Esquesópolis é um país onde grande parte da população esquece tudo com facilidade. Um de seus Estados mais importante é Armação, onde várias mutretas são montadas para desviar os impostos arrecadados. Mas numa localidade deste Estado, chamada Boa Memória, emancipada há mais de 20 anos (quando se tornou município por força e união de seus 30.000 habitantes), um fato inusitado chama atenção nesta região, dentro do atual cenário de miséria e violência que envolve esta nação: a cadeia com capacidade para 50 pessoas, tem uma média de 2 ocupantes por semestre, que não ficam lá mais de um mês. Já não ocorrem crimes violentos há mais de 18 anos nesta região!
Conta uma lenda, que há 19 anos, a maior companhia de petróleo do País, fez estudos em busca de combustível, mas não obteve êxito. A pedido do fazendeiro Galeno, dono da extensa fazenda, deixou aberto o buraco de 3 metros de diâmetro e quase 200 metros de profundidade. Ele cercou a abertura com lajes de concreto com 4 metros de altura e colocou cadeado com segredo no portão ali instalado. Pintou um aviso com uma caveira, que anunciava perigo de morte para quem penetrasse na área. Nos ouvidos de seu capataz, alertou que se encontrasse alguém a menos de 50 metros do local, seria jogado no buraco. Só era permitido transitar ali, acompanhado do fazendeiro ou com ordem escrita. Nenhum curioso lúcido tinha coragem de violar tal ordem.
Naquela época, ocorriam diversos delitos violentos na cidade. Os facínoras se aproveitavam da justiça emperrada por milhares de processos, receio das testemunhas, advogados sem ideais sociais e policiais corruptos. Galeno (o fazendeiro), Franco (o Juiz da comarca), Felino (o Delegado), Bento (o promotor local), Messias (o enorme preparador físico da equipe de futebol da cidade) e Chaves (o carcereiro da cadeia), eram amigos que tinham algo em comum: parentes mortos em função daquela situação de horror que envolvia o país. Dizem que a partir de uma certa noite, após um torneio de tiro ao alvo, fizeram um pacto para reduzir a violência a níveis suportáveis.
De um certo dia em diante, os ladrões mais perigosos que andavam soltos, começaram a desaparecer misteriosamente. E sempre após a circulação noturna de um furgão preto que sumia lá para os lados da fazenda de Galeno. Também sumiram do mapa, dois dos nove Vereadores, que enriqueceram em um ano apenas, após criarem leis que prejudicavam os lavradores em favor de grandes grupos de atravessadores de alimentos. Ela foi revogada com presteza na semana posterior ao sumiço do segundo legislador. Também desapareceram quatro elementos que aplicaram golpes no comércio local, levando alguns cidadãos honestos para o cadastro de devedores.
Alguns empregados de fazendas vizinhas passaram a dizer que viram urubus circulando regularmente perto do muro de concreto. No entanto, jamais sentiram cheiro estranho na região próxima. Nenhum membro da população da cidade comprovou tal fato. Nem estavam interessados em quebrar o possível encanto de um fato que começava a se transformar em lenda popular.
Começou a correr o boato de que tais pessoas foram engolidas por uma águia dourada que residia no buraco negro, na fazenda de Galeno. O fato é que os pilantras de profissão mudaram de cidade. Os que ainda estavam iniciando a carreira pelo mau caminho, trataram de arranjar trabalho honesto. E a vida tornou-se agradável na região, que prosperou em ritmo de primeiro mundo. Passou a existir respeito mútuo na cidade.
A cadeia só abrigava eventuais ladrões de galinhas, bêbados que se excediam nas festas aos Sábados e garotas de programas que alegavam não terem recebido o valor combinado com o parceiro. O Município fez uma enorme economia na área de segurança pública. A delegacia passou a ser usada até como posto de saúde e escola profissionalizante!
Certa vez, dois vagabundos chegaram ao local, assaltaram o posto de gasolina e deixaram o vigia cego de um olho devido a um tiro disparado apenas por maldade. E atearam fogo ao local por divertimento. Foram apanhados no dia seguinte na estrada das Ardósias, dormindo sob uma frondosa mangueira. Foram levados à delegacia, mas não houve como rete-los, pois não existiam evidências fortes para incrimina-los. Como a noite do assalto estava escura, o vigia só os reconheceu pelo aroma de jasmim que um deles usava e pelo ruído do para-choque do jipe, que estava solto em um dos lados. Mas isto era pouco para mante-los trancados, apesar dos antecedentes criminais que revelavam um sujo passado de ambos por outras localidades, mas sempre escapando pelas frestas da Lei após redução de pena por “bom comportamento”. Saíram às 19 horas com um sorriso debochado nos lábios, em função de um alvará de soltura que apareceu no fax da delegacia no final da tarde. No outro dia, o jipe foi encontrado incendiado no desfiladeiro da Serra Pelada. Nenhum sinal dos dois malandros ou de algum objeto pessoal.
Uma semana depois, apareceu na cidade um tal de Malvano, se dizendo advogado da dupla sumida, à procura de ambos. Contatou o Juiz, o Delegado e o carcereiro em busca de pistas de seus clientes. Estranhou que a resposta de todos indicava que talvez tivessem abandonado o jipe com defeito e usado o ônibus que circulava 8 vezes por dia para o município vizinho. Após pesquisar entre os dois motoristas dos ônibus que faziam o trajeto regularmente e em todas as pousadas num raio de 15 quilômetros, ameaçou ficar na cidade para investigar com mais determinação o paradeiro do par, bem como de outros desaparecidos recentes. Afirmou que ouvira rumores de uma certa lenda e iria decifra-la.
Dizem que naquela noite, ouviram o motor do furgão roncando junto com os trovões e relâmpagos que acompanharam as chuvas torrenciais daquele entardecer frio e sombrio. E o advogado desapareceu no dia seguinte, junto com as nuvens negras que se abriram para mais um belo dia de Sol e felicidade para os moradores de Boa Memória.
Haroldo P. Barboza – Matemático, Analista de computador e Poeta – Julho / 2002
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