urbano e metrô, chegava ao Grande Portão de entrada do Palácio Imperial, em Tokyo e, sem demorar dirigia-me ao prédio do Departamento de Música onde estudava com meus dois professores, músicos responsáveis por manter vivo o 雅楽 = gagaku[ii], música tradicional da corte japonesa.

Quando passava pela guarita, para a protocolar identificação, minha bolsa com o 篳篥 = hichiriki chamava a atenção dos guardas que com o passar das vezes me deixavam seguir sem fazer perguntas.

Adentrando, caminhava lentamente ao lado de paredes de enormes pedras e, com curiosidade, observava como elas estavam combinadas sem deixar espaço algum, mostrando a eficiência de quem as tinham manuseado. Em algumas pedras via musgos e minúsculas samambaias. Estranhava as poucas árvores que contrastavam com o chão batido de superfícies enormes, tudo diferente do lado de fora, a Tokyo onde se via a água do fosso medieval definindo as muralhas e o verde farto do vizinho Parque Hibia. Normalmente, não se encontrava ninguém.

No final da compenetrada caminhada matinal, meus professores, sempre pontualmente, aguardavam o momento de compartilhar seus saberes, transmitidos sem teorias, mas com muita prática. São eles Hiroharu Sono e Sueyoshi Abe.

 

 

Hiroharu Sono
paramentado para o bugaku

                

Dueyoshi Abe
comentando sobre o taiko

 

Aqui, para completar a trinca virtuosa de meus mestres, adianto e acrescento o nome de 田辺 尚雄 = Hisao Tanabe (1883-1984), possuidor de enorme saber e experiência, com quem, na 芸大 = Geidai = Universidade de Artes de Tokyo, estudei e muito aprendi sobre a música da China, país no qual havia passado muitos anos e se tornado o musicólogo que introduziu no Japão os estudos sobre música asiática. Dele ganhei o manuscrito, por ele escrito sobre papel pautado com o texto, a notação ocidental de Roei-Kashin e suas escalas ascendente e descendente. Música antiga japonesa para voz, com eventual acompanhamento de instrumento, documento que, desde novembro de 2014, faz parte do acervo da Discoteca L. C. Vinholes, da Universidade Federal de Pelotas.

 

 

Roei-Kashin em manuscrito de Hisao Tamabe

Hiroharu Sono, exímio executante e meu professor de 笙 = shô, graças aos ensinamentos de seu pai, dedicava-se não só ao gagaku, mas também ao 舞楽 = bugaku, coreografias de danças acompanhadas pelo gagaku, executadas por homens ricamente paramentados, de movimentos lentos e repetitivos, originárias da China e da Korea antigas. Do professor Sono aprendi dedilhar os orifícios da base dos 17 tubos de bambu com as palhetas de metal que vibram respondendo ao sopro do executante. As indumentárias dos músicos eram mais simples, embora também com cores vivas, ao passo que a dos dançarinos, geralmente quatro, eram mais elaboradas e vistosas o que, dependendo das combinações das cores, indicando se a origem era chinesa ou coreana.

 Na orquestra do gagaku são utilizados três famílias de instrumentos: sopro (笙 = shô,  órgão de boca; 篳篥 = hichiriki, oboé pequeno, e 龍笛 = ryuteki, literalmente flauta do dragão); cordas (琵琶 = biwa, parecido com alaúde); e percussão (太鼓 = taikô, tambor grande, 鼓 = kotsuzumi, tambor pequeno tocado na horizontal, percutido nos dois lados e de uso exclusivo do líder/regente da orquestra). No bugaku não são utilizados os instrumentos de corda.

 

Viagem dos músicos japoneses ao exterior

Valendo-me dados e informações de notícia publicada pelo jornal japonês The Japan Times, em 17 de maio de 1959, reproduzirei o texto que trata das formalidades e das singularidades da primeira apresentação da música do gagaku fora do Japão e compartilharei as informações a respeito do seu líder Sueyoshi Abe, meu mestre.

“Sueyoshi Abe é o maestro da Orquestra da Música da Corte da Agência Imperial que, em breve, fará uma turnê de cinco semanas nos Estados Unidos, para apresentar àquele país, a música clássica japonesa de 1.500 anos.

“Abe e seu grupo de 20 membros deixarão Tokyo na quarta-feira. Eles farão a viagem pelos bons ofícios de Linclon Kirstein do New York City Ballet que, após visitar o Japão em março do ano passado, fez arranjos para a viagem com a cooperação de John D. Rochefeller III, do Ministério das Relações Exteriores do Japão e outros setores.

“Será a primeira vez que a antiga música da corte japonesa será tocada fora do Japão.

“A música da corte do Japão ou gagaku foi preservada ao longo dos tempos desde os dias do Imperador Ingyo, o 19º governante do Japão (376-453), quando o soberano de Shiragi, um dos antigos estados da Coreia, enviou 80 músicos para o Japão.

“A música introduzida pela Coreia ganhou o apreço da corte japonesa e foi designada como a música oficial da corte do Japão durante o reinado do Imperador Nimmiyo, seu 54º governante (810-850).

      Quem era Sueyoshi Abe

“Abe nasceu o terceiro filho do antigo Visconde Motoyoshi Ishiyama. No entanto, ele foi adotado pela Família Abe, a guardiã do gagaku em Kyoto, e começou sua carreira como músico da corte.

“O músico de 54 anos começou a estudar gagaku aos 12 anos. Ele recebeu treinamento rigoroso de seu avô. Dizem que seu avô-professor fazia o pequeno Abe acordar às 5h30 da manhã, mesmo no inverno, e usava um chicote de bambu para treiná-lo.[V1] 

“Abe toca não apenas instrumentos japoneses, como 笙 = shô e 篳篥 = hichiriki, mas também violino.

“Ele foi escolhido como maestro da Orquestra da Agência Imperial em fevereiro de 1955 e, no mesmo ano, recebeu o Prêmio de Arte. Em março deste ano, foi designado como "bem cultural intangível".

“Abe teme que a música da corte japonesa, de ritmo lento, possa não agradar aos americanos, mas há relatos de que os ingressos antecipados para as apresentações agora estão vendendo bem em Nova York”.

Eventos inesquecíveis: dormência e linguajar dos jovens

O professor Abe, nas aulas de hichiriki, exigia que seus alunos se ajoelhassem sobre uma almofada e sentassem sobre as pernas e calcanhares, antes de começar a estudar seus instrumentos. Confesso que, no início, esta posição me era de veras incômoda, pois com ela não estava acostumado e por provocar dormência nas pernas. Certa ocasião a aula durou mais do que de costume e o professor despediu-se e foi atender a outro compromisso. Algum tempo depois ele passa na frente à porta e, ao ver-me ainda sentado, amavelmente advertiu-me dizendo: “Vinholes, a aula terminou, pode ir embora”. Desajeitado, com a perna adormecida, respondi que não conseguia levantar-me. Imediatamente fui por ele socorrido, tomei um copo de água e comecei a, lentamente, dirigir-me ao Portão de Entrada. Sai e voltei para Jyugaoka.

Quando comecei a frequentar a Geidai não tinha completado vinte e quatro anos de idade e o professor Tanabe estava com setenta e quatro. Suas falas prendiam a atenção da maioria dos alunos, digo da maioria porque não faltavam aqueles que sentavam nos bancos do fundo da sala de aula e dormiam, cobertos por seus casacões dependurados em cabides acima de cada um deles. Nessa fase aprendi muito não só no que diz respeito à música chinesa, mas também sobre a história daquela parte do mundo raramente mencionadas nas matérias dadas nas escolas brasileiras.

Meu interesse pela matéria dada pelo professor Tanabe e a quantidade de minhas indagações tiveram como consequência a decisão do mestre de convidar-me à sua casa e mostrar-me as verdadeiras relíquias de seu acervo pessoal, amealhadas nos longos anos vividos na China. Eram tardes inesquecíveis regadas de novidades e saber.

 

Linguajar dos jovens

Sempre que as informações dadas a respeito de um assunto despertavam meu interesse e admiração, segundo costume japonês, manifestava-me exclamando sôka, dissílabo que aprendera convivendo com os colegas universitários.

Um belo dia, professor Tanabe, cerimoniosamente e com voz quase inaudível, ensinou-me algo que, até hoje, me tem sido muito útil. Procurarei registrar o mais fielmente possível o que me foi dito: “Vinholes, quero dizer para você algo que nada tem a ver com música, nem com o que temos conversados até agora”. Surpreso com a cerimônia repentina, respondi, simplesmente, sim professor, sou todo ouvidos. Professor Tanabe continuou: “sou um homem idoso, de cabelos brancos, teu professor e você um jovem, vindo de longe, meu aluno. As vezes aprender e falar a língua de um outro país não é nada fácil, mas você sempre me surpreende e isso facilita nosso diálogo. O que eu quero pedir a você é que, quando falar comigo, não use a expressão そ か = so ka, pois ela não condiz com sua formação”. Sem entender o que ouvia, respondi em forma de pergunta: sim professor, por qual motivo? E o mestre continuou: “esta é uma expressão de alguns estudantes que, por razões próprias, resolveram simplificar uma expressão da língua japonesa usada por todos os japoneses que tiveram estudo, uma expressão que, como falam, é, em certo modo, grosseira. O correto e preferível é manifestar sua satisfação ou surpresa dizendo そですか = sodeska. É pouca a diferença, tiraram o verbo da frase, fizeram de algo bonito algo que não deve ser cultivado”. Usei todo o japonês que eu sabia e manifestei meus agradecimentos ao professor Hisao Tanabe que centena de vezes foi por mim lembrado, não por ter sido meu mestre na Geidai, mas por ter me preparado para não mais ser grosseiro com quem conheci nos anos de Japão.

 

[i] Jyogaoka é um dos mais aprazíveis bairros residenciais de Tokyo, com ligação ferroviária direta com a cidade de Kamakura, onde está uma das maiores e mais conhecidas estatuas de Buda.

[ii] Gagaku, literalmente "música elegante"), é a música clássica praticada na corte imperial do Japão, em três formas de apresentação:  = kangen = apenas instrumentos e 舞楽 = bugaku = é o kangen acompanhando danças; かいお = kayo = música vocal.


 [V1]

Comentarios

Roseli k. Shiroma  - 04/04/2025

Eu conheci o trabalho do prof. Vinholes devido aos meus trabalhos de Iniciação Científica em Educação Musical. Tenho interesse em conhecer as experiências do Prof. Vinholes no Japão porque se tratam sobre música e sobre o país dos meus avós paternos, sendo que meu avô era de Okinawa e minha avó de Hiroshima.

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