A PROXIMIDADE DOS COMPOSITORES GIL NUNO VAZ E MARIO DE SOUZA MAIA
L. C. Vinholes
07.06.2025
Na mensagem de 21.02.2007, o compositor Gil Nuno Vaz não só informava que estava colaborando com o compositor Mario de Souza Maia, como também me oferecia cópia de parte do depoimento a este enviado em 02.06.1997, especificando um pouco mais as associações que havia feito com meu poema es tu do es tu do e algo sobre como veio a conhecer-me e a conhecer essa minha obra. Naquela época, Mario estava envolvido na redação de sua dissertação Serialismo, Tempo-Espaço e Aleatoriedade – A obra do compositor Luiz Carlos Lessa Vinholes, requisito parcial para Mestrado ao Curso de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, apresentada em 1999.
Na época em que desenvolvia seu trabalho, Mario Maia se valia de todos e de tudo que lhe facilitasse novas informações para chegar à meta de conhecer minha produção musical e, como de fato ocorreu, dividi-la nas três fases definidas: serialismo, tempo-espaço aleatoriedade.
Por outro lado, distante fisicamente, mas próximo pela afinidade pelo interesse que demonstrava por meus trabalhos em música e poesia, surge o compositor, poeta e cineasta santista Gil Nuno Vaz disposto a compartilhar o que pensa e o que faz.
Vejamos o que escreveu Gil.
Sempre com a sua desenvoltura e domínio de linguagem e invejável memória, Gil inicia sua menagem confessando: “não me lembro exatamente quando conheci Vinholes. O primeiro contato com a sua produção foi através da apostila Introdução à Acústica[i] (1957) feita em coautoria com Antonio Galvão Novaes e Brasil Eugênio da Rocha Brito. Isso foi em 1969, quando Brasil da Rocha Brito ministrou um curso de música voltado para questões estéticas emergentes, como a valorização do som enquanto fenômeno acústico, a música concreta e eletrônica, o uso de microtons, e as novas linguagens resultantes da incorporação desse material ao universo da música. O curso foi solicitado por um grupo de músicos participantes de um festival de música popular, realizado em Santos, do qual Brasil fez parte do júri, e eu participei como compositor”.
“A apostila foi distribuída no referido curso, que se estendeu até princípios de 1970. O curso, na realidade, sofreu um esvaziamento progressivo, acredito que por exigir conhecimentos e pressupor inquietações estéticas que não estavam no campo das preocupações da maioria dos participantes, ligados à área da música popular. Em consequência, deixou de ser ministrado no Conservatório Lavignac, onde vinha sendo realizado, e passou a acontecer na residência do Brasil, transformando-se praticamente em reuniões para se conversar sobre música. Por curiosidade: ao final, apenas ficaram eu e um jornalista da cidade, que depois viria a ser conhecido nacionalmente pela sua atuação na TV Globo, Carlos Monforte”[ii].
“Depois, fiquei conhecendo a sua produção poética e suas ideias musicais, como as estruturas "espaço-tempo"[iii]. Cheguei a me corresponder[iv] algumas vezes com Vinholes, uma delas quando pensei em realizar um trabalho com texto e fotografia (projeção de slides), em que entrava o poema caminho caminhos caminho[v] entremeado com fotos sobre gatos.
“O pensamento musical de Vinholes me agradava pela concisão e pela busca de um sistema ou modo de composição próprio. Embora minhas preocupações musicais me levassem a caminhos diferentes das propostas de Vinholes, acredito que o sentido da busca pela concisão tenha sido reforçado pelo contato com as ideias dele.
“Um outro poema de Vinholes que me marcou foi es tu do es tu do:
es
es tu
es tu do
es tu do es
es tu do es tu
es tu do es tu do
“’O texto duplica a palavra “estudo”, colocando uma em sequência da outra, divide-a em sílabas, oferecendo várias possibilidades de leitura, a partir das palavras que emergem da fragmentação silábica. Pode ser lido como uma afirmação: “estudo, és tu”(ou em outra ordem, “és tudo, estudo”). Pode ainda ser interpretado como uma interrogação: “és tu doestudo?. Ou “és tudo, estudo?”. Ou, falado, pode sugerir outras acepções, como "ex tudo", ou "eis tudo".
“O trabalho musical em cima deste poema começou em meados dos anos 70.
“Em 1976, finalizei uma ideia para voz e piano, que era no fundo um jogo de retrogradação musical, processo que me ocupou bastante na época, e que resultou posteriormente na concepção do programa Cancrizans, para o Madrigal Ars Viva, e um livro (No Olvido do Tempo/No Ouvido do Tempo, publicado em 1984, do qual envio-lhe um exemplar). Essa peça, entretanto, era uma ideia desvinculada da sua possibilidade de realização musical. A afinação da voz exigiria um cantor de ouvido absoluto, e com muito poder de concentração para realizar a sua parte junto com as intervenções do piano. Em função disso, foi abandonada. Fiz ainda uma variação dessa ideia de retrogradação, conjugada com espelhamento e suas respectivas inversões, mas que também ficou apenas como estudo.
“Em 1979, voltei ao poema dentro de uma concepção de música aleatória. Propunha deixar ao intérprete a decisão de escolher a ordem de leitura do poema, a partir de uma disposição gráfica dos motivos baseada no poema. O intérprete escreveria um pequeno tema para cada sílaba (três temas, portanto). Surgiu aí a sugestão de que um tema fosse baseado em um acorde de tríade maior, outro em um acorde de tríade menor e o terceiro em um acorde ou sucessão de tons inteiros. A sugestão veio com a lembrança da série do Concerto para Violino, de Alban Berg. Devo ter estabelecido alguma associação entre aquela série com a disposição gráfica da palavra "estudo" no poema. São doze letras, agrupadas duas a duas, que resultam de uma duplicação. A série é formada por três grupos (acordes maior, menor e de tons inteiros), em que os dois primeiros são duplicados. Não é uma correspondência muito estreita, mas o fato é que a relação foi estabelecida no meu pensamento. E, de certo modo, mantinha alguma proximidade com a concepção bastante peculiar das relações entre texto e música em Vinholes. A peça Espaço-Tempo XVI[vi] exemplifica bem essa característica. No propósito de atribuir a cada som verbal um som musical específico, Vinholes vinculou cada som vocal (vogais e consoantes) do poema de Haroldo de Campos a uma determinada nota musical.
“Ao pretender compor a partir desse poema de Vinholes, refleti muito sobre a possibilidade de desenvolver ligações bastante estreitas entre texto e música. E essa relação entre cada sílaba e um determinado clima acústico foi o modo que achei conveniente para o poema. Essa concepção, entretanto, jamais chegou a ser realizada.
“Em 1990, o Madrigal Ars Viva assumiu o compromisso de um programa com peças inéditas dos compositores mais ligados ao grupo (Gilberto Mendes, Roberto Martins e eu), para o qual resolvi voltar ao poema. A composição foi estreada no dia 25.08.1990 (no programa, infelizmente, não constou o nome do autor do poema).
“Nesta versão pretendi desenvolver um "estudo" musical de obras vocais representativas de diversas épocas da história da música ocidental, começando com um Benedicamus Domino medieval, trechos do Jeu de Robin et Marion, de Adam de La Halle, Scaldava Il Sol, de Luca Marenzio, incluindo um trecho do coral Es ist genug (Cantata nº. 60, de Bach), utilizado por Alban Berg em seu Concerto para Violino e orquestra (1935), bem como a série de doze notas desta peça, além de trecho da peça Paisagem Mural[vii], de Vinholes.
“No entanto, o resultado não me agradou. Ficou muito longa e confusa, não batia com a limpidez do poema, enxuto. Em 1996, voltei à peça, conseguindo um resultado que me deixou satisfeito.
“Buscando manter o caráter de estudo musical, reduzi as peças selecionadas ao Benedicamus Domino, um trecho do Jeu de Robin et Marion, de Adam de La Halle, e outro de Scaldava Il Sol, de Luca Marenzio. Enquanto o poema vai se desenrolando, esses fragmentos vão sendo apresentados, nas tonalidades sugeridas pela série do Concerto para Violino, de Alban Berg, transposta uma quarta abaixo para melhor adequação às vozes. A duplicação da palavra "estudo" é assinalada musicalmente pela apresentação de acordes que seguem a ordem da série.
“Musicalmente, cria uma expectativa pelo sequenciamento temporal. Alguém, ou alguma coisa, começa a ser definido: "és". No verso seguinte, fica caracterizado um alguém: "és tu". Já no terceiro verso, a caracterização se abre para uma qualificação: "és tudo", lançando uma dúvida sobre o sujeito da declaração, se alguém ou alguma coisa. Abre-se inclusive até uma suspeita de uma declaração amorosa. Com o início da duplicação da palavra, um novo sentido torna-se possível: "estudo és", como se a declaração indicasse o sujeito como estudo. Isso fica reforçado no verso seguinte: "estudo és tu". E, no verso final, o "estudo" passa a ser o sujeito da proposição "estudo, és tudo".
Em 13.10.1997 Gil me dá notícia de que “O Madrigal Ars Viva está preparando um CD que vai ser subvencionado pela Secretaria de Cultura do Estado de S. Paulo, que aprovou recentemente o nosso projeto submetido à Lei de Incentivo Cultural (LINC)[viii]. O repertório é composto de peças minhas, de Gilberto Mendes, Roberto Martins e Almeida Prado.
“Uma das minhas peças é baseada no seu poema es tu do es tu do que tem me servido de desafio há mais de duas décadas. Encaminho também em anexo o texto do depoimento que fiz ao Prof. Mario de Souza Maia, como subsídio para a tese que está desenvolvendo. Ali fiz algumas reflexões sobre essa longa convivência com o poema.
“Para que o disco possa ser viabilizado, necessitamos apresentar à Secretaria declarações dos autores, concordando com o registro e difusão de sua obra, bem como liberando de direitos autorais os responsáveis pelo projeto. Peço, portanto, a gentileza de me encaminhar tal declaração, se possível até o dia 25. No propósito de facilitar, estou encaminhando um modelo[ix].
“No CD do Madrigal Ars Nova estão gravadas as seguintes obras: Requiem para Guido de Arezzo, Requiem, Gravitando, canção de cor, es tu do es tu do e Samba-Exaltação, respetivamente, com textos de Paulo Diácono e Gil Nuno Vaz; Requiem, litúrgico e Raul de Leoni; Gravitando e Canção de cor, de Gil; es tu do es tu do, de L. C. Vinholes; e Samba-Exaltação também de Nuno.
“Do mesmo CD figuram obras de Gilberto Mendes, Roberto Martins e Almeida Prado
Uma nova gravação
Em 16.10.1997, Gil Nuno Vaz anuncia uma nova gravação: “O Madrigal Ars Viva está preparando um CD, subvencionado pela Secretaria de Cultura do Estado de S. Paulo, que aprovou recentemente o nosso projeto submetido à Lei de Incentivo Cultural (LINC). O repertório é composto de peças de Gilberto Mendes, Roberto Martins, Almeida Prado e minhas, uma das quais é baseada no seu poema es tu do es tu do.
“Não pude ainda atender ao seu pedido de dezembro, por problemas de recuperação de arquivos no computador. Acredito que em breve poderei juntar todo o material e enviá-lo para você, com a partitura da composição.
[i] O título completo é: Introdução à Acústica, para os que fazem e gostam de música.
[iii] Teoria Tempo-Espaço, técnica de composição apresentada em uma série de três conferências realizadas na Escola Livre de Música da Pró Arte, em São Paulo, em setembro de 1956, sob patrocínio do Grêmio Béla Bártrok.
[iv] Entre abril de 1995 e setembro de 1996, estive lotado no Consulado GEral do Brasil em Milão, responsável pelo Setor Cultural e de Divulgação, para implementar o projeto de criação do Instituto Brasil-Itália (IBRIT).
[v] caminho caminhos caminho, com o substantivo escrito linearmente na horizontal ou em três linhas superpostas, foi criado em novembro de 1957; exibido na exposição Poesia Concreta Brasileira, no Museu de Arte Moderna de Tokyo entre 16 e 24/04/1960; e, em dezembro de 1960, publicado em cartão postal.
[vi] Tempo-Espaço XVI, de 1980, para flauta e voz, com o poema sol e sal, de H\rodo de Campos, foi publicado pela Editora Novas Metas, de Sã Paulo, em 1982.
[vii] Paisagem mural, de 1955, para quarteto de cordas e voz, Edição Coleção Shin Nippaku, Tokyo (1967), usa o texto homônimo do poema de Lilian Schwartzkopff
[viii] Lei nº 8.813, de 1991 mais conhecida como Lei Rouanet,nomeada em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, diplomata e Secretário Nacional de Cultura em 1991 e 1992.