Já que o século terminou com inúmeras eleições acerca de quem foi mais bonito, mais inteligente, mais influente, mais isso, mais aquilo, característica típica de uma sociedade que preza a concorrência, não custa adicionar ao rol eleitoral uma última competição: o pronome e o verbo mais usados. Sim, isso mesmo, não se engane o leitor de ter lido errado. Talvez com a eleição do pronome e do verbo mais usados consigamos ao menos algumas pistas para uma conclusão sobre esse imbróglio milenar que é a discussão sobre a verdadeira essência do ser humano.
Para o pedestal pronominal, proponho o voto em EU, afinal, na gramática, o EU já domina como sendo a primeira pessoa. Na sociedade, na cultura e na política, sem dúvida o EU dominou o último século, especialmente na década de 90, com o advento do fenômeno editorial dos livros de auto-ajuda, que supostamente nos ensinam a viver com altruísmo, mas que acabam por exacerbar um individualismo próprio para suportar uma sociedade desigual e violenta. Recheado de figuras mirabolantes e pseudo-enigmáticas como bruxos e consultores que posam como gurus, o mundo da auto-ajuda nos incita a viver no cosmos, na busca do verdadeiro “eu” (o pronome vencedor), no desapego ao material e na fuga das controvérsias. É claro que, amealhando um considerável montante financeiro na venda de tais livros, os editores e autores continuam com seus gestos altruístas e suas vidas muito bem vividas no desconhecido mundo cósmico. A fuga das controvérsias acabou trazendo uma despolitização total da sociedade e especialmente dos jovens. Vivendo num mundo de duendes, por que nos preocuparmos com FHC’s, ACM’s e outras cativantes personagens do mundo político, com seus inúmeros escândalos? Deu no que deu.
Com seu deslumbramento moderno, o Homem ainda pré-histórico de hoje acabou por criar um monstro de si-mesmo, dotado de armas psicológicas poderosíssimas, em substituição à clava, para apoderar-se de sua vítima, o outro, que ele usa e abusa a seu bel-prazer, característica essa muito bem analisada pela psicóloga Marie-France Hirigoyen em sua obra “Assédio Moral - a violência perversa no cotidiano”, trabalho esse que acaba por confirmar os aspectos patológicos do limite do individualismo em casa, no trabalho ou na rua. Se antes, para exercer seu domínio, o Homem abusava da violência física, hoje a arma é mais sofisticada, a sedução.
O século acaba de forma pífia, com uma moral hipócrita, onde vemos cenas cotidianas de conflitos de egos em que um sujeito diz “Eu faço tal coisa...” e outro responde “Ah, mas eu prefiro isto ou aquilo...”, sendo que na verdade nenhum dos dois se preocupa com o mérito da questão, se ela é mesmo relevante, e sim com quem vai vencer a tola discussão, que assim prolonga-se através de retóricas pobres, pseudo-intelectualizadas, frases feitas e um sem-fim de mesmices e clichês.
No pedestal verbal, eu poria o verbo TER, sinônimo de possuir, afinal de contas, nunca houve na História um período que disponibilizou à Humanidade tantos bens materiais, aguçando assim a sanha por TER, POSSUIR, e incitando o Homem a defender tais posses custe o que custar. Portanto, não surpreende que os pertencentes às classes economicamente mais baixas saiam às ruas e assassinem um transeunte em troca de um simples par de tênis. Os objetos de consumo tornaram-se material de veneração e o Homem moderno(?) virou um bicho-consumidor, um viciado em lojas, marcas, imagens, um hipócrita inseguro hipnotizado por vitrines deslumbrantes.
As justificativas para o TER pululam e coincidentemente provêm de pessoas abastadas e não raro de religiões oficiais.
Enfim, torçamos para que neste próximo século utilizemos com mais frequência outros pronomes, como TU, para lembrar do próximo, ou NÓS, para lembrarmos da força de um grupo unido. Saibamos também conjugar outros verbos, como AMAR, verbo este que vem sendo pronunciado há dois mil anos como mera retórica cristã, mas com pouco uso na prática. Fazendo isso, talvez possamos afinal sonhar com um mundo melhor, livre desse imundo apego ao EU e dessa vergonhosa busca do TER.