Marrieh e Sr. Ádague pareciam estar a uma eternidade no aposento, pela sua garganta acabou por sentir um hálito adocicado e conseqüentemente o bocejo veio, fazendo com que Valderesse levasse a mão até os lábios e, sofregamente, tentasse contê-lo. Tão entediante era estar ali quanto era ler as obras antigas que lhe dava seu pai, e pior ainda, o olhar constante dele sobre a leitura, fazendo-a ler o mais interessada possível. Como uma pessoa poderia querer transferir o interesse que tinha em certa obra para outra, era algo que a jovem se questionava com freqüência. Não havia mais ninguém ali, a porta da cozinha não estava mais aberta e tampouco havia iluminação escorregando-se por baixo da porta, sobre a soleira. Se não fossem algumas velas que ficavam ali, acesas constantemente, ela poderia fechar seus olhos e adormecer, tão escuro estava. Como o ébano, assim como a mobília do hall. Curiosamente as velas pareciam adormecer, enquanto a chama tremulava e fazia-as respingarem e chorarem sobre os candelabros trabalhados e em forma de cavalos. Afinal, ela pensou, deveriam os empregados limparem as velas e trocá-las, era como estar numa própria catedral com luminárias das quais se pagam promessas a ficar ali dias, até que se consumissem, e obviamente, sem qualquer limpeza do local. De certo, ela não estava numa catedral, pois sua pele se arrepiava constantemente com a sensação exata da aproximação de alguma espécie de vulto, mas eram apenas as sombras voluptuosas das velas, que iam e vinham com qualquer brisa que soprasse.
O estranho era apenas o pensamento de que, brisa alguma deveria transpor aquelas cortinas tão grossas e absurdamente fechadas. Quando Valderesse prestava atenção na vela, escutou um som de riso, um riso doce e embebido de charme, parecia brincar com as notas enquanto deliciava-se na graça. Alguém tocava piano, mas vinha de algum lugar, e não propriamente do hall. Tempestade, de Beethoven. Delicadamente as notas se desmanchavam por entre as paredes, e quando chegavam aos seus ouvidos, pareciam ainda mais suaves. Cada queda de nota era sentida como uma emoção da própria tristeza, mas a melodia continuava como uma bela e harmoniosa felicidade, infantil. Valderesse tirou os pés de onde estavam, quase sendo tragada para dentro da casa, na direção da escada. A musica se tornava mais alta, as notas se casavam, entrando numa perfeição em tonalidade ampla, aos degraus que lhe surgiam aos pés, a melodia sussurrava mais e mais alto. A mão tocou o apoio ao lado da escada, feito de mogno, e logo seus sapatos avançavam pelo tapete vermelho e felpudo. Seu coração batia calmo, mas seus sentidos eram brindados por aquela brincadeira de notas, nem sequer pensava numa suposta desobediência que pudesse estar cometendo, em estar longe do lugar onde Sr. Ádague a deixara. Era uma porta do outro lado do corredor, a esquerda, estava fechada. Valderesse andou enérgica, além da respiração agitada, as notas do piano a conseguiam fazer parecer elétrica, apressada. Era o fim da ala oeste, e havia somente aquela porta ali, de frente para ela. Havia uma outra, ao lado, mas não era de fato importante. Aquela era, sim... O som da qual emanava, tão intenso e apaixonado, parecia como uma correnteza que se desvia para um rio, magicamente, ou sinuosamente como o amor. Intenso, cruel, e de uma só vez, cálido. Tocou a maçaneta, e a sentiu no mais gélido poder que o metal trabalhado poderia ter, deixando sua mão um pouco adormecida. A musica não lhe dava tréguas, e sem hesitar então ela abriu o aposento, fazendo a porta ranger levemente. A melodia não cessou, mas acalmou um tanto, transformando-se numa valsa, para depois retornar com todo o peso e malevolência da paixão, doce. Uma jovem loura, cabelos dourados e radiantes, ondulados e vivos, que cercavam-na enquanto dançava ao lado do piano negro. Seu vestido era branco, seus seios jovens ficavam quase a mostra na transparência franzida. Seus olhos verdes, impetuosos e amorosos, observavam somente o pianista, que não mostrava o rosto, de costas para a porta. Valderesse percebeu cada nuance da adolescente, que parecia tão viva e feliz, rodopiando suavemente enquanto o vestido gracioso a acompanhava, como uma rosa desabrochando. O quarto não era tão escuro, tinha velas bonitas em cima da cauda do piano, e servia de iluminação aos dois, fazendo o rosto da jovem, em especial, ficar rosado e agradável, mesmo que fosse tão linda. Valderesse segurava ainda na maçaneta, sem coragem de interromper o dueto. O pianista tinha cabelo longos e negros, que se enrolavam nas pontas. Também era jovem e era esbelto, como uma senhorita. Tocava, e seus dedos brancos e delicados deslizavam como plumas caídas das asas de pássaros, quase brincando, maleáveis sobre as teclas. A musica parou.
Valderesse sequer respirou, sua tensão havia desabado completamente, seus olhos estavam dirigidos para os olhos da jovem, parecia filha da Sra. Treifforthine, tamanha sua semelhança. Era uma semelhança, obviamente transfigurada pela carga de virtuosidade, uma bondade, pureza e felicidade que pareciam transbordar dos olhos e do sorriso daquela, nada tinham em comum com a Sra. Do Memorial. Ela riu, e fez com que o pianista girasse seu corpo e olhasse a expectadora. Os olhos do jovem eram azuis, tanto quanto os de Valderesse, mas tão intensos e calmos, espiravam verdade. Um sorriso tão fácil quanto o da jovem acompanhante, lábios finos e doces, róseos, e a pele tão pálida que parecia um leite.
- Qual o seu nome? -Perguntou ele, com a tal calma com que sorria e olhava Valderesse. De certa forma se tornava inquietante.
Valderesse sentiu a nuca arrepiando, não havia passado qualquer brisa, seus cabelos, presos impecavelmente, cobriam-lhe a pele. Uma sensação incrivelmente inquietante e que a deixou inerte por alguns segundos. Os jovens riram-se, mas ela conseguiu fazer as palavras saírem de sua boca:
- Valderesse Ádague. -Insegura, somente queria responder-lhes. Não sabia o porque daquelas pessoas trazerem tanta inquietude. Era como um arrepio, sua pele parecia irritada e eletrizada, e simplesmente não conseguia mover-se, embora não estivesse ordenando pensamentos pra isto.
Ambos esperaram um pouco, após uma pequena pausa, a jovem disse, delicadamente:
- Não aceite nenhum presente.
Valderesse foi impelida a perguntar, muito rapidamente:
- O que vai acontecer se eu aceitar algum? Não tenho medo de nada.
- Alguém que tu amará sofrerá muito. -O jovem disse, se levantando devagar e arrumando as roupas finas, delicadas.
- Eu não amarei ninguém, amor não existe... -Valderesse disse, tomando forças para terminar de abrir a porta, mas esta era um pouco pesada.
Ambos riram-se da pequena, mas seus rostos se transfiguraram em uma tristeza profunda, mágoa. Deram-se as mãos e caminharam acompanhando-se até as velas, apagando-as. A jovem Marrieh se abaixava e soprava uma a uma, enquanto o jovem Turrieh a observava, segurando em sua mão fina. A sala gradualmente foi ficando escura, até que não mais puderam ser vistos. Valderesse nem sequer forçou para abrir a porta por completo, olhou para o chão, tentando entender o que havia sido aquilo tudo. Estava sentindo calma, não tinha mais aflição, embora não sentisse tampouco a presença de qualquer pessoa.