Magno Mello
Nos anos de 1995 e 1996, o Banco do Brasil se viu em enormes apuros, resultante, entre muitas outras travessuras de mesmo nível, do perdão de dívidas monstruosas de usineiros. A secular instituição foi lançada, na prática, a um estado virtualmente falimentar, tendo em vista que o passivo superava em larga margem o patrimônio líquido da empresa. Só havia um meio de evitar a derrocada total: extorquir da Previ, fundo de pensão dos empregados do Banco, capital suficiente para recolocá-lo de pé ou para pelo menos maquiar razoavelmente suas finanças.
Na ocasião, a Previ constituía um saco de dinheiro de provocar e justificar muito olho grande. Mesmo com os freqüentes e recorrentes desvarios na administração de seus recursos, o fundo dispunha de capital em quantidade razoavelmente abundante, porque as contribuições – do Banco e dos participantes – não pagavam benefícios, tendo em vista que as obrigações previdenciárias da Previ só se dirigiam aos empregados admitidos depois de 1967, na sua imensa maioria ainda sem condições de se aposentar na época em que se iniciaram os fatos aqui relatados.
A proporção do desfalque necessário para corrigir as finanças do Banco e pretendido pela administração da estatal exigia uma profunda mudança estatutária na Previ, que o Banco não conseguiria efetivar sem a autorização de seus participantes. Era preciso repassar para a Previ o passivo atuarial arcado a contragosto pelo Banco, aquele relativo à aposentadoria e às pensões do pessoal admitido antes de 1967.
Não havia meios de concretizar a alteração sem obter a adesão de um grupo de bancários petistas que sistematicamente ganhava as eleições na Previ e controlava a opinião de seus participantes. Por esse motivo, foi celebrado um acordo entre os administradores do banco e o grupo petista, por meio do qual seus integrantes se comprometeram a sustentar perante os participantes a necessidade de alteração do Estatuto da Previ, obtendo como contrapartida uma repartição de poder absolutamente simétrica na gestão dos negócios do fundo.
Pelo entendimento entre os representantes do banco e a articulação bancária petista, a diretoria executiva da Previ passaria a ser integrada por seis representantes, três indicados pelo Banco e três pelos empregados, com o detalhe de que nenhuma deliberação poderia ser levada a efeito sem o concurso de cinco membros do colegiado. Na prática, criou-se uma situação de mútua dependência: petistas e tucanos só decidiriam de comum acordo. Nenhuma decisão de investimento seria possível sem que existisse consenso entre os dois grupos.
A operação foi um sucesso e o estatuto terminou sendo modificado, levando a Previ à inviabilidade atuarial que hoje a caracteriza, tendo em vista que seus compromissos com a massa de aposentados atuais e futuros superam em larga margem o patrimônio de que dispõe e o ingresso de recursos derivados de contribuições do Banco e dos participantes. Tal situação, evidentemente desastrosa, chegou a ser diagnosticada pela então Secretaria de Previdência Complementar (hoje denominada Superintendência Nacional de Previdência Complementar), o que resultou não no enfrentamento dos fatos, mas no afastamento sumário da secretária que alardeou uma enorme cratera na situação financeira da Previ e de outros fundos de pensão.
De todo modo, a questão se resumiria ao sempre adiado colapso da Previ, não fosse a ambição desmedida dos que a controlavam, que logo passaram a exigir do fundo de pensão do BB mais do que a salvação de seu patrocinador. Haviam obtido condições políticas para justificar uma enorme “privatização” das empresas estatais e não lhes parecia agradável a perspectiva de arriscar capital privado na compra de empresas do Estado. Enxergaram na Previ, com a lucidez dos grandes visionários, a teta que permitiria a mágica da privatização sem o envolvimento de dinheiro que pertencesse estritamente a particulares, ou em outros termos, a privatização sem recursos privados.
Para levar a complicada operação a bom termo, foi necessária a constituição de uma empresa de fachada, um certo grupo apropriadamente denominado “CVC-Opportunity”, especializado em engendrar e operar geniais acordos de acionistas e consórcios para efetivar a privatização das estatais. Esses acertos seriam baseados em um raciocínio simples: os fundos de pensão – Previ à frente – entrariam com a parte podre, investindo o capital de que dispunham, cabendo exclusivamente aos “empresários” privados a administração livre e desinibida das empresas a partir de então “privatizadas”.
Ainda prevaleciam, na ocasião, os efeitos da combinação travada para a mudança do Estatuto da Previ, de modo que se tornou necessária a indicação de membros dos dois grupos para constituição do Opportunity. De acordo com as afinidades que mais tarde revelariam (e que se encontram documentadas), um senhor que atende pelo nome de Daniel Dantas provavelmente representou na estrutura societária da polêmica firma o grupo tucano, enquanto outro indivíduo, batizado de Luís Roberto Demarco, supostamente respondia pela defesa dos interesses petistas.
As características dos dois grupos e o fato de que o casamento se dera por simples conveniência, não por afinidade ou simpatia recíproca, levaram ao rápido rompimento do ajuste e ao início de batalhas homéricas pelo controle da Previ e dos demais fundos de pensão de estatais, que historicamente agiram e ainda agem a reboque da entidade patrocinada pelo BB. Donos da máquina política e do dinheiro, os tucanos logo conseguiram, por meio de manobras judiciais bem sucedidas, alijar o sr. Demarco da administração do Opportunity, o que não ocorreu, contudo, sem a vigorosa contrapartida dos prejudicados.
O país tem sido vítima, desde então, de uma sangrenta disputa de poder entre os dois grupos, que explica e justifica parte significativa da agenda legislativa posterior aos fatos de início narrados. FHC se empenhou na aprovação de uma reforma previdenciária cujo único resultado prático repousa na legitimação de intervenções nos fundos de pensão das estatais, com o claro objetivo de dar fim à incômoda gestão compartilhada implantada na Previ. De sua parte, os petistas encharcaram a imprensa com denúncias dos desmandos tucanos, não com o intuito de vê-los apurados – porque parariam na cadeia por terem sido coniventes com cada deslize efetivado –, mas para desgastar seus adversários, que, depois de anos a fio impiedosamente chamuscados, terminaram perdendo a eleição presidencial de 2002.
Instalados no poder, os petistas partiram para a revanche, mandando os tucanos para lugares próximos a Matusalém e ocupando cada espaço da administração dos fundos de pensão (apenas no Centrus do Banco Central ainda sobrevive, sob intenso tiroteio do governo petista, a administração antiga). A reforma previdenciária do governo Lula se explica não para melhorar as contas do sistema de aposentadorias e pensões, mas para ampliar o caixa da previdência complementar, aumentando de forma exponencial o número de fundos de pensão, resultado que os petistas valentemente negaram aos tucanos e que os tucanos, postos ante seus próprios dogmas, não tiveram como recusar aos petistas. Pelo menos em um primeiro momento, porque polêmica mais intensa e prolongada se verifica na sempre adiada regulamentação dos novos fundos, até hoje, passado mais de um ano após a aprovação da reforma da previdência que os previa, ainda não implementados.
A grosso modo, as barbaridades que se processam na gestão de fundos de pensão, promovidas em comum acordo pelos dois grupos que há mais de uma década disputam a hegemonia política da Nação, podem ser classificadas como feitas no atacado, isto é, em volume expressivo, ou no varejo, de forma miúda e esparramada. No primeiro segmento, situam-se a aludida alteração estatutária da Previ, o processo de privatização, a avalanche de recursos para financiamento de campanhas eleitorais e a sistemática e permanente manipulação do mercado acionário. No segundo, os “investimentos” em parques aquáticos, os delírios na aquisição e administração de shoppings, as perdas milionárias em ferrovias, portos e complexos de lazer, além de um lastimável número de etcéteras.
Essa situação de absoluto desmando, comprovada por farta documentação (correspondente a mais de mil e quinhentas páginas, entre documentos originais, cópias de pronunciamentos, matérias jornalísticas não contestadas e outros elementos probatórios), vicia, paralisa e leva à inviabilidade a economia brasileira, fundada em megaempresas atreladas a fundos de pensão. Sem reverter esse contexto, não haverá futuro para o país, mas a redenção será impossível se todos esses fatos continuarem sendo ignorados pela população. Assim, autoriza-se expressamente quem tiver acesso ao presente texto que divulgue da forma como puder os lamentáveis fatos nele abordados.
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