Era ainda muito cedo quando Hildegard abriu seus olhos negros e observou a neve cair do lado de fora. Ela caia tão serena que parecia realmente ter todo o tempo do mundo para se satisfazer. Saindo vagarosamente, ele se sentou sobre as cobertas, estava ainda de camisola. Os cabelos eram negros como os de Turrieh, ondulados como os de Marrieh, e a franja lhe caia muito bem, fazendo de seu rosto infantil, um menino de dez anos, um rosto mais doce ainda. Inacreditavelmente começou a sentir uma forte dor no estômago, como uma pontada de uma lança, que o dependura na posição que está. Era como uma corrosão um pouco forte, e começou a incomodar de certa maneira insistente. Em pouco tempo Hildegard sentiu a cabeça girar um pouco e decidiu, mesmo um pouco tonteado, por sair da cama e caminhar um pouco até a cozinha, parecia fome. Levou a mão à boca, de fato havia um dia que não comia. Sua mãe, Marrieh Treifforthine, havia lhe negado o prato da janta e do almoço quando o surpreendeu comendo um rato.
Deslizando a mão branca e muito esguia sobre o corrimão da escada, ele logo desceu. Suas pernas tremiam muito, a fome estava se assolando com uma intensidade inumana. A sala estava escura como ele gostava que estivesse, seus olhos não se feriam dessa maneira. Ao cruzar o salão de entrada, sentiu um pouco da friagem do externo atravessar a camisola branca de algodão. Aconchegou-se em si mesmo, tremendo um pouco, e foi se aproximando da lareira, não haviam criados para atende-lo, e nem a doce governanta Fátima.
Sentou-se e logo cruzou as pernas no chão, fazendo um arco muito infantil. Seus olhos vibravam nas chamas crepitantes, seguindo sua dança e a miríade da luminosidade. Seu rosto ficava aquecido e latejava com o calor da chama, um pouco próxima, o calor o agradava imensamente. Até permitiu-se respirar bem fundo e sonoro, como uma criança normal. As bochechas ficaram rosadas e ele levou as mãozinhas até elas, gostando da quentura que ganhavam. Seria algo realmente incômodo se sua mãe aparecesse e o visse perambulando pela casa daquela forma, mas por enquanto estava sendo tão agradável saciar a pequena sede de calor e afagar as maçãs do rosto, que ele nem pensava. Ele nem se permitia pensar.
Novamente seu estômago tomou providências por alerta-lo, mas, além disso, escutou ainda mais.
Era como uma espécie de murmúrio vindo do interior da casa. Ele pensou que pudesse ser como alguém lhe chamando, mas novamente era o incessante soar de seu estômago, e era até infeliz, ter fome e ainda não ter do que comer. Pensativo, o menino se encolheu e acolheu-se nos próprios braços, uma extensão de si e toda aquela carne que clamava por sangue. Seus cabelos deslizaram pelo rosto, caindo sedosamente pelos ombros, e seus olhos negros refletiam as chamas cadentes da lareira.
- Está tudo bem, Hildegard?
Ele se virou rapidamente e constatou aquela mulher ali parada, sua ama, muito bondosa e um pouco envelhecida, trajava o uniforme dos empregados da casa e trazia nas mãos um cobertor de pelúcia branca. Logo que o menino a olhou, ela sorriu amável e foi até ele, o cobrindo com o que trazia consigo. A pelúcia o envolveu carinhosamente, e a mulher se sentou ao lado.
Ambos se olharam por algum tempo, Hildegard sentia a fome o consumindo de pouco em pouco, roendo-lhe por dentro. Olhar para a senhora tão amável parecia até um pecado, a vontade o fazia tentar contra as leis dos homens, e de Deus. Ela ainda sorria quando novamente falou algo.
- Menino, o que faz acordado tão cedo? -Ela parecia solta com o menino que criou, enquanto empregada.
-...Nada... -A voz de Hildegard soava fraca e sem rumo, jogada ao vento sem qualquer expressão. Aquela mulher tão boazinha e sua amiga estava-o deixando com sede de sangue, fome de carne. Quando ela respirava, mesmo que um pouco distante ainda, ele podia sentir no hálito o sabor do seu ventre. Apoiou a mãozinha no assoalho e deixou a pelúcia cair ao chão. Sem olhar a doce Fátima, ganhou os corredores da casa, correndo com vontade de vomitar.
Depois de subir as escadas e entrar no quarto, trancou logo as portas. Seu coração estava disparado e tenso como se estivesse em meio a uma espécie de caçada a raposa. Tampou os ouvidos com as mãos, depois os olhos, e cambaleando se jogou na cama, caindo levemente com o corpinho infantil. Ofegava, tossia um pouco, estava sentindo o gosto da bile o incomodar o paladar, a vontade de vomitar era forte. Chafurdando nos lençóis durante algum tempo, Hildegard sentiu como se alguém, ou várias pessoas, o puxassem para os lados e o sacudissem. Escutava vozes pedindo que voltasse lá embaixo e comesse o ventre daquela ama. Gritavam e uivavam dentro de seu ser, eram capazes de arranhar sua pele branquinha, o balançavam na cama. Também como surgiu se foi, como chuva de verão e, por mais que os tormentos pudessem ser horrendos, ele dormiu de terror e fome assim que o turbilhão de demônios o deixou a sós.
Das páginas do Conto Sobre as Pessoas, de Harold Hedgings.
Qual é a origem do Bem, e a origem do Mal? Qual é a natureza, e a origem, de tais conceitos? Qual a fronteira que separa o Bem do Mal? Seria um enorme e intransponível abismo? Ou uma mera linha, que de tão fina, arrebentaria no primeiro puxão? Talvez o Bem e o Mal estejam nos olhos daquele que vê. Ou nas mãos daqueles que escrevem, páginas ensangüentadas, nossa história, de forma que aquele que hoje é justo amanhã seja visto como o injusto. Eles bem poderiam estar nos astros nos céus, que determinam em silêncio, quando nascemos, quem somos. Ou ainda, ligados a nosso nascimento sim, mas forjados em nossas almas pela carne e sangue de nossos pais. Se isso fosse verdade, quem teria sido o primeiro com o sangue e a carne Bons? E quem seria o primeiro com o sangue e a carne Maus? Talvez o Bem e o Mal simplesmente não existam. Ainda assim, qual as formas que estes possuem? Seriam os anjos reluzentes as únicas personificações do Bem? Como seria mais bem personificada a verdadeira imagem do Mal? Um ser como Besta, com todos os seus chifres e seus lábios de fogo, seu bafo de enxofre e seus olhos negros, ou um pequeno ser, um ser infantil dotado de uma linda e jovem face, adornada por um ingênuo e sincero sorriso e completada por um curioso olhar cheio de vida? Um ser como... Hildegard.
Os camponeses faziam compras apressadamente, dentro de algum tempo deveria chover. As nuvens estavam carregadas e mesmo sendo meio dia o céu parecia tão escuro quanto à noite, muito severa. Numa carruagem pequena e negra, com cortinas muito amareladas e velhas, dois olhos infantis espreitavam a multidão da feira.
Lá dentro, a pequena menina vestida num traje colonial olhou o pai, que lia petulantemente. Com apenas um olho que lhe servisse, o Sr. Ádague, Bertran Ádague, sabia como parecer rude e impetuoso, e lendo daquela maneira, como se sugasse cada letra com a respiração pesada, ele sabia transpor um ódio latente e irreal sobre os mais ignorantes. Nesses momentos a pequena Valderesse Ádague, de dez anos, sabia o quão parecia importante para ele que ela soubesse ler. Ou menos que isso, o quão era importante para ela que ele soubesse que ela achava importante que ela soubesse ler... Por Deus, Valderesse se confundia com tantas dúvidas sobre o que pensava aquele senhor seu pai. Um homem vestido de nobre, mas que nunca foi a nenhuma reunião social.
Valderesse realmente gostaria de saber quem era aquele homem de nariz afilado e notável, de tapa-olho e cabelos louros, um pouco grisalhos, grandes e presos sempre. Que lia como se ela nem existisse em tempo algum. A janela só lhe dava medidas em olhar para uma pessoa ou duas, na verdade era tão pequena a luminosidade que ela imaginava a multidão, ele não gostava de claridade. Ela encostou as mãos no batente da janela e prestou bastante atenção no que conseguia enxergar, seus olhos verdes contrastavam com o cabelo muito ruivo e cruelmente vivo. Suspirou fundo, a roupa apertada e masculina combinava com o clima do interior da carruagem, era muito negra, somente os detalhes brancos dos punhos e da gola, eram babados simples. Era de fato enfadonho usar roupas tão simples e masculinas, mas seu pai já lhe disse há tempos, uma garota que seria como ele não pode usar de vestidos.
Estava com a boca seca e queria falar um pouco, mas o Sr. Ádague a expurgava somente pelo fato de ler tão impressionado. Sem querer respirou forte, chamando a atenção.
Essa atenção foi sentida quando ele fechou o livro.
- Fale.
Valderesse achava insuportável, mas ao mesmo tempo admirava aquela postura tão fria e insensível que seu pai tomava, se ela fosse assim poderia chegar onde quisesse, e o transpor... Parecia que estava pensando a uma década no que responder, sabia que deveria ser fria também, e concisa, mas era tão complicado pra ela associar tantas coisas...
- Se não for falar nada, por favor, não interrompa, Valderesse.
- Não... -Ela se virou para ele. -É que...
- Eu sei que é apenas uma criança, mas acho que a criei com o intuito que amadurecesse mais rápido, sabe que não gosto de infantilidades. -Ele falava rápido.
- Pra onde vamos, senhor Ádague. -Era dessa maneira que ela deveria falar.
- Disse-lhe que o serviço não é do seu interesse.
- Mas Sr. Ádague, devo lhe dizer que saímos de Illinois à tarde de três dias atrás. Estou um pouco cansada...
- Cansada?
- Não... Não foi isso que quis dizer... Estou entediada. -Cansada significava derrota.
- ... -Ele voltou a abrir o livro, mas Valderesse continuou, cautelosamente.
- Quando chegaremos ao destino, Sr. Ádague?
- Asseguro-lhe, no mais tardar, a noite estará a dormir numa cama de verdade. Espero ter sanado as dúvidas. -Disse ele friamente.
- Está certo... -Disse Valderesse, cruzando os braços infantis. Foi então que sentiu fome, tinha realmente um bom tempo que não comia nada, Sr. Ádague não oferecia nada. -Estou com fome.
- Vou parar a carruagem, então lhe darei uma moeda de ouro. Desça e compre algo que a sacie. Se comprar algo doce, saiba que ficará faminta novamente. Não lhe darei mais nada por hoje, por isso saiba comprar algo simples e que encha seu estômago.
- Farei o que está dizendo, senhor. -Disse ela, estendendo a mão quando o pai deixava cair uma moeda da bolsa que levava consigo. Valderesse a prendeu nas mãozinhas, e assim que a carruagem deu uma guinada subida e finalmente parou, ela abriu a porta e recebeu o resquício de luz que havia na rua, antes da tempestade. Com poucos passos, apressados, Valderesse alcançou a estrada de terra batida e a poeirenta visão. Ao longe, distinguiu o que seria uma festa camponesa. Aproximando-se, ela pôde ouvir risadas alegres e boa música, que lhe soava muito singular. Que felicidade, nunca fora a uma festa popular em sua pequena vida! Sem demora, foi até uma das barracas e olhou os chamativos doces, de todas as formas e tamanhos, que a seduziram prontamente.
Mas então ela se lembrou do que o pai dissera e recuou alguns passos, frustrada. Não, era melhor que procurasse alguma barraca que vendesse pão, e apenas isto. Desse modo, ela não ficaria com um peso na consciência por deixar de satisfazer seus desejos infantis que tanto ansiavam por uma guloseima.
Caminhando ágil entre a multidão, a menina não pôde deixar passar despercebida uma barraca um tanto quanto chamativa, com lonas de cores vibrantes e cercadas por crianças de todas as idades.
- Calma! - Ela pôde ouvir uma voz alegre e feminina, vindo da barraca - Façam fila! Assim não posso atender ninguém!
As crianças faziam tamanha algazarra que a vendedora não conseguia atender nenhuma delas, todas pediam ao mesmo tempo, estendendo mãozinhas pequeninas, sedentas de doces. A mulher que atendia era bastante jovem e bonita, e parecia contente com toda aquela bagunça.
Valderesse não se agüentou em si e simplesmente deixou suas pernas lhe guiarem para a tal barraca, postou-se em um dos cantos dela, esperando ser atendida.
Passaram-se alguns minutos até que ela fosse atendida... A ansiedade estava fazendo os minutos voarem, ela nem tinha percebido quanto tempo ficara ali.
- Bem, e então, o que vai querer, menininha? - A mulher finalmente se virou pra ela.
Então ela estendeu a moeda de ouro entre as pequeninas mãos e disse, com a voz trêmula:
- Eu...Eu quero o doce maior e mais gostoso que essa moeda poder pagar.
- Está bem...
A mulher demorou-se alguns segundos sob o balcão e levantou-se de novo, com um doce na mão. Era uma espécie de bom-bocado, salpicado de açúcar preto, que cabia justo na palma de sua mão.
- Obrigada... - Ela disse, virando as costas. Ela realmente esperava que o doce fosse talvez um pouco maior. Enfim, ela esperava que ele pudesse saciá-la.
Valderesse parou na multidão, pronta para comer o doce. Chovia bastante e ela aparou-o com a outra mão. Olhou pelo caminho de onde tivera vindo, a rua tinha se tornado uma enorme poça de lama.
Mas algo inesperado aconteceu. Como uma flecha, um garoto passou correndo por ela tão rapidamente e com tamanha força que sem querer esbarrou em seu ombro que fez o doce cair no chão, um pouco distante de onde ela estava.
Valderesse ficou parada atônita, olhando o doce caído na imunda poça de lama, suja de estrume de bois e cavalos. Em instantes não se via mais migalha, fora pisoteado pelo povo que andava com euforia, para proteger-se da chuva que estava aumentando.
Ela sentiu lágrimas quentes virem aos seus olhos, lágrimas de remorso e desgosto por não ter seguido o conselho de seu pai e ter comprado algo que alimentasse de verdade. Limpou o rosto, nunca deveria se deixar abater, se o pai a visse assim lhe daria um longo sermão. Um sermão tão severo que a faria se recordar de cada palavra em uma semana ou duas ainda. Bertran Ádague era uma pessoa áspera, nunca agressiva, mas mais frio que o inverno no alto das colinas. Valderesse se preparava pra voltar até a carruagem quando escutou alguns comentários vindos do interior de uma barraca de vendas. A chuva forte batia em seu rosto adocicado e infantil, e mesmo com esse incômodo ela ainda conseguia escutar perfeitamente.
- É verdade então? -A voz feminina falava com empolgação.
- Sim, as criadas da casa sempre ficam a comentar quando vem à vila, não lhe digo mentiras, Finn.
- Estás certa, eu já tinha ouvido esses rumores, o Memorial Chambrieh abriga um pequeno demônio!
- É o próprio filho do Lúcifer!
- Deus do céu, tenha piedade de nós.
As mulheres se calaram e se puseram a falar mais baixo ainda, Valderesse arregalou os olhos. Então era pra lá que estaria indo? O Memorial Chambrieh? Ela fez o sinal da cruz no peito, com o polegar infantil, depois o pousou nos lábios pequenos, pensativa. Sr. Ádague não a avisara de nada. Valderesse cerrou os punhos infantis e correu retornando para a carruagem, onde esperou que o Sr. Ádague abrisse a mesma. Estava um pouco molhada pela chuva que havia começado a umedecer seus cabelos ruivos, e sentou-se com o maior cuidado que pôde, secando-se com uma toalha que esperava estrategicamente sobre a mesa de centro. Educadamente a depositou no lugar de origem, e sentiu uma onda de frio percorrer o corpo. O Sr. Ádague continuou a ler o livro e não pronunciou qualquer sílaba, ela, porém, esperava que ele lhe desse um olhar, era o bastante para compreender que já tremia pela da chuva. Depois de esperar alguns minutos, muitos ou poucos ela não de deu conta, tão somente estava exausta de implorar um cuidado, voltou-se para o assento forrado de veludo e se protegeu no estofado saltado e saliente. Estaria em algumas horas no lugar de destino, mas sabia que se não cuidasse, o Sr. Ádague escutaria seu estômago chiar de fome.