Como proposta para análise de poesia, que tinha por único parâmetro o pertencer esta a qualquer ano pós-1945, optamos por escolher um os grandes nomes não só da poesia contemporânea brasileira, mas quiçá, ao lado da poética de João Cabral de Melo Neto, o que o Brasil produziu de melhor em nível mundial nos seus ínfimos quinhentos anos de literatura. Trata-se de Carlos Drummond de Andrade.
Evidentemente, propor uma análise para qualquer poesia de Drummond implica incorrer em certo risco: o risco de sua atemporalidade, de sua irredutibilidade a moldes prontos de análise, de sua incompatibilidade de características de qualquer movimento literário. Contudo, “quem não arrisca, não petisca”, diz o dito popular, por isso decidimos escolher a poesia A bunda, que engraçada como objeto de análise. O que vamos chamar de análise nada mais é do que uma leitura nossa, leitura essa que leva apenas em conta nosso conhecimento de mundo e de literatura e, principalmente, o que sentimos.
Algumas palavras sobre a poesia escolhida fazem-se necessárias. Em primeiro lugar, não se trata de uma poesia “canônica”, digamos assim, de Drummond, como o são José, A Máquina do Mundo e No Meio do Caminho. Também não é uma poesia da grande fase do poeta, que inclui os poemas de A Rosa do Povo e de Claro Enigma. É, sim, uma poesia que consta em um livro de publicação póstuma, chamado O Amor Natural (1992).
Este livro, que o poeta parece ter escondido por muito tempo, é completamente composto de poesia de cunho erótico, sendo um desenvolvimento mais aprofundado dos temas tratados em seus poemas de “conhecimento amoroso”. O que mais chama a atenção nos poemas desse livro é a franqueza direta e desimpedida pela qual a sexualidade é tratada, sendo esta não só uma novidade na poética drummoniana, mas também na poesia brasileira em geral. Entretanto, A bunda, que engraçada, apesar do título e de uma sexualidade latente, parece conter algo muito mais profundo, como as sendas da existência do ser humano, sendo isso o que tentaremos mostrar em nossa leitura que segue: que apesar de pertencer ao período crepuscular de Drummond, essa poesia é ainda um exemplo da magnificência desse poeta que influenciou a leitura brasileira pós-1945 como um todo.
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1. A DUALIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA
A riqueza da poética drummoniana não nos permite, em uma primeira instância como este trabalho, uma análise sumamente aprofundada de uma única poesia, pois em toda a sua obra, Carlos Drummond de Andrade parece ter construído um corpus único, porém todo fragmentado, daí a necessidade de uma análise aprofundada de suas poesias em um todo, o que não faremos aqui devido ao nosso pouco tempo e espaço. Dessa forma, tudo o que aqui apontarmos são percepções primárias de uma poesia riquíssima, como qualquer uma do autor em questão.
O poema A bunda, que engraçada parece, ao que nossa leitura indica, inserir-se no nono daqueles nove núcleos temáticos discernidos pelo próprio poeta, ou seja, uma visão, ou tentativa de, da existência. Partindo-se desse princípio, o que é apresentado no poema nada mais é do que uma grande metáfora do ser humano e sua existência ambígua, reduzido à uma parte íntima e pouco “poética” de seu corpo: a bunda.
No poema todo, nota-se um eu lírico que está narrando suas impressões e conclusões sobre a bunda: A bunda, que engraçada./ Está sempre sorrindo, nunca é trágica. (versos 1 e 2). Temos aqui a primeira dualidade humana, que é parte também de sua existência: o ser humano é cômico e trágico, havendo apenas uma tênue barreira que separa a comédia da tragédia. Contudo, principalmente no ser humano moderno, normalmente a comicidade está intimamente ligada à tragédia, podendo uma estar dentro da outra e emergindo daí o drama moderno. Dessa forma, Drummond consegue passar essa intimidade da comédia/tragédia já pela escolha de uma tema cômico (representado pela figura da bunda), do qual vai emergir a conclusão trágica e assustadora do verso 19, ou seja, do drama da existência humana: Esferas harmoniosas sobre o caos.
Em A bunda, que engraçada, a dualidade humana, assim como a dualidade da sua existência, está sempre em contradição com a harmonia sem conflitos da bunda: A bunda basta-se. (verso 4); Anda por si/ na cadência mimosa, no milagre/ de ser duas em uma, plenamente. (versos 9 a 11). Para o eu lírico, a bunda não tem o eterno conflito existencial da incompletude humana: ela é plena em sua dualidade, ou seja, tudo o que o ser humano não é. É por isso, talvez, que ela fica atrás do Homem, oculta, em sua plenitude, do olhar desmistificador e caótico do próprio ser que a carrega. É justamente isso que Drummond parece querer expressar quando, na voz de seu eu lírico, diz que A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio. (versos 8 e 9). A simbologia a qual remete lua nesta passagem está relacionada ao oculto, ao noturno, ao acima do entendimento humano.
Apesar de todo o cunho erótico/sexual, e quase escatológico, que a palavra bunda carrega, a intensidade da poesia drummoniana, na sua surpreendente franqueza no tratamento do assunto, não permite que o poema caia em mera verborragia esdrúxula. Essa intensidade, ao mesmo tempo delicada e profunda, é magnificamente exemplificada pelos versos da estrofe 4: as insinuações de uma sexualidade latente estão diluídas em termos como se diverte, ama, na cama, montanhas. Observe-se a sutileza dessas insinuações em meio às referências à bunda, ajudando a revelar o contraste quase gritante do desvendamento da psique humana através de uma metáfora ímpar: Ondas batendo/ numa praia infinita. (versos 15 e 16). A visão da praia infinita remete ao ser humano enquanto dotado de consciência, e as ondas batendo remetem ao pensamento, ao fluxo das idéias que vêem como ondas.
É nessa passagem que começa, também, a emergir da comicidade a tragédia, o assombro diante da descoberta do verdadeiro âmago do Ser, do deslindamento nada cômico de uma visão, ou tentativa de, da existência. A penúltima estrofe é de uma força arrasadora, quase irônica: Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz/ na carícia de ser e balançar./ Esferas harmoniosas sobre o caos. (versos 17 a 19).
O verso 19, último dessa estrofe e sem dúvida o de maior força na poesia, vem revelar essa epifania, digamos assim, do eu lírico: a descoberta, plácida (por isso quase irônica), de que, no ser humano, a única coisa harmoniosa em meio ao caos que o constitui (caos esse que já começa na eterna dualidade do corpo versus o espírito), é a bunda, e esta bunda está sobre o caos, ou seja, encima, acoplada ao corpo caótico, que nada mais é do que o indivíduo moderno.
Assim, é dessa forma que Carlos Drummond de Andrade se insere na poesia contemporânea brasileira: problematizando, a partir de um mote aparentemente cômico como a bunda, todo o caos do ser humano moderno, fragmentado pela massificação da arte e por sistemas injustos de estrutura social. Trata-se, portanto, de uma poesia madura, de uma profundidade difícil de ser apreendida devido ao tênue acobertar do humor suscitado pela palavra bunda.
Além disso tudo que apontamos, há sem dúvida outras características nesta poesia que contribuem para a contemporaneidade de Drummond, características estas como o aproveitamento do espaço da página (algo que seria profundamente desenvolvido pelos concretistas): observe-se que, se traçarmos um risco em torno do desenho formado pelos versos dispostos nas seis estrofes, verificaremos que o resultado será duas formas igualmente arredondadas, ou seja, como a bunda. Há também o fato do poema ser narrativo, os versos sem rimas, certa influência surrealista (estrofes 2 e 4), o humor, e até um artifício de retórica clássica ironicamente descontextualizado: a famosa sinédoque, que consiste em tomar o todo pela parte e a parte pelo todo [no caso do poema, o que acontece é uma revelação do todo (o ser humano) através do tratamento poético dado à uma de suas partes (no caso, a bunda)].
Como se percebe até aqui, a poesia drummoniana nada tem de mirabolante em termos de experimentalismos visuais (o que não significa que não tenha, mas em bem menor intensidade) de linguagem, como os concretistas, por exemplo. Sua modernidade reside nesse tratamento franco da sexualidade, e também no desprovimento de sentimentalismos românticos no tratamento de grandes temas universais (neste caso, o Homem), como se Drummond, em toda a sua obra, estivesse sempre à procura de uma permanência atemporal (como parece ter ficado bastante claro em nossa leitura) muito diferente dos experimentalismos pontuais e passageiros de outras correntes literárias contemporâneas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tudo que foi visto até aqui é a nossa leitura pessoal, nossa análise, digamos assim, de uma poesia pós-1945, que havíamos proposto na introdução. Conclusões parecem ser desnecessárias, uma vez que tudo está presente, de uma forma ou de outra, na análise. Apesar disso, ressaltamos que, em nosso entender, conseguimos comprovar nossa percepção inicial de que, sob o aparente disfarce do riso, estava algo mais profundo: a problemática da existência humana.
Obviamente, temos consciência de que nossa leitura é passível de discussão, mas, voltamos a repetir o dito popular: “quem não arrisca, não petisca”. É isso.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. A bunda, que engraçada. In: MARICONI, Ítalo (org.)
Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BIBLIOGRAFIA
ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000.