Eram 11 horas da manhã, único horário digno para um ser humano despertar de uma noite tranquila de sono.
A governanta aparece vagarosamente na porta com seu semblante cadavérico – ideal para uma governanta – e assustou Dr. Dávila em sua meditação matinal.
Dr. Dávila: Oh, que susto, Dona Iraci. Acordei agora. O que temos hoje?
Governanta: Devo lembrá-lo que hoje é o dia do almoço na casa da sua senhora mãe, devido a chegada da sua irmã de Curitiba.
Dr. Dávila: Oh, que horror...que má notícia...a única coisa pior que este programa deplorável é o cidadão ser obrigado a assistir um festival de filmes franceses pedantes do tempo de François Truffault.
O Dr. Dávila levantou-se, não sem reclamar muito, da cama e foi fazer o toillete.
Em seguida, sentou-se na mesa de desjejum e passou a vista no jornal matinal, mas lendo sempre com aquele típico desinteresse de um hedonista.
Dr. Dávila: Minha cara Iraci, ou sai ele ou saio eu. Nós dois não podemos conviver no mesmo ambiente. ( Referindo-se ao papel de parede da copa ).
Governanta: Providenciarei, doutor, imediatamente a retirada deste material.
Dr. Dávila: Essas estampas parecem pintadas por um Monet que leu Dostoievsky. Muito depressivas. Coloque algo mais rococó.
O doutor acabou com o seu desjejum, acendeu um charuto, vestiu o seu sobretudo e saiu resmungando. Apesar dos seus 34 anos, parecia um velho. Havia enjoado da música alemã, do cinema francês e da literatura russa. Mas amava os italianos. Dizia sempre na roda de amigos que os italianos são os novos gregos.
Às 12 e trinta chegou na suntuosa e fantasmagórica mansão da Senhora Dávila. Chegando, logo viu que não deveria ter ido; a mãe discutia terrivelmente com a irmã sobre um diabo de um sapato que alguém deu de presente e não coube no pé e sabe Deus o que mais...as duas com a cara amarrada. A Senhora Dávila nem sequer havia tomado banho e o almoço ainda estava sendo preparado pela cozinheira que havia atrasado.
Dr. Dávila: Mamãe, eu trouxe um presente para minha irmã. Devo voltar outra hora?
Sra Dávila: Não, querido, se instale em qualquer canto da casa, fume um charuto. Tem Wagner na minha discoteca. ( falando afobada, sem poder dar a devida atenção ao filho ).
Dr. Dávila: Mamãe, eu enjoei de música alemã...além do mais detesto óperas; sempre me fazem esquecer que há uma música por trás dos gritos.
O doutor se viu obrigado a ficar bisbilhotando a biblioteca da mãe que só continha livros exotéricos, a contemplar o jardim desastrosamente decorado e depois resolveu jogar dominó com a irmã para passar o tempo. E dominó é o único jogo que ele literalmente abomina.
Depois de duas horas, ele estoura.
Dr. Dávila: Onde estão os meus outros irmãos, Deid, Deilton e seus filhos? Quando iremos começar, efetivamente, a recepção?
Enquanto Dávila perguntava isso, sua mãe ia de um lado a outro, enlouquecida, se vestindo, arrumando isso e aquilo, mas nada de almoço.
Sra Dávila: O pessoal vem aí...está chegando.
Depois de mais uma hora e meia, Dávila resolve pedir o número do telefone da irmã e ligar...descobre que Deid ainda está em casa esperando saber se todos já chegaram à casa da mãe. Ele perde o controle e diz, impaciente...
Dr. Dávila: Eu estou com fome! Eu estou com fome! Não vou esperar ninguém!
Sra Dávila: ( Na maior tranquilidade ) Calma, meu querido. Que coisa vulgar dizer que está com fome. Eu não acredito.
Dr. Dávila: A que altura está a refeição?
A senhora pergunta à cozinheira e ela diz que em, pelo menos, uma hora todos estarão comendo um delicioso pato com purê de maçã.
Dr Dávila: Eu não vou ficar...ficar aqui sem fazer nada de interessante, esperando pessoas totalmente desinteressantes e ainda sem beber nada, jogando dominó e ainda esperando pato com purê de maçã...que nada! Tô fora!
Sra Dávila: Oh, Dávila, como você tem um gênio difícil...estamos em família...
Dr Dávila: E tem coisa pior? Mãe, sinto, mas vou partir ( Sai muito irritado, sem se despedir das mulheres, bate a porta com força e leva consigo o presente que havia trazido para a irmã ).
Quando estava no carro, irritadíssimo, liga do celular para a governanta.
Dr Dávila: Iraci, tenho de lhe falar...
Governanta: Eu já sei do que se trata...não precisa me dizer...vai almoçar aqui, não é? Ia pedir-me para providenciar com o cozinheiro um almoço digno.
Dr Dávila: Minha cara, que eficiência! Não preciso nem dizer...o encontro de família de novo saiu um desastre.
Governanta: Como todo encontro de família! Mas o que vai almoçar?
Dr Dávila: Dona Iraci, poderia mandar a criada verificar se tem pato e maçãs na despensa?