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Artigos-->Olhos Sangrentos - 4 -- 06/07/2002 - 01:43 (Adriana Falqueto Lemos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A festa de confraternização do casamento de Marrieh e Edgard se realizou no dia da volta deles...



As pessoas estavam luxuosas e mostravam as melhores jóias que tinham guardado em casa. As mulheres arrumadas, pertencentes à corte, estavam ali pra prestar a homenagem ao casal mais popular das redondezas. Logo que a festa começou Turrieh escutou os músicos tocando, onde antes a sala só dava lugar para o frio do inverno. Em seu quarto, agora com dezessete anos, ele penteava os cabelos levemente ondulados. Prendendo-os com delicadeza, formou-se um laço com uma fita vermelha, acompanhando a camisa branca e a calça negra de veludo. Seus olhos azuis percorriam o reflexo no espelho. Estava morrendo. A verdade era essa... Após a notícia terrível, a carta amaldiçoada, Turrieh havia se entregado à balbúrdia, orgias e jogos. Sua juventude estava se esvaindo pelo cano imundo do esgoto da derrota. Nunca mais olhou para seu pai, e isso gerava um desgosto imenso dentro de seu peito. Sua mãe já não enxergava tão bem e agora dormia demais, a vida do filho passava muito rápido e ela não conseguia mais acompanhar. Hoje, depois de dois anos, ele veria novamente Marrieh.

Turrieh arrumou o lenço no pescoço, deixando o avolumado e com um broche na frente. Estava tuberculoso e passava pó de arroz nas olheiras que teimavam em se depositar e cansar suas vistas. O pior de tudo ele não sabia. Aquelas doenças faziam parte da maldição do anel de Marrieh. Já que ele não pertencia mais a ela, deveria morrer.

A garganta envelhecida do jovem teimou e ele deu uma tossida, como com uma lâmina, a carne doeu. Turrieh aparou o sangue que escorreu da boca com as costas da mão. Turrieh olhou novamente seu reflexo triste, nem chegava a ser a sombra daquele jovem vivo da adolescência.

Em algum tempo ele desceu as escadas em passos curtos e pesados, não estava se sentindo muito bem. Pousando a mão sobre o estômago sentiu uma pequena dor cortando-o de um lado ao outro. Percorrendo o corrimão encerado de madeira, ele sentiu a boca secar diante de tantas pessoas. A alta sociedade em peso parecia estar ali dando cortejos a seus pais. Ambos sorriam, de braços dados e felizes.

Observando todos, Turrieh sorriu para algumas pessoas que lhe dirigiam olhares. Tateava o anel de gravetos com o polegar, girando-o insistentemente, ele esperava, como todos ali, o grande casal. Embora a chegada do amado irmão fosse algo realmente muito importante, muito mais do que isso era ela.



Meia noite... O relógio soou muito frio quando os cavalos relincharam na porta do Memorial. Todos os convidados fizeram comentários e se excitaram com a expectativa, o casal havia chegado.



Turrieh ficou perto da escada só. Naquela noite, diferente de todas as outras desde então, ele não seria o luxurioso. Ele estaria ali na escada, com a taça de vinho sob os dedos alongados, esperando a própria chegar e adentrar no salão. E foi assim realmente que se seguiu. Dentro de alguns minutos, as pessoas foram brindadas com o casal, Marrieh entrou logo ao lado de Edgard, ambos muito adultos e trajados elegantemente. Marrieh não tinha sinais de gravidez e nenhuma ama trazia qualquer criança.

Turrieh não pôde deixar de arregalar os olhos para aquela que outrora o tinha. Era tão bela, ou mais do que era... Era adulta agora, voluptuosa e muito perfeita. Seus olhos brilhavam mais, parecia uma chama ardente que nunca haveria de se apagar. O sorriso branco como uma pérola, a senhora Edgard beijou seu marido no rosto assim que tocaram os pés no salão. Com sorrisos eles se apresentavam, Edgard agora estava mesmo parecido com seu pai, trazia pelos dedos a esposa, tão querida. Turrieh ficou a olhando nos olhos por todo aquele momento, esperando ao menos algum olhar... Mesmo sem saber porque desejava tanto a olhar, ele queria. Quem era ela afinal, estava mentindo para ele todos aqueles anos...



Por toda a madrugada, Marrieh e Edgard se mantiveram sociais e somente tratavam com convidados...



Turrieh não suportou aquilo por muito tempo. Deixou a taça de vinho sobre o módulo final do corrimão da escada e se refugiou no escritório de seu pai. Fechando a porta com o máximo de silêncio possível, ele não queria mostrar a ninguém o que havia se tornado em todos aqueles anos. Buscou o calor da lareira, se sentando na poltrona que havia em frente das chamas. Ficou ali, cômodo e pensativo, somente sentindo o crepitar do fogo abrandando. Percebeu que tremia, as pontas dos dedos estavam inquietas... Marrieh, tão bela... Um anjo como aquele não poderia tê-lo ferido intencionalmente. Os olhos dela eram tanta doçura perdidos em azul, porque havia de deixar a mentira os corromper. Ele sentiu novamente a tosse e deixou-se morrer mais um pouco, sentindo o pigarro lhe corroer a garganta. Mais um pouco de sangue se perdeu entre seus lábios, agora amargos. Respirou fundo se recompondo, mas foi interrompido quando a porta se abriu...

Turrieh arregalou os olhos e sentiu o coração acelerar como numa caça à raposa. Olhava para os lados sentindo o estranho caminhar passo a passo até ele, gradativamente se aproximando após fechar a porta. Então, por um momento que pareceu uma eternidade, a pessoa que estava agora atrás da cadeira colocou a mão sobre o ombro dele. Turrieh temia ver a mão. Se fosse Marrieh realmente ele não saberia o que dizer... E então, uma voz se pronunciou...

- Meu irmão se refugia e não me cumprimenta... -Era seco, mas era Edgard.

- ... Meu irmão... -Turrieh se restabeleceu, deixando um suspiro escapar entre os lábios.

- Sei que não nos vemos desde muito antes da viagem...

- Pensei que nunca pudesse saber como é quando adulto Edgard... Você e eu tínhamos apenas dez anos quando eu o vi. -Turrieh agora era mais voluntarioso e solto, a vida boêmia o transformara.

- Eu nunca pensei que pudesse estar dessa forma... Sua pele está tão pálida quanto à de um defunto. O que houve... -Edgard e sua presteza deram a volta na poltrona e se abaixou, apoiando-se nos braços da própria.

- Não houve nada meu irmão... Simplesmente aqui não é tão divertido quanto Londres. -Turrieh suspirou fundo, fez o chiar do pulmão soar longe.

- Está muito doente...

- E como está Marrieh e tu? Pensei que fossem trazer o meu sobrinho pra que eu pudesse conhecer. -Disse Turrieh encerrando o assunto.

- Marrieh não conseguiu terminar a gravidez. Infelizmente no verão daquela mesma data ela teve uma complicação... Os médicos não souberam explicar, mas...

- Mas?

- Não houve nada. -Edgard olhou nos olhos do irmão. -Ainda são os mesmos olhos azuis...

- Sim. Porque deixariam de ser? -Disse ele de modo frouxo.

- Tudo aqui parece normal, Turrieh. Papai, mamãe. Mas você mudou...

- Edgard, tem mais de dez anos que tu não me vês... Como quer que eu seja a mesma pessoa?

- ... Entendo, embora eu não tenha me referido a sua idade.

- Da forma que for, meu irmão... -Turrieh se levantou, deixando o irmão onde estava. -Tu não sabes coisa alguma da casa onde viveu.

- O que houve? -Edgard mudou o tom da voz, parecia preocupado realmente.

- Nada de muito importante agora.

- ... É isto, agora entendo. Tu estás amargurado.

- Como? -Turrieh se virou para olhar no irmão.

- Estás amargurado porque tenho muito sucesso e tu não tens nada. Nem saúde.

- Mas que diabos está falando afinal? -Turrieh custava a acreditar naquilo.

- Minha esposa me disse do seu passado interesse por ela. Vendo-o falar dessa forma, vendo pela sua saúde e pela vida desgastada que deve andar levando não duvidaria de nada que ainda é apaixonado por ela.

- Que absurdo! -Turrieh sentiu tremer.

- Minha Marrieh não é absurda, diga a verdade. Ela me falou que vivias correndo atrás dela por estes campos... Pelo que vejo corre atrás de mulheres fáceis agora. Pobre coitado...

- Edgard... Eu... -Turrieh precisava se controlar agora.

- Por Deus... -Edgard levou a mão à testa. -Não acredito que tu levaste a vida assim.

- Não é meu dever lhe responder perguntas... Não me interessa o que ela tenha lhe dito.

- Porque veio se esconder aqui? É medo não é? Medo do olhar de desprezo dela...

- Vá embora e me deixe só. -Turrieh lhe deu as costas, não suportava mais aquilo.

- Pois pode ter seu medo muito pior, amado irmão... -Disse Edgard caminhando para a porta. -Nós dois vamos morar aqui mesmo no Memorial. Espero que essa sua cara manchada não nos tire o apetite pela manhã... Seu invejoso. -Ele abriu a porta e saiu, trancando com toda a força que podia.

Turrieh não suportou tamanhas revelações. Sentiu seu coração apertar de dor e se encaminhou rapidamente até a poltrona, apoiando-se no encosto. Era incrível como em tão jovem idade se abatera como um idoso. Sentiu novamente a tosse lhe corromper o pulmão, e então tossiu, respingando sangue na borda dos punhos.





A tarde quente se prolongou e por dias o novo casal Treifforthine era a mais branca pérola da casa... Turrieh por sua vez se esgueirava e escondia, o escuro era seu melhor refugio. Quando o Sr. Treifforthine estava muito adoecido, as visitas da casa se tornaram ainda mais freqüentes...



- Então é verdade... -Disse Edgard Treifforthine ante as revelações bombásticas do médico.

- Não há maneira de curá-lo mais. -O senhor idoso fechou a bolsa repleta de instrumentos. Na beira da cama, estavam somente ele e Edgard. Ali entre os lençóis, o Sr. Treifforthine não estava dormindo e nem acordado. Ele estava morrendo.



Na sala de chá, Turrieh olhava o cintilante do sol cortando os gramados e deixando as gramas secas da estação banhadas em ouro. Era sua hora predileta. Ao seu lado, sua mãe impaciente andava de um lado para o outro, arrastando pelo assoalho encerado o vestido de cor vinho. Os cabelos não eram mais da cor do sol, agora estavam pálidos com o trigo.

- Filho meu... -Ela olhava pela janela a todo instante.

- ... Sim... -Turrieh havia se tornado em muito tempo um homem calado e amargo. A doença do pai o deixara ainda mais distante de sua mãe.

- Suba e pergunte ao médico o que houve. Pergunte quando teu pai estará a domar os criados.

- ... Domar criados. -Era inocência de sua mãe dizer tais palavras, mas ele lembrou imediatamente da jovem criada e o Sr. Treifforthine se deliciando dos prazeres da carne.

- Turrieh, não se disperse, suba até o quarto de teu pai... Por Deus. -Ela o encarou finalmente. -Não estou me agüentando de medo.

- Mamãe... Estou muito bem aqui, obrigado.

- Seu... É um momento de dor! Ele não pode deixar-nos! Não me recordo em que momento tu renegou teu pai, mas não deixe de vê-lo!

- Se tu não sabes então fica calada mamãe...

- Como ousas... -Ela amargou o semblante. As frases do filho predileto foram duras demais.

- Não sou mais o mesmo... -Turrieh voltou a fitar a pequena colina onde o sol demorava a se esconder. Seus olhos azuis e valiosos estavam manchados de cansaço. Cansaço da vida.

- Onde foi que se perdeu aquele menino de quem eu gostava tanto... E conversava por horas enquanto penteava os cabelos negros. Onde estás agora, Turrieh...

- Acho que este Turrieh se perdeu no tempo. -E então decidiu por dar-lhe as costas, virando-se e deixando os cabelos tomarem o rumo do nada. Mesmo seu semblante tão adocicado ficava amargo por nada, seus olhos ficavam frios e distantes.

Deixou a mãe sozinha na sala, saindo calmamente pela porta e fechando-a sem som algum. Mordeu os lábios de leve, o semblante demonstrava uma certa inquietude, e ele não sabia o porquê daquilo. Olhou para os lados como se estivesse sendo observado, mas não era nada, e ele tampouco tinha do que fugir. Seu coração se acelerou um pouco e ele caminhou depressa se esgueirando pelo corredor escuro. E por um momento o corredor por inteiro foi tomado por uma bruma fortíssima. Uma espécie de névoa esbranquiçada e espessa que fez com que seus olhos não conseguissem enxergar muito. Turrieh sentiu seu anel de gravetos cutucar-lhe o dedo, sabe-se Deus como, e então o sangue gelou quando sentiu o toque febril das mãos macias que lhe tocaram a nuca.

Ele não sabia o que fazer havia inconscientemente se esquecido de respirar por alguns segundos, tal era sua inquietude. Finalmente a mão se deslizou através de seu pescoço, acariciando docemente e correndo pelo seu ombro.

- Marrieh? -Ele se virou vagarosamente, e então pôde ver a figura da própria, aos quinze anos de idade, olhando através daqueles olhos verdes tão intensos. Ela sorria e o cativava, com os lábios rubros de desejo adolescente. Deu alguns passos, andando de costas enquanto o observava, fazendo-o segui-la mesmo sem querer... Turrieh a olhava no fundo de seus olhos, sem se desprender da bela visão da juventude de Marrieh. Enquanto a seguia, parecia voltar no tempo em meio a toda aquela bruma. E num repente, a mesma desapareceu e as risadas gostosas deram lugar ao silêncio.

Turrieh nada entendeu. As brumas desapareceram e ele sentiu seu corpo cansado novamente... Seria mesmo a antiga Marrieh? Mas como, ele pensou... Marrieh está com a mesma idade dele... E isso não significava quinze anos. Mesmo assim, se recostou na cortina grossa que cedia pela janela, deixando correr pelo corpo o prazer daquela bela visão... Sentiu-se extasiado por um momento, o tormento daqueles anos pareceu se esvair e seus olhos marejaram de emoção. Foi então que gritos ecoaram pelos corredores, tocando também em seus ouvidos... O Sr. Treifforthine havia falecido.



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