Mais uma evidência de que nós fazemos o nosso destino. Nascemos geneticamente predispostos a alguns comportamento e a determinados estados de saúde. Mas o modo como levamos a vida tem um enorme peso na condução e alteração desse caminho.
"Muito além do genoma
Desafio da ciência agora é entender como o estilo de vida aciona ou silencia os genes
PERSPECTIVAS: Até 2008, a epigenética pode desvendar mistérios não explicados pela genética clássica
Uma das ilusões mais cultivadas nos anos 90 foi a de que o Projeto Genoma Humano, o esforço internacional de seqüenciamento dos genes, desvendaria os responsáveis por disparar centenas de doenças. A simplificação cumpriu um papel didático e ajudou muita gente a receber verbas de pesquisa, mas escondeu o longo caminho que os cientistas têm pela frente. Ao identificar os tijolos químicos que guardam instruções sobre o funcionamento dos seres vivos, os pesquisadores produziram um marco na história da biologia. Mas o grande salto depende de mais um passo, o desenvolvimento da epigenética, a ciência que pretende esclarecer como fatores ambientais (hábitos alimentares e stress, por exemplo) podem interferir no funcionamento dos genes mesmo sem produzir mutações na sequëncia do DNA. "Os efeitos ambientais podem ser muito mais importantes do que se imagina", diz Thomas Insel, diretor do National Institute of Mental Health. "Esse campo é revolucionário."
Mais do que esmiuçar seqüências de genes para encontrar qual deles está relacionado a alguma enfermidade ou comportamento, os geneticistas buscam entender como o estilo de vida é capaz de acionar ou silenciar genes. O Projeto Epigenoma Humano, lançado em outubro, promete render boas notícias nos próximos anos, ainda que a conta-gotas. Parceria entre o britânico Sanger Institute e a empresa alemã Epigenomics, a iniciativa é uma extensão do Projeto Genoma, que consumiu uma década de trabalho de milhares de pesquisadores.
"O Projeto Genoma determinou o número e a localização dos genes, mas rendeu pouca informação sobre quais deles são ativados nos diferentes tecidos", diz Stephan Beck, um dos líderes do Sanger Institute. O alvo do novo trabalho é a chamada metilação - processo natural que ocorre na citosina, uma das quatro bases que compõem o DNA (conhecidas pelas letras A, T, C, G). Quando essas pequenas moléculas chamadas "grupos metil" agem sobre a citosina (a letra C), o gene fica inativo.
HÁBITOS O padrão fast-food pode interferir na expressão dos genes até das gerações futuras
A metilação normalmente silencia genes que não são necessários para determinada célula. A ciência tem demonstrado que esse processo é fortemente influenciado pela alimentação. Uma das mais relevantes pesquisas nesse campo foi divulgada em agosto pela equipe do cientista Randy Jirtle, da Duke University, nos Estados Unidos. Em um experimento com camundongos, ele demonstrou como a dieta da mãe altera o funcionamento dos genes da cria.
Jirtle trabalhou com uma linhagem de ratinhos dotados de informação genética que os predispunha à obesidade, ao diabetes, ao câncer e à pelagem amarelada. Durante a gravidez, a fêmea gorducha e de pêlos claros recebeu suplementos de vitamina B12, ácido fólico e betaína, nutrientes ricos em grupos metil. Eles desativaram os genes envolvidos no excesso de peso, na coloração dos pêlos e na tendência ao diabetes e ao câncer. Os filhotes nasceram saudáveis, marrons e dentro do peso ideal.O resultado ajudou a relativizar o papel dos genes na complexa engenharia dos seres vivos.
Até 2008, quando o Projeto Epigenoma Humano deverá estar concluído, muitos enigmas que a genética clássica ainda não foi capaz de explicar poderão ser desvendados. Uma das questões mais intrigantes diz respeito aos gêmeos idênticos, que compartilham o mesmo patrimônio genético mas enfrentam doenças diversas. Por que apenas um dos gêmeos desenvolve esquizofrenia, diabetes ou câncer, se ambos estão sujeitos à mesma predisposição genética?
Os grupos metil desempenham papel fundamental ä no controle de genes durante o desenvolvimento intra-uterino e mesmo após o nascimento. Por isso são tão vulneráveis aos padrões alimentares e ao estilo de vida. Os experimentos sugerem que, durante a gravidez, até mesmo breves exposições a qualquer coisa que interfira no padrão de metilação podem influenciar o destino da saúde do bebê ao longo de toda a vida. Os geneticistas especulam quais serão as conseqüências do padrão fast-food nas gerações futuras. As enormes porções americanas, cheias de gorduras e açúcar, podem estar estimulando efeitos epigenéticos - bons ou ruins. Por enquanto, já se sabe que padrões anormais de metilação estão envolvidos na gênese da maioria dos tipos de câncer, como os de mama, próstata e intestino.
Ao mesmo tempo, as propriedades antitumorais atribuídas a alguns alimentos podem ser explicadas não apenas pelos nutrientes em si, mas também pelos diferentes padrões de metilação verificados nas pessoas que os consomem. Essa linha de pesquisa abre oportunidades para a descoberta de novos medicamentos. Mas há muito trabalho pela frente, como ressaltou o cientista Francis Collins no principal artigo publicado ao final do Projeto Genoma. Com uma frase do poeta americano T.S. Eliot, Collins deu o tom da longa jornada: "O final de toda nossa exploração será chegar aonde começamos e conhecer esse lugar pela primeira vez".
A GENÉTICA PASSA PELO PRATO
Os genes definem as características dos bebês, mas a dieta materna pode mudar o destino genético de um recém-nascido
1. Os bebês herdam os genes dos pais - metade da mãe, metade do pai. Assim, os traços de uma criança são determinados na hora da fecundação
2. Enquanto o embrião se forma, porém, a ação dos genes pode ser modificada pelos nutrientes que chegam a ele pelo cordão umbilical
3. Experiência feita no ano passado nos EUA (abaixo) mostra que a dieta materna pode decidir se um recém-nascido será loiro ou moreno. Ou até se terá tendência a ser obeso. Ou seja, os genes já não são soberanos: o "ambiente" dentro da barriga
da mãe também conta
4. A epigenética - que estuda a influência do ambiente sobre os genes - mostra que eles sofrem a ação de pequenas moléculas chamadas "grupos metil". São como presilhas, que travam a hélice de DNA: se a hélice não se desenrola bem, um gene pode ser desativado. Na experiência, o gene da obesidade foi desligado, gerando filhotes magros
5. Os grupos metil são feitos de ingredientes comuns do cardápio, como a carne, o feijão e a alface. Daqui para a frente, esses nutrientes ganham um papel de destaque na genética, ao lado dos próprios genes
As experiências, até agora, foram feitas apenas com ratos. Mas espera-se que no futuro possam dar resultado semelhante em humanos
A COR DO PÊLO NÃO ESTÁ NO DNA
A dieta da rata ao lado incluiu nutrientes que continham pouca vitamina B12 e ácido fólico. Teve mais filhotes amarelados do que marrons. Alguns dos amarelinhos também eram obesos
Ratas que recebem nutrientes diferentes têm filhotes de cores distintas
Mas esta rata, ao contrário da anterior, comeu bastante vitamina e ácido fólico e teve mais filhotes marrons, menos propensos a engordar
A experiência foi feita pelos pesquisadores Randy Jirtle e Robert Waterland, da Duke University
INFOGRÁFICO
CONTEÚDO: FLAVIO DIEGUEZ
DESIGN: LSALOMÃO"
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