Os dias se passaram sóbrios e imutáveis. O velório estava calado e sereno, o reverendo calmamente fez suas preces. Ali, estavam somente a Sr. Treifforthine, ao seu lado Turrieh e juntos Edgard e Marrieh.
Sob o sol morno do fim da tarde, Turrieh sentia sua pele adocicar-se com a certa quantidade de luz que não sentia a muito. Seus olhos azuis permaneciam frios e distantes, enquanto preferia o cenário campestre das colinas e do Memorial do que aquele caixão negro do falecido. A memória amarga já bastava por empertigar-se e de modo algum ele desejava velar o maldito. Bem, velar de fato ele não o tinha feito, já que isto havia sido na noite anterior, quando ele estava recolhido em seus aposentos... O pior agora era evitar a todo instante a visão de Edgard e Marrieh. Ele sempre tinha a impressão de que ambos estariam esperando um leve deslize para que o acertassem com uma saraivada de olhares gélidos.
A Sra. Treifforthine chorava copiosamente, muito vermelhos, seus olhos quase cegos não suportavam mais a luminosidade do sol. Ela mantinha-se em silêncio apesar de todo aquele choro, e segurava firmemente no braço do filho, apoiando-se. Era incômodo para ele, mas, sua mãe naquele momento parecia mais frágil que em toda a sua vida, e afinal, Edgard e Marrieh tinham a si mesmos.
Depois de algum tempo o reverendo Johnson fechou a bíblia pesada e de capa negra, acertando a fita rubra que pendia marcando as páginas. Os dois criados, do estábulo e da vigia, deixaram ceder as cordas do caixão e ele foi pendendo e encaminhando-se cada vez mais para o túmulo, até não mais poder ser visto.
Naquela manhã em que as criadas descascavam batatas para mais tarde, Turrieh sentiu a solidão lhe consumir.
Turrieh estava de certo modo estagnado. Sentado na sala escura ele pensava e pensava na saúde frágil de sua mãe. De fato a cegueira estava se agravando depois da morte de seu pai, e aquilo era por demais estranho. Com as pernas levemente cruzadas, ele apoiava o queixo sobre a mão, donde o braço confortavelmente se acomodava na poltrona. Em meio aos pensamentos ele se deu conta de que nem Edgard e nem mesmo sua esposa haviam se levantado, e beirava o sol nas dez horas da manhã. Pensou mais algum tempo, vinha notando que desde a chegada do casal ele não estava mais saindo de casa todas as noites, e sua vida de farras havia se transformado numa confinação constante e doentia em seu quarto. E que todas as noites agora tinha sonhos estranhos onde a Marrieh de quinze anos aparecia e brincava um pouco em sua companhia.
Ele pensou em se levantar e procurar alguma leitura na biblioteca, mas já estava farto de tanto ler e nada refletir, e não o conseguia por outros motivos, não era ignorante. Simplesmente sua mente não estava aqui, estava sei lá onde... Flutuando por aí em algum lugar onde não havia respostas. A curiosidade começou por tomar conta de sua mente, sobre o que poderia estar acontecendo ao casal. Deveriam estar em laços de paixão, pensou... Se amando longamente e permitindo-se travessuras até a essa hora. E o que afinal Edgard tinha que deixou Marrieh tão cega. Sem se deixar perguntar mais, ele se apoiou nos braços da cadeira e rapidamente foi subindo as escadas em direção aos aposentos, o silêncio era imprescindível.
Turrieh subiu todos os degraus que levavam ao hall do segundo piso. Caminhou pelos corredores como uma pluma estivesse em seus pés, e em pouco tempo alcançou o quarto de ambos. Ao olhar para os dois lados, colou o ouvido à porta, tentando prestar o máximo de atenção que podia. A porta tinha uma madeira compensada muito grossa, e ele não conseguiu escutar. Depois de tentar e tentar, se voltando de um lado para o outro com o intuito de captar qualquer ruído que fosse, se pegou como um tolo. De certo não deveria haver realmente ninguém naquele lugar, deveriam ter acordado mais cedo que ele e saído...
Em alguns minutos de silêncio, nenhum criado por perto, Turrieh decidiu-se por colocar a mão na maçaneta e abrir a porta, uma espiada não faria mal a nenhuma alma cristã.
A porta se abriu num estalido seco, por sobre a cama estava a bela figura de Marrieh, em seu corpo completamente nu enrodilhado em lençóis transparentes. Os cabelos se espalhavam feito raios de sol por toda a cama, formando cachos desarranjados envolventes como uma melodia.
Turrieh arregalou seus olhos, seu queixo cedeu mesmo sem querer. O brilho que seus olhos recuperou parecia a própria juventude, a eternidade. Seu coração bateu muito acelerado, era a Marrieh. Mas não despertava mais um amor puro e cálido, alimentando-o docemente como mel. Era uma maldade... Era uma verdade inescrupulosa sobre seu verdadeiro lado humano, o desejo. Era vilania, era sangue e possessão.
Ele engoliu em seco, fechando os lábios pálidos enquanto entrava, fechando a porta sem o menor barulho. Abaixou-se e tirou as botas, deixando-se caminhar de meias pelo carpete sedoso do aposento inebriado de perfume feminino, cheiro de prazer. Ele passou entre a luminosidade pouca que as cortinas liberavam, semi-abertas, e deixou seu corpo feito e esguio tocar a escuridão das parcelas envolvidas pela escuridão do quarto. Sentou-se ao lado dela, a cama estava desarrumada e ela ainda se mantinha no sono da noite. Seus lábios se molharam de ardência... Não pôde se conter em deslizar suavemente pela cama e tocar nos cabelos louros da dama, sentindo o perfume acalentar sua selvageria. Aspirou o pescoço dela, muito alvo, sentindo o macio em seu nariz, acariciando-a.
- ... Hm... -Ela sentiu o toque envolvente, despertando suavemente.
- ... Deus! -Turrieh nem mesmo conseguiu se afastar, seu coração disparou, quase parando. Sentiu suas pernas tremerem e seus olhos se refletiram nos dela, enquanto ele a olhava despertar.
- ... Meu amor... -Ela sorriu brandamente, a palidez da pele se acentuava com a escuridão entre ambos.
- Não... Não é Edgard... -Ele nem mesmo respirava, estava desesperadamente tenso.
- É Turrieh. -Ela disse serenamente, erguendo o braço, deixando-o tocar a pele macia da face de Turrieh, que se aqueceu como uma brasa adormecida.
- Não... Não, por favor... Deixe-me ir, não quero me ferir mais... Pare... -Turrieh sentiu o medo lhe atingir na espinha. Ele sabia que agora mais do que nunca estaria preso a ela, aquelas frases cruéis o fariam sonhar e ele não desejava... Ele só queria apagar... Para que havia entrado naquele quarto... Não sabia simplesmente se era uma mentira, o que ela queria afinal? Confundi-lo e usa-lo como um brinquedo? Mas acreditar, porém, era tão necessário...
- Eu estive esperando por muitos anos... -Ela deslizou a mão pelo rosto dele, tocando em seus lábios com as pontas dos dedos. Ele sensivelmente sentiu o gosto deles, e era bom... Um sabor delicado e sutil do prazer da mulher. Marrieh sorriu quando este lambeu seu dedo, sentindo o gosto que ela desejava que ele apreciasse. Turrieh cedeu, deitando-se sobre o corpo da jovem que havia dominado-o. Beijou-a lascivo, não eram mais as crianças de anos atrás, eram dois amantes adultos e perdidos em selvageria. Conforme avançava, desvendando-a daquele véu que cobria o corpo doce, ele pensava no quão feliz finalmente estava sendo... Pensava sim, no porque daquilo tudo, porque ela estava casada com Edgard e agora estava em seus braços, desejando-o e amando-o como sempre esteve...
Assim que os corpos ficaram frios, um sobre o outro, Turrieh e Marrieh se fitavam pensativos.
- O que houve contigo... -Ela dizia com certa frieza, da menina intempestiva e decidida, sobrara muito da frieza inicial.
- Hm? -Ele murmurou, franziu o cenho tristemente.
- Seus olhos, desde que cheguei, completamente sem vida. Sua pele, tão branca quanto um mármore, e tão fria...
- Estive muito adoecido.
- ... -Ela desviou os olhos para o lado, fugindo dos dele.
- O que houve? -Suas vozes eram sussurrantes e quase inocentes.
- Eu lhes disse que não deveria nunca me esquecer... -Ela foi fria.
- Marrieh, do que está falando?
- ... Do anel.
- ... Deus do...
- Não... -Ela o olhou. -Não diga esse nome perto da minha pessoa.
- ... -Turrieh arregalou os olhos. Seu sangue gelou.
- Tu traíste nossa promessa. Por isso está adoecido e morrendo, como um velho.
- Mas meu coração se encheu de magoa, eu te perdi! Minha mãe leu a carta que tu mandastes...
- Mas não pode compreender os meus planos?
- Que planos! Tu saíste deste nosso romance adolescente e viajou, depois recebo a carta de que se casou com Edgard! Não sou tão ingênuo quanto pensou, achava mesmo que eu estaria aqui como um cordeiro?
- Eu estava com ele, e ele me tomou por força...
- ... Não... -A descrença agora se misturava as palavras que vinham da boca dela, e a tristeza o corrompeu.
- E tomei barriga. -Lágrimas começaram a brotar dos olhos dela, rolando e cedendo como mágoas. -E nos casamos, mas perdi o bebê... Turrieh... Eu nunca trairia a ti, volte... Volte pro meu coração, deixe-me voltar pro teu...
- ... -Ele não tinha mais palavras, o que dizer ante a tudo aquilo...
- Volte... -Soluçou tristemente, chorando como uma criança.
- Eu nunca deixei que saísse do meu coração Marrieh...
- Então...
- O que?
- ... Deixe... Não devo lhe pedir isto.
- O que?
- Uma prova de amor... -Ela fechou o semblante, virando o rosto para o lado.
- Mas... Eu te amo, não fique insegura disto jamais.
- Não sei, tu me deixaste mal nesses anos, por tantos bordéis que passou...
- ... Então... Peça...
- Não seria capaz.
- Por ti eu seria capaz de tudo nessa vida, meu amor. -Ele beijou o pescoço dela, sentindo seu cheiro.
- ... Está vendo aquele criado-mudo aqui, do lado da cama... -Ela estava visualizando, fazendo com que ele percebesse também.
- Sim... O que tem?
- Abra a gaveta e pegue uma sacola pequena de veludo azul...
- Hmm... -Turrieh se deslizou pelo corpo dela, e nu, foi até a borda da cama, se esticando e abrindo a gaveta. Após tatear por algum tempo, encontrou o objeto e o trouxe de volta, ficando deitado do lado dela...
- É um sonífero. Antigamente eu colocava um pouco na xícara de chá de Edgard para dormir em paz quando ele me queria...
- ... Marrieh... -Turrieh deixava o coração cada vez mais amargado pela dor da amada.
- ... Por favor, esta manhã ele saiu muito nervoso porque eu lhe disse que queria me distanciar e voltar a ter a ti...
- Disseste isto realmente? -O brilho de felicidade nos olhos dele beirava o infantil.
- Sim... Mas ele disse que se voltasse teria uma conversa contigo, e eu sei que ele pode ameaça-lo e expulsar tu daqui, já que teu pai morreu. Por favor, Turrieh, coloque um pouco disso no chá dele, e ele dormirá. Então podemos fugir... -Ela soava tão perfeitamente que convenceria até mesmo Edgard daquele plano.
- ... Tu duvidaste de que eu pudesse fazer isso, meu amor? Eu te amo e poderei fazer qualquer coisa que me pediste...
- Está sendo verdadeiro...? -Ela sorriu, tocando a face dele.
- Farei como me pediu. Esta tarde assim que ele voltar pedirei que as criadas levem chá para uma conversa franca... Então quando ele não perceber já colocarei o conteúdo da sacola, e sem notar ele estará dormindo.
- Oh... -Ela se aproximou dele, beijando-o.
- Mas... -Ele se afastou um pouco, olhando em seus olhos. -Eu tenho uma pergunta.
- Faça-a.
- Tu és mesmo uma bruxa como eu penso, não? Destes-me este anel de gravetos que me pressiona o dedo sempre que faço algo que tu não gostaria... Eu notei.
- ... Não, deve ser de fato impressão tua, estás sempre com peso na consciência.
- E porque renegou Deus a pouco? -Turrieh custava a compreender o sentido de todas aquelas ocasiões estranhas que lhe aconteciam em virtude do anel, e aquilo sobre Deus havia lhe posto uma certa desconfiança certeira. De certo ela deveria ter um pouco de razão sobre o peso na consciência...
- Porque... -Marrieh suspirou. -Porque lembrei que eu e Edgard nos casamos na igreja, e sinto o pecado me consumir quando penso que fugirei contigo. Se lembro deste nome eu penso nisto e acabo por me contradizer...
- Tu és virtuosa, minha amada... -Ele sorriu encantado, e ao mesmo tempo envergonhado por todos os pensamentos sobre ela nesses anos.
- Não fale isto... -Ela disse lisonjeada. -Agora vá, vá aprontar tudo para quando ele chegar... A tarde se amadura.
- ... Sim. -Turrieh se levantou, vestindo a camisa branca e pegando as roupas da cama rapidamente nas mãos. Depois sorriu, virando-se e saindo pela porta correndo, como uma criança.
Marrieh ficou só novamente no quarto. Passou a mão entre os lençóis, segurando entre os dedos e cobrindo-se enquanto se levantava da cama macia. De pé, os cabelos lhe rebatiam nas costas. Sentiu uma vontade imensa de rir daquilo tudo que havia calculado... A imensa tolice de Turrieh era para ela uma dádiva, e com a morte de Edgard, manipular a casa dos Treifforthine seria ainda mais fácil do que já estava sendo.