Saio de casa com estrelas no céu ainda. Não fosse o velho casaco de lã, eu estaria tiritando no vento frio, sombrio e assoviador de deserto. Minha roupa, agora vejo, é toda de presente: a camiseta de estampa floral ganhei de aniversário, a calça não me lembro - mas sei que não compraria jamais esse modelo de bolsos pespontados. O sapato quebra o silêncio com seu chiado inquietante. A bolsa é meu socorro, nela se esconde a minha identidade, em documentos que comprovam minha existência material.
A caminho do ônibus, vou pensando: quem caminha agora é a operária. Se algo me suceder nesse instante, a protagonista não será a mãe, brasileira, dona de casa, admiradora de tanta coisa, desafeta de tantas outras, aquela que tem prato preferido, música, filme. Se alguém me abordasse e no escuro perguntasse que destino eu escolheria... o brilho das estrelas, a solidão da lua, o frio que congela, o ar do momento responderiam por meus lábios.
Quando caminho, sou toda um movimento de pernas - como pesam! -, pés pisando, mão esquerda agarrando a bolsa, a direita ensaiando um balanço protocolar em ritmo com meus passos. Ouvi dizer que as algemas impedem o correr. Comigo não funcionaria esse recurso: sei caminhar sem balançar os braços!
Sou sem trejeitos, penso o peso dos meus gestos. Sinto o cheiro do ar, a ponta do cabelo a fazer cócegas na nuca. Queria roubar a liberdade daquela menina que conta uma historinha à amiga na maior naturalidade, rindo gostosamente com o chiclete na boca. Não tenho tanta espontaneidade. Carrego a sina de me enxergar em primeiro plano em detrimento de todo o cenário. Só em sonhos viajo invisível a meus olhos. É quando tenho, diante de mim, outro quadro do mundo, este pintado por pintores paranormais em transe. Viver pode mesmo ser só uma questão de estilo.