A METALINGUAGEM NA OBRA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS: UMA LEITURA DO LIVRO
RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA.
EDNA PEREIRA SILVA DE MENEZES
INTRODUÇÃO:
A leitura do livro Retrato do artista quando coisa, do poeta Manoel de Barros, que orienta o presente artigo é determinada pela metalinguagem, ou seja, pela palavra que reflete sobre si mesma. Neste trabalho buscamos mapear o processo auto-reflexivo da palavra, o qual entrecorta toda a obra. Em Manoel de Barros a auto-reflexão explora o espaço racionalizado das palavras em seu percurso de rastreamento da realidade do chão, e ainda faz reflexões sobre a posição do poeta-criador e seu papel diante da estrutura da obra. Assim, vamos encontrar uma poética na qual circula um diálogo que induz ao ato da concepção da poesia e à consciência de que a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz de elaborar uma nova visão do mundo.
Sob essa ótica, veremos em Retrato do artista quando coisa, a palavra em um processo metalingüístico, noção em torno da qual balizaremos nossas considerações. A leitura que propomos perpassa por dois momentos: a fragmentação e a recriação do universo pela poesia.
A fragmentação e recriação do universo pela palavra poética
Segundo Roman Jakobson, o estudo da linguagem pertence ao pequeno número dos mais antigos ramos do conhecimento. Quatro milênios nos separam dos primeiros escritos gramaticais conhecidos que ainda resistem à ação do tempo. A prática dos estudos relativos à lingüística é tradição variada e contínua desde a antigüidade indo-greca. Tais estudos puderam evoluir através de importantes conquistas de estudiosos da Idade Média, do Renascimento, da era do racionalismo e da Ilustração e, por fim, das múltiplas tendências dos estudos dos dois últimos séculos.
Outrossim, Roland Barthes salienta que, durante séculos, os escritores ocidentais não imaginavam que fosse viável considerar a literatura como uma linguagem passível, como qualquer outra linguagem, de análise sistemática. A literatura não tecia reflexões sobre si mesma, não se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado; em suma, ela atuava como reflexão sobre o universo, mas não se refletia.
Nesse contexto de reflexão sobre a linguagem, manifesta-se a função metalingüística ou metalinguagem. O termo agrupa a palavra “linguagem” com o prefixo “meta”, que significa “transformação, transposição, transcendência, posteridade e sucessão.” E ainda, o prefixo grego “meta”, que em lingüística indica união, sucessão, transformação. Da mesma forma, também compõe palavras tais como “metamorfose’, que ao reunir “meta” (além de) e “forma”, significa “mudança de uma figura ou forma para outra; modificação, transformação; mudança dos aspectos.” Portanto metalinguagem é um fenômeno da linguagem, pois,
a linguagem tem função metalingüística quando discorre sobre o seu próprio conteúdo. É, na verdade, a própria linguagem que está em jogo. O emissor utiliza-se do código lingüístico para transmitir suas reflexões sobre ele mesmo. O que ocorre é que a própria linguagem é discutida e posta em destaque. O emprego da função metalingüística em literatura discute a própria criação artística.
No que se refere aos estudos metalingüísticos no Brasil, Mendonça Teles afirma que o professor Sílvio Elia, em seu livro Orientações da lingüística moderna, de 1965, foi um dos primeiros a divulgar a palavra “metalinguagem” entre os estudiosos da ciência da linguagem. Assim como o foi também o concretista Haroldo de Campos, com seu livro Metalinguagem, editado em 1979. Metalinguagem, portanto, é uma palavra recente, embora, afirme Mendonça Teles que “o fenômeno por ela designado já viesse ocupando a atenção de estudiosos como Ogden e Richards em 1939 e por Alceu Amoroso Lima em 1944.”
Quanto ao aspecto das relações metalingüísticas entre as diversas manifestações artísticas, Mikel Dufrenne afirma que “não há dúvida de que toda representação artística está aberta às influências do ambiente [...]”, assim sendo, a metalinguagem insurge-se em todas as ramificações de arte e permite que estas entreteçam considerações mútuas.
Com relação à metalinguagem na Literatura Brasileira, conforme observa ainda Gilberto Mendonça Teles, a abordagem sobre o assunto inicia-se com especulações sobre a poética da repetição de Carlos Drummond de Andrade e é encontrada em todos os períodos literários. No vasto rol de escritores e poetas que fizeram e fazem uso do recurso da auto-reflexão poética, insere-se brilhantemente o poeta Manoel de Barros, que instaura, em sua poesia, um ato reflexivo no qual a palavra retorna à fonte original para recuperar a linguagem perdida. Por conseguinte, o poeta quer subtrair a linguagem do seu uso cotidiano e nesse ato de subtração da linguagem ao lugar comum, o poeta diz que ele:
“Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês” (rac, p. 17)
Nesse verso, a palavra reflete sobre si mesma e sobre sua relação com o poeta, pois, ao dizer que as “palavras” vão arrancar o “poeta” de dentro dele, o verso manifesta o bardo na lida de tirar as palavras quotidianas de seu estado de inércia. E para tal, por vezes se faz necessário ser “arrancado” de dentro de si mesmo de forma violenta. Uma sucinta análise das palavras “torquês” e “arrancar”, deixaria perceber tratar-se de noções que remetem à violência, e que exprimem a veemência de extração das palavras. Assim, o termo “torquês”, instrumento de ferro similar ao alicate, e o verbo “arrancar”, ou seja, tirar ou fazer sair com força, remetem a algo conseguido com sacrifício e perseverança. Portanto, o ato de se arrancar algo com violência sugere a imagem de fragmentação, visto que, normalmente, a “torquês” é usada para fragmentar materiais. Se a palavra tem o poder de “arrancar” alguém de dentro de si, com certeza, é através da manipulação dessa palavra que o poeta instaura a fragmentação do universo, e inclinado sobre o seu labor alega que:
“... Tenho que laspear verbo por verbo até alcançar
o meu aspro.”( rac, p. 21)
Aqui se chega ao ápice do processo de fragmentação, pois, se partirmos do preceito de que “laspear” é um verbo que significa “conquistar” , e que o termo “aspro’ é apenas a corruptela de áspero. E ainda em entrevista, o próprio Manoel de Barros afirmou que, quando diz “aspro”, é áspero que quer dizer , então, podemos deduzir que o poeta tem que conquistar com violência, “verbo por verbo”, até atingir a palavra escabrosa, ou seja, aquela oposta às conveniências.
Todavia, é possível que “aspro”, seja a corruptela do termo “asporo”, (do grego asporos), que quer dizer, em botânica, “sem semente” , ou seja, sem a parte central. E, se é na parte central que deveria estar a semente, parte reprodutiva que permite a renovação da vida, então podemos dizer que o termo “asporo” remete à parte central, ao núcleo. Ora, se é do núcleo que se origina a vida, logo, em Manoel de Barros “aspro” é a afirmação de que a fragmentação do universo deve visar ao núcleo das coisas, para a partir daí atingir e reiniciar o movimento de recriação.
O processo de recriação do universo passa, inelutavelmente, pela linguagem, pois, se a palavra é o instrumento da fragmentação, o é também da recriação. Portanto, a palavra é essencial para a realização da recriação ou segunda criação do universo. Em Manoel de Barros encontramos uma poética alicerçada sob uma proposta crítica que vai recriando o mundo a cada verso, e a palavra que procede a recriação do universo reflete sobre si mesma e permite ao poeta dizer:
“Experimento o gozo de criar”( rac, 21)
Não há dúvidas de que esse verso abre vereda à leitura de recriação do cosmo pela palavra, pois através dela o poeta retira do caos a forma e ordena o disperso em um “faça-se a luz” . E de forma consciente de seu poder de manipular as palavras, dá-nos a conhecer seu deleite de “criar”. Assim, o verso remete-nos à leitura sobre criação poética de Michel Ribon, na qual ele argumenta que, “se conceber, querer e criar são a mesma coisa, então a condição do poeta assemelha-se à de Deus”. Se, por uma lado vemos a palavra sendo laboriosamente trabalhada na fragmentação do universo para alcançar o antes do verbo, o “antesmente verbal”, por outro lado o poeta imita o gesto criador de Deus e acrescenta à criação uma nova criação, a recriação do universo pela palavra. E, conjugando no mesmo espaço, as imagens da recriação e a auto-reflexão da linguagem diz:
“Experimento o gozo de Deus”. ( rac, 21)
O verso traz, impregnado em si, uma forte carga das misteriosas leis do universo. O gozo da criação eleva o poeta além da razão pura, eleva-o ao poder supremo, ao dom da criação. O poder de criar ou poder demiurgico leva o poeta-criador ao “gozo de Deus”. Porém, a recriação do cosmos pela poesia não é uma cópia da primeira criação, mas uma fabricação verdadeira de um mundo à imagem do primeiro, de forma a torná-lo inteligível. E ao trazer a lume este novo universo, o poeta diz que:
“Sou capaz de inventar um lagarto a partir de
uma pedra”. (rac, 21)
Dizemos, não por suposição, que o Ser da poética que atua em Manoel de Barros é um inventor, pois ele mesmo se diz “inventor”, porém, antes de “inventar”, que é usar uma noção já existente para fazer emergir algo novo, permeia-se, em sua fecunda obra, o criar e o recriar. Aqui, ao dizer que inventa “um lagarto” e a matéria prima é a “pedra”, o poeta, em sua recriação do universo, arranca seres do estado estático, inanimado e os conduz ao um estado animado. Podemos perceber então, que o poeta utiliza seu poder demiúrgico para transformar um mineral “pedra” em animal “lagarto”. No entanto, dentro de um raciocínio metalingüístico, podemos considerar que o poeta, ao utilizar a “pedra”, ser perene para “inventar”, está edificando a eternização da palavra, pois ao tirar proveito da perenidade do mineral instaura a eternidade da poética. E ainda não satisfeito, continua seu processo de recriação dizendo:
“Sou capaz de inventar uma tarde a partir de
uma garça”. (rac, 21)
Aqui, o poeta vai além dos limites da palavra, o poder demiurgo atinge o atemporal. O poder de criação não repete o ato cotidiano da natureza, mas cria seu próprio estado de sucessão do tempo. Daí, podem resultar conceitos inconcebíveis para o ser humano comum, pois conforme a primeira criação, o dia divide-se em manhã, tarde e noite, um após o outro, mas para o poeta demiurgo, a presença de uma “garça”, ser da natureza, já é motivo para “inventar uma tarde”, independente da ordem primeira do cosmos. E mais uma vez, a indagação metalingüística perpassa o ato de recriação, nesse caso ao refletir sobre “inventar uma tarde”, o ser da poesia é consciente de que é através da palavra que isso se torna possível, pois ela é um ser vivo capaz de criar o inusitado. Nessa perspectiva, a palavra é o único ser que, ao criar o incriado, é capaz de reordenar o universo e ao mesmo tempo falar sobre si mesma. E desse modo auto reflexivo ela será eterna e terá sempre o seu lugar no tempo.
Considerações Finais:
Na busca da linguagem, o poeta Manoel de Barros sugere o processo teórico de sua luta com as palavras, deixando vir à baila os mecanismos internos do poema, instaurando, assim um poema metalingüístico. A metalinguagem em Retrato do artista quando coisa agrega-se à linguagem do verso de tal modo que a palavra torna-se o centro e o objeto, ou seja, é palavra falando sobre palavra. Nessa perspectiva, em nossa leitura encontramos a palavra sendo utilizada pelo poeta como ser capaz de fragmentar e recriar o universo. E não satisfeito em manipular a palavra em tão vasta abrangência, o poeta arrebatado pelo dom da palavra, conduz o seu Retrato de forma tal a alcançar a liberdade total do ser da linguagem, visto que o portentoso poeta sabe que, para tal, é necessário livrar a percepção de todos os entraves que impedem o pensamento de se expandir. É preciso, então, romper com todas as convenções intelectuais, nas suas medidas limitadas da razão. E tal qual um demiurgo, o poeta, no processo de apropriação da palavra, fragmenta e recria o universo, fragmentando também, de forma vigorosa, a sintaxe e a linguagem convencional.
Portanto, Manoel de Barros faz da palavra o símbolo do fazer poético, objeto que se relaciona com o sublime e ao mesmo tempo fala de si mesma, e esta auto-referencialidade manifesta a consciência criadora esboçando sua visão de mundo.
BIBLIOGRAFIA:
Obra Básica:
BARROS, Manoel. O retrato do Artista Quando Coisa. Rio de Janeiro, Record, 1998.
Apoio Metodológico:
ARRIGUCCI Jr, Davi. Paixão Humildade e Morte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo, Perspectiva, 1970.
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem. Rio de Janeiro, Cultrix, 1967.
CHALHULB, Samira. A Metalinguagem. São Paulo, Ática, 1986.
DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo, Perspectiva, 1972.
JAKOBSON, Roman. Lingüística, Poética, Cinema. São Paulo, Perspectiva, 1970.
.
LINS, Augusto Estellita. Diálogo com os Signos da Arte. Brasília, Ser, 1998.
MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo, Saraiva, 1997.
PLATÃO. Crátilo ou Sobre a justeza dos nomes. Trad. do Grego por NUNES, Carlos Alberto. Belém, UFPA, 1988.
RIBON, Michel. A Arte e a Natureza. Trad. de PELLEGRINI, Tânia, São Paulo, Papirus, 1991.
TELES, Gilberto Mendonça. A Retórica do Silêncio. São Paulo, Cultrix/MEC, 1979.
VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Rio de Janeiro, Edições 7o, 1987.
.
Comentarios
Lenir Carvalho Careneiro - 20/08/2024
Ola! texto esclarecedor realizei minha pesquisa com sucesso...obrigada