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Artigos-->O REPROVÁVEL CAFÉ LAMEGO E JACINTHO CRUZ -- 22/12/2025 - 17:30 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O REPROVÁVEL CAFÉ LAMEGO E JACINTHO CRUZ

L. C. Vinholes

22.12.2025

A prazerosa leitura do livro o 2 Batutas de Pelotas, da jornalista e historiadora Lúcia Bandeira Karam, em suas páginas, reservava para um momento de sofrida recordação quando, despretensiosamente, informa que “Do Coro da Catedral, na década de 40 participavam como tenores Jacinto Cruz, o músico e aluno Luiz Carlos Lessa Vinholes e o seu filho Pedro Bandeira”. Este último era também contrabaixista, filho mais velho do maestro José Duprat Pinto Bandeira, nascido em Pelotas; eu, Vinholes, embora informalmente, já recebia valiosos ensinamentos do maestro Bandeira; e Cruz, que no documento do batismo era Jacintho Chagas Trindade (entre amigos tratado por Cruz) o único preto do coro, amigo exemplar, por todos admirado pela sua educação e trato, e estimado, inclusive e especialmente, pelo maestro José Bandeira, regente responsável pela disciplina, êxito e aceitação do Coro, conjunto vocal indispensável não só nas missas, mas também nos demais ofícios religiosos. Gostaria de lembrar que, esporadicamente, entre as vozes dos cantores também se fazia presente a do tenor Carlos Camoralli, dono de uma voz educada e de tecitura invejável.

No aprazível entardecer de outono, quando o sol começava a desaparecer no horizonte, pela escadaria de mármore que liga o segundo andar onde está o Salão Nobre da Biblioteca Pública Pelotense, começavam a descer os músicos e curiosos que participaram do ensaio da Orquestra Sinfônica da Sociedade Orquestral de Pelotas. Na calçada em frente à porta de entrada da Biblioteca que dá para a Praça Coronel Pedro Osório, todos se despediam e rumavam para seus destinos onde, certamente, descansariam das tarefas do dia.

Os amigos Cruz e Pedro Bandeira seguiriam juntos pela Rua 15, pelo menos até a pequena praça dos fundos da Catedral Metropolitana onde cada um seguiria seu caminho.

Chocante evento no Café Lamego

Ao se aproximar da entrada do Café Lamego, Pedro sugeriu fazerem um lanche ou tomarem um simples café reforçado. Entraram no luxuoso e moderno estabelecimento fundado em 1945, na Rua 15 de Novembro Nº 558, e se sentaram nas cadeiras de uma das mesas ainda disponível e aguardaram por um dos garçons. Não demorou muito a chegar um dos empregados de casaco branco e gravata borboleta, que, como cochichando no ouvido de Pedro, friamente informou: “aqui não servimos a pessoas pretas” e, em pé, sem se afastar, ficou aguardando que os dois se retirassem. Não sei o que e como Pedro transmitiu a Cruz o que ouvira, mas só sei que, dias depois, o assunto era motivo da tristeza, insatisfação, revolta e conversa do maestro Bandeira, Pedro, Cruz e eu, na residência, da Rua Feliz da Cunha, mesmo sem sabermos o que fazer para reverter aquela insuportável e abjeta situação. Para que se entenda o que até muito recentemente esteve letargicamente guardado entre as quatro paredes do Café Lamego, é indispensável saber que o proprietário responsável pela orientação dada aos funcionários daquele negócio era Ramiro Rodrigues, o português recém-chegado, ainda respirando os odores do falso descobrimento que vitimou os africanos arrancados de seus ambientes para serem explorados e enriquecerem algozes impiedosos. O mesmo ambiente passou a ter guarida no não muito distante Café Aquário então fundado por Ramiro e outros proprietários.

Naquela tarde de outono, difícil de esquecer, Pedro dirigiu-se à casa de seus pais José e Raquel e Cruz, passo a passo caminhou até à Rua Frederico Bastos Nº 191, onde, acolhido pela família, Carmen Lúcia e suas netas Daiana e Camila, com quem certamente compartilhou sua maldita experiencia.

                                              Lembranças de Cruz

         A citação do nome de Cruz no antológico livro de Lúcia Bandeira Karam, sacudiu minha memória e fez com que eu procurasse o que estaria no HD de meu computador. Encontrei não só as cartas de 31 de janeiro de 2007 e de 10 de abril de 2008, nesta última informando que, fugindo de muita chuva em Brasília, na programada estada em Pelotas, Helena e eu estaríamos hospedados uns 20 dias na casa de minha irmã para termos oportunidade de nos encontrar para um encontro histórico depois de tantas décadas em que o tempo e as circunstâncias não permitiram nem mesmo termos notícias um do outro. Prometi telefonar no dia 17 o que não deixou de acontecer. Nos meus guardados, encontrei ainda as fotos de 07 de maio de 2008 que reproduzo a seguir:

 

 

Os amigos Cruz e Vinholes no pátio da casa de Zaira e Sérgio

 

Outra providência que tomei foi telefonar para a casa de Cruz. Fui atendido pela filha senhora Carmen Lúcia, que, ouvindo minha voz, lembrou meu nome e minha visita de 2008 e com ela, prazerosamente, alimentamos o longo diálogo que tivemos, durante o qual informou ter 65 anos de idade, ser psicóloga, ainda em atividade, e ter duas filhas. Fiquei também sabendo que, em família, meu amigo não era tratado por Cruz, mas sim por Jacintho, que nasceu no Município de Campo Novo, RS, em 01.04.1924, estudou na Escola Técnica e faleceu em Pelotas em 13.07.2019; era marceneiro, foi casado com Aida Leal Trindade, costureira de mão cheia, hoje seria chamada de modista, e que Tália, sua dócil e fiel cachorrinha de estimação, companheira de tantas tardes - não a musa da comédia grega -, sobreviveu ao seu tutor em pouco mais de três anos.

Para ver a importância e o valor que Jacintho e sua família sempre deram aos estudos e à educação, basta conhecer o que, com satisfação e justificável orgulho, informam suas netas Daiana Trindade Furtado e Camila Trindade Coelho.

Daiana diz: sou Mestranda em Ciências da Educação pelo Centro Universitário Salesiano de Vitória, ES (UNISAL), pós graduada em metodologia do ensino em Filosofia e Sociologia pela Faculdade UNINA e Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), vice-presidente suplente do Conselho Municipal de Política Étnico Racial (Comper), professora do Canal Futura com conteúdo educativo elaborado de parceria com a Fundação Roberto Marinho e Diretora da Associação Cultural Bloco Afro Pretinhosidade de Curitiba, integrante do movimento Mulheres Negras Decidem. 

Camila responde: sou Enfermeira, Mestra em Ciências pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e, atualmente, Doutoranda no Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atuo como Professora Substituta no Departamento de Enfermagem e sou Bolsista Capes. 

História dos Cafés de Pelotas

Certa ocasião, uma pessoa amiga, encarregada de transmitir-me um pedido de alguém do Clube do Livro que costumava marcar reunião na sede da Academia Pelotense de Letras, procurou-me para que fizesse um relato sobre as atividades do maestro José Duprat Pinto Bandeira no Café Lamego, onde costumava apresentar-se com outros músicos, tocando seu contrabaixo, instrumento que dominava exemplarmente, tanto quanto o violino e a viola.

A prestigiada Academia Pelotense de Letras (Acapel) fundada em 1999, com acolhedora sede no Parque Dom Antônio Zattera, conta com 40 acadêmicos titulares e 20 honorários e, como outras similares, promove atividades inerentes à cultura, à literatura e certames como o Concurso Literário Professora Zênia de Leon de 2025, homenageando a saudosa escritora e comemorado os 150 anos da Biblioteca Pública Pelotense.

O relato solicitado, caso eu o fizesse, seria utilizado no texto que trataria da História dos Cafés de Pelotas. Como sempre, não deixo de atender pedidos que me sejam feitos, especialmente sobre assuntos que eu acredite ter alguma familiaridade. Nunca toquei algum instrumento no Café Lamego com os músicos que ali ganhavam alguns trocados extras para facilitar suas despesas do dia a dia, mas inúmeras vezes, ali estive em companhia de amigos ou até mesmo só, para ouvir um seleto repertório de música dita popular, executada pelo que de melhor Pelotas podia oferecer. Nesse caso específico, tomei apenas cuidados: levando em consideração que o pedido era feito por uma senhora idosa, com idade próxima a de minha mãe, a ela eu deveria tratar com respeito e fidalguia, não deixando de informa-la sobre o reprovável evento ali ocorrido; por intermédio da pessoa que me passou o recado, prometi atender ao pedido que recebera na condição que, no texto visando retratar a História dos Cafés de Pelotas, espaço fosse reservado para incluir a indispensável informação sobre o reprovável tratamento dado a um pelotense músico, com serviços prestados à comunidade católica, pessoa admirada e bem quista por quem com ela convivia.

O tempo passou, mas acredito que minha decisão foi transmitida e sabiamente acolhida, pois nunca mais ouvi falar em algo que se parecesse com uma História dos Cafés de Pelotas.

Cruz e Dominguinhos

Dominguinhos era um congolês que, vindo da África como escravo, passou por Salvador e Rio Grande antes de chegar a Pelotas onde, alegremente, cantava, ria e dançava pelas ruas, até sua morte em 1915, aos 107 anos, tempo no qual “a alegria do pequeno homem não era compreendida, diante da vida miserável que levava”.

Mas o que tem a ver a história do tenor Cruz com a de Dominguinhos? A resposta parece estar escondida no final de uma crônica publicada na página Memórias, pela perspicaz jornalista Ana Claudia Dias, no jornal A Hora Do Sul, de 20/21 de novembro deste ano, recordando o que diz o professor e militante, poeta e saudoso gaúcho Oliveira Ferreira da Silveira: “reconhecer essas histórias é um ato político: é devolver humanidade e centralidade a pessoas que foram reduzidas a números, propriedades, apelidos ou breves notas de jornal”.

Esquecer não é fácil, era refrão silencioso

 

Muitos anos se passaram, muito apoio oferecido, mas na memória e nas lembranças de Jacintho não silenciavam aqueles minutos vividos em pleno centro da cidade onde morava, trabalhava e constituíra família.

Certa vez, notando o abatimento do companheiro de cantoria da Catedral, decidi com ele conversar a respeito do que lhe afligia. Chegou o momento de propor que fizesse uma gravação para superar e se livrar daquele passado incômodo. A proposta foi aceita e logo providenciei os primeiros contatos com o amigo Mario Maia, ágil professor do Centro de Artes da UFPel.

Graças à proverbial dedicação do professor Mario, foi possível localizar a antiga gravação, mas, infelizmente, as novas tecnologias e os equipamentos disponíveis não possibilitam acesso ao conteúdo gravado. Por este motivo, quero deixar registrado que a histórica entrevista de Cruz é fato que, por enquanto, não será compartilhado.

Lembranças em mais duas fotos

 

Antes de dar por terminado este artigo, quero compartilhar com os leitores mais duas fotos que guardo em meus arquivos. Na de 21 de setembro de 2016 estou com Cruz, na casa do Fragata[ii], tendo ao fundo um quadro de fotos montado por Carmen Lúcia; no centro um retrato dela mesma num desenho a lápis, e, na moldura menor, também a lápis, o sorridente rosto de uma de suas filhas. Na segunda foto, sem a data em que foi tirada, aparece Cruz com alguns de seus companheiros em Pelotas. Hoje, depois de tanto tempo, vejo que talvez não se consiga conhecer o nome de todos. Entretanto, lembro que todos eram parceiros do Coro da Catedral e do Teatro[iii] Escola. Os “x” utilizados na foto são os nomes não identificados: “x”, Jacintho, “x”, “x”, padre Afonso Mazzara Bandeira[iv], Adão Pereira[v], João Bandeira[vi] (em pé), Luiz Carlos Correia da Silva[vii], “x” e “x”.

 

Jacintho Chagas Trindade e L. C. Vinholes

 

 

PS[viii]

 

É auspicioso verificar que de todas as maneiras, das formas mais variadas, em todos os cantos do Brasil, há algum tempo se ensaia escrever a nossa verdadeira história e deixar registrado para as futuras gerações quem, de fato, se dedicou ao trabalho, com dedicação e afinco, construindo o tanto que ficou conhecido principalmente, mas não só, graças à cana de açúcar, ao café e às charqueadas, com empenho de laboriosos braços africanos e de seus descendentes e de nativos de todos os rincões das terras que formavam o Brasil do passado e formarão o do nosso futuro. Não esquecemos que, em diversos momentos, fugindo de adversidades e guerras nas nações modernas, o Brasil também acolheu emigrantes que aqui se estabeleceram e aqui plantaram raízes, ajudando a definir o Brasil dos nossos dias.

Apesar de opiniões avessas, que venham mais cotas, mais bolsas, mais ENEMs, mais Encceja, mais universidades, menos racismo social mais atabaques e, principalmente, mais leis e políticas públicas e Governo que acabe com o Racismo Estrutural.

 

[i] Zaira e Sérgio, irmã e saudoso cunhado de L. C. Vinholes.

[ii] Fragata é um dos bairros mais antigos e prósperos de Pelotas onde, em 1943, o presidente Getúlio Vargas inaugurou a primeira Escola Técnica Profissional do Brasil.

[iii] Teatro Escola fundado por Calos Alberto Mota que se assinava Ivy, exímio declamador. Modista casado com a pintora Bebete Casareto.

[iv] Padre Afonso Mazzara Bandeira era o mais antigo dos sacerdotes formados no Seminário Diocesano de Pelotas e foi vigário na Paróquia São Francisco de Paula (Catedral Metropolitana).

[v] Adão Pereira, violinista e pianista, ex-aluno de Olga Fossati e Milton e Lemos, foi Spalla da Orquestra Sinfônica de Pelotas e diretor do Conservatório onde estudou.

[vi] João Bandeira contrabaixista, filho do maestro José Duprat Pinto Bandeira, nascido em Rosário da Santa Fé, na Argentina.

[vii] Luiz Carlos Correa da Silva, membro fundador do Teatro Escola, casado com a soprano Suzane Pereira, professor de matemática e diretor do Colégio Municipal Pelotense.

[viii] PS ou, por extenso, Post Scriptum, clássica expressão latina que significa algo a acrescentar, a adicionar, ampliando algo que foi dito.

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