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Cartas-->Carta para amanhã todos os dias = 10 de Junho de 1580 -- 09/06/2005 - 21:08 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Ainda não se sabe ao certo a data exacta em que nasceu Camões, presumindo-se que o desconhecido desiderato ande à volta do ano de 1524. Também ainda não se sabe qual o lugar onde foi nado, se em Coimbra ou se em Lisboa. Os investigadores especializados e interessados, sobre o maior vulto da humanidade portuguesa, não encontraram por enquanto o papelinho ou a pedrinha que permitam designar sem contorno o dia da sua florescente vinda ao torrão lusitano.

Sabe-se, sim, o dia em que descontente partiu em corpo todo deste mundo: 10 de Junho de 1580, miseravelmente abandonado à sorte sua, sucumbindo numa tarimba dum esconso e sombrio hospício lisboeta. Talvez daí, derive a rota fama dos poetas que experimentam deliciosos sonhos em submissa decadência e acabam por finar-se sobre uma pobre e rasgada enxerga de indiferença.

Assim que o pó dos ossos mal levita, na primeira e azada oportunidade, a lúgubre bicharada humana, ambiciosa cambada de predadores necrófagos, se encarrega de fazer eclodir o auspicioso vendaval da glorificação, e nasce então o mito: um estoico náufrago, em pleno mar revolto, nada com um dos braços bem erguido das águas, onde segura o padrão sublime de todo um povo, passado, presente e futuro: Os Lusíadas.

És sem dúvida, Luís, pelo espólio deixado, o génio impulsionador da Língua Portuguesa, o cordelista épico, e sobretudo o versejador voraz que saboreou o fruto para dá-lo pleno aos vindouros à flor da boca e da pele, vigorosamente.

Ora, em superficial memória, em 1580 reinava em Portugal um padre, o Cardeal Dom Henrique, um símio universal sem macaca e sem macaquinhos - algo, por uma outra via, de Durão Barroso hodierno - que estimou colocar uma segunda coroa nos sucessivos três Filipes que amordaçaram a alma portuguesa ao longo de 60 anos.

Estava-se à entrada do Verão e o zé-povinho - quiçá na altura houvessem mais Maneis - começava a suar as habituais gotas do sangue sempre em vão que alimenta há miléniops as goelas dos vampiros das igrejinas e palacianas torres.

O Luís, que andaria à época pelos cinquenta e tantos anos de existência, tinha entrado em derradeira moléstia, daquelas em que o doente tosse para respirar e emite uma espécie de som oco que dá a nítida sensação de que o moribundo tem os pulmões furados.

Então, o fiel e indefectível escravo jau, condigno cão-humano, preciosidade que o aventureiro vate trouxe de longínqua viagem, abeirou-se de seu amo para lhe espremer, sobre os ressequidos lábios, umas gotas de sumo da laranja que tinha mendigado nas ruelas de Lisboa.

Inclinando-se sobre um dos ouvidos do Luís, segredou-lhe arrastadamente: "Senhor... Consta que o rei entregou Portugal aos espanhóis...".

Camões mais amareleceu até num ápice se tornar azul, hirto, de olhos em relâmpago parado, há exactamente 425 anos e o sol apagou-se sobre o relógio de pedra da gesta lusitana. Caído ao lado da tarimba estava uma folha de papel que o criado jau apanhou e encostou ao peito:



Lembranças que lembrais meu bem passado
Para que sinta mais o mal presente
Deixai-me se quereis viver contente
Não me deixeis morrer em tal estado

Mas se também de tudo está ordenado
Viver como se vê tão descontente
Venha se vier o bem por acidente
E dê a morte fim a meu cuidado

Que muito melhor é perder a vida
Perdendo-se as lembranças da memória
Pois fazem tanto dano ao pensamento

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória
Se esta vida há-de ser sempre em tormento...

Luís Vaz de Camões


ADENDA - Decerto que as Leitoras e os Leitores, no texto expresso, subentendem que romanceei a história, plausivelmente, presumo. Outrossim, porque fui oficialmente educado e daí tendo para os sublimes valores pátrios acima de tudo, não seria coerente comigo se ignorasse em silêncio a traição que em vida perpassei. Daí, o incontornável azedume que revelo.

António Torre da Guia

Som = Dulce Pontes em "Fado Português"




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