HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA CONSTITUCIONAL DO MANDADO DE SEGURANÇA
A República Federativa do Brasil, na vocação constitucional de constituir-se em Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput), tem, como o primeiro de seus objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I) e, para tanto, garante às pessoas o pleno acesso à Justiça na determinação de que "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder" (CF, art. 5º, XXXIV, a), sendo que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (CF, art. 5º, XXXV), impondo-se, no plano dirigente da legislação ordinária, o dever judicial de resolver com rapidez e eficácia, as lides, prevenindo ou reprimindo qualquer ato atentatório à dignidade da Justiça (CPC, arts. 125, I a IV e 126), velando sempre, para que a lei, na materialização dos julgados, atenda aos fins sociais e superiores a que se destina (LICC, art. 5º).
Nessa ótica, afirma Kazuo Watanabe, com inegável razão, que "o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, inscrito no inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal, não assegura apenas o acesso formal aos órgãos judiciários, mas, sim, o acesso à Justiça que propicie a efetiva e tempestiva proteção contra qualquer forma de denegação da Justiça."
A garantia constitucional do mandado de segurança individual ou coletivo, para proteção imediata de direitos líquidos e certos, traz, na armadura eficaz da Lei Maior, a sobregarantia da auto-aplicabilidade instantânea (CF, art. 5º, LXIX e LXX, a e b e parágrafo 1º), outorgando ao Estado-Juiz o poder-dever de antecipação da tutela mandamental, sempre que verifique, na sumarização formal do processo devido, o "direito evidente" da parte, a reclamar imediato provimento jurisdicional, na espécie.
Na conjugação das garantias constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e do pleno acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXIV, a e XXXV) com a do mandado de segurança individual e coletivo (CF, art. 5º, LXIX e LXX), para proteção de direitos líquidos e certos, não amparáveis por habeas-data ou habeas-corpus, que tenham sido violados ou estejam ameaçados de agressão por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de agente privado no exercício de atribuições do Poder Público, configuram-se os pressupostos do mandado de segurança, como direito fundamental do cidadão, a ser exigido, liminarmente, pelo Juiz ou Tribunal competente, sem mais delongas.
Nesta mira constitucional, vale dizer, que o cidadão tem direito líquido, certo e fundamental à segurança, de pronto, se demonstrar, em juízo, através de prova documental, pré-constituída, os pressupostos constitucionais da segurança pedida.
Na lição clássica de Lopes Meirelles, "direito líquido e certo" é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento da impetração. Em última análise, direito líquido e certo é direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior não é líquido nem certo, para fins de mandado de segurança."
Observa, no ponto, com inegável acerto, o eminente processualista Ovídio Baptista que "para compreender o que o legislador brasileiro quer significar com a locução "direito líquido e certo", a que a Constituição de 1934 referia-se como sendo direito "certo e incontestável", é necessário ter presente que todo direito, tanto que existente, haverá de ser "líquido e certo", pois seria um contrasenso lógico supor que alguém pudesse ser titular de um "direito incerto". O mesmo se deve dizer da condição de ser o direito "liquido", no sentido de incontestável. Todo direito, depois de demonstrado, há de ser incontestável. O que o pode tornar "ilíquido", no sentido de duvidoso ou "incerto", será a eventual dificuldade em que se encontre seu titular de demonstrar ao juiz que o direito realmente existe. Se ele existir, será invariavelmente "líquido e certo". Os direitos, enquanto categorias próprias dos diversos ramos do direito material, que os estabeleçam, existem ou não existem. O que a ciência jurídica costuma indicar como "direito certo" ou "direitos verossímeis" são categorias que dizem respeito ao processo. São conceitos próprios do direito processual. Na dimensão do processo é que os direitos podem apresentar-se como "incertos" ou "ilíquidos", no sentido de controversos.
A processualidade do conceito de direito "líquido e certo" pode adquirir importância decisiva para a compreensão do instituto do mandado de segurança. Por duas razões fundamentais: a) se, no plano do direito material, todos os direitos são "certos", dependendo apenas da maior ou menor disponibilidade de provas dos fatos que o constitui, de que possa valer-se seu titular, devemos concluir que toda classe de direitos pode ser amparada pelo mandado de segurança desde que o titular seja capaz de demonstrar-lhe a existência, através da prova dos fatos, que o tornam incontroverso; b) o direito que se revista da condição que o faz "certo e incontestável", determina o tipo de procedimento sumário, próprio do mandado de segurança".
Nesse sentido, impõe-se concluir que, nos feitos judiciais, onde se comporte a antecipação da tutela jurisdicional, nos termos do art. 273, II, do CPC, com a redação determinada pela Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994, quando o juiz pode e deve, a requerimento da parte, antecipar total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verosimilhança da alegação e fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu, determina-se o julgamento antecipado da lide, com sumariedade procedimental, similar à do mandado de segurança, de acordo com a disciplina do art. 330, I, do CPC, que ordena ao juiz conhecer diretamente do pedido, proferindo sentença, quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência, ainda que a decisão antecipatória da tutela, no espaço processual, não se confunda com a sentença que extingue o feito antecipadamente.
Disto resulta que o mandado de segurança, nos termos do comando ordinatório e protetivo-constitucional (CF, art. 5º, LXIX e LXX), comporta, sempre, na tipificação normativa de sua hipótese de incidência, a antecipação da tutela mandamental, por se tratar de uma garantia fundamental, em favor do titular de direito evidente, apresentado à proteção judicial.
Cuida-se, pois, de tutela de segurança e de evidência, que reclama a exegese e aplicação do princípio da "justiça adequada", a que se refere Luiz Fux, "porque, ao preceito constitucional de que "nenhuma lesão escapará à apreciação judicial", deve encaixar-se a tutela célere do direito material. O decurso do tempo diante do direito evidente, sem resposta, por si só representa uma "lesão". Ademais, a fórmula constitucional foi ditada para "entrar em ação", tão logo descumprido o direito objetivo. Assim, desrespeitado o direito evidente, incide a garantia judicial, que variará na sua efetivação, conforme a demonstração da lesão seja evidente ou duvidosa. Essa visão constitucional não passou despercebida à doutrina gaúcha de Ovídio e Galeno Lacerda. Ora, se o julgador já tem condições de saber, ao iniciar-se a demanda, que nenhuma contestação séria poderá ser contraposta ao direito líquido e certo, a legitimidade da tutela imediata torna-se um imperativo lógico e até mesmo constitucional (Ovídio, Curso, cit. v. 3, pág. 296, nota).
Nesse caso, conclui o eminente jurista, "a liminar é deferível mediante cognição exauriente, decorrência mesmo da evidência, diferentemente do que ocorre nos juízos de aparência (fumus boni juris) peculiares à tutela de urgência cautelar".
Com vistas, assim, na vocação constitucional do mandado de segurança, que tem por finalidade a proteção de direitos líquidos e certos e, portanto, evidentes, a merecer, de logo, se presentes os pressupostos constitucionais, a tutela jurisdicional antecipada, de urgência e evidência, com natureza liberatória ou inibitória, na força de sua eficácia mandamental, potenciada constitucionalmente, não vejo como se possa admitir, no espaço processual do mandamus, decisão judicial, in limine litis, com efeito puramente cautelar, baseada em simples aparência do direito pleiteado (fumis boni juris), mas, tão-somente será cabível, na instrumentalidade luminosa e satisfativa do processo de mandado de segurança, a antecipação dos efeitos da sentença de mérito, que se pretende com natureza mandamental, para realização plena e pronta da garantia fundamental de segurança do direito evidente, demonstrável de plano.
O processo célere do mandado de segurança materializa, sem dúvida, uma ação especial de procedimento sumário, cujos elementos formadores e constitutivos estão vinculados e tipificados na hipótese de incidência constitucional, a saber: a) existência de direito líquido e certo não amparado por habeas-corpus ou habeas-data; b) violação ou ameaça de lesão a esse direito; c) a identificação de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, responsável pelo ato coator; d) a ordem mandamental, protetora e auto-aplicável, dirigida ao Estado-Juiz, para que exerça o poder-dever de segurança, a que tem direito o impetrante dessa ordem, como garantia fundamental.
A hermenêutica do mandado de segurança há de partir, assim, necessariamente, do texto constitucional, que o consagrou como garantia fundamental do cidadão, imediatamente auto-aplicável (CF, art. 5º, § 1º), em termo individual ou coletivo (CF, art. 5º, LXIX e LXX, a e b) com proteção de cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV), contra as intromissões indevidas do poder reformador e do legislador ordinário, a exemplo das interferências secantes da Lei nº 1.533, de 31.12.51 e suas congêneres (Leis nºs 2.770/56; 4.348/64; 4.862/65; 5.021/66 e 9.494/97), a desafiar, no tempo, o comando dirigente de nossa Lei Suprema.