Fico daqui a imaginar o quanto de vivência você traz na bagagem da vida.E sinto até uma pontinha de inveja - saudável! mas inveja! -e fico pensando no quanto eu gostaria de ter tido as mesmas oportunidades de ter vivido à exaustão uma época tão privilegiada de mocidade!
Mas veja só... Filha de Juiz de Direito, autoridade máxima de uma cidade de interior, tendo de ser exemplo para todas as famílias.É...aqui era assim...Tínhamos de seguir determinado estereótipio de vida para dar suporte à autoridade de meu pai.Isso nos era cobrado, amorosamente, mas cobrado.
E lá fui eu, única "filha-mulher", a trilhar caminhos não escolhidos por mim, mas necessários para manter o que se tinha por importante na vida.
Primeiras brigas por namorado, pois filha de Juiz não namora cedo e ainda mais se não tiver a anuência da sociedade. Primeiro estigma, primeira dor, primeiro descompasso. Mas vamos em frente que isso passa! Na hora certa a pessoa certa chega...Se não chegou é porque não era hora... E eu tocava em frente.
Queria ser arquiteta.Mas...curso científico? Só para homens: O que você vai fazer em uma sala cheia de rapazes? Não dá! Mulher precisa só de curso Normal, ter uma profissão caso precise, pois o marido terá de dar o sustento! Lugar de mulher é em casa criando filhos! Prá que inventar moda?
O curso Normal exigia vestibular. Matei todos na esperança de meu pai ter de me colocar para estudar, e aí então o tão sonhado científico. Azar o meu! Depois do terceiro vestibular perdido, acaba lei que o obrigava. Fui matriculada à revelia...
Negociei como nunca havia feito em minha vida:-Vou, mas saio de casa e quero estudar fora após a formatura! Trato feito, comprido, cumprido.Saí sem nenhum apoio, dei de dura, passei aperto,sem dinheiro para o cursinho, não dei conta,voltei!Rabo entre as pernas, curvei-me à autoridade paterna, fiz vestibular para História, e -em casa- formei-me.
Vida já delineada, noivado, casamento, filhas (alegrias à parte, capítulo especial!).Muita mudança, vinte e seis em vinte e oito anos de casada. Corri o país, fui prá lá de Bagdá literalmente.Enfrentei guerras externas, e muito mais as guerras internas,mas venci, estou aqui, fruto sazonado (ainda bem!) pelas primaveras, sabendo-me forte pela história que tive, e que foi só minha.Sem partilhar um desgosto, de olhos fitos no melhor que a vida podia me oferecer. E fui feliz!
E agora José? Daqui para frente é ir em frente com o mesmo denodo, com a mesma fibra. Ainda existe um trecho a ser palmilhado, uma etapa a ser cumprida com responsabilidade e ousadia.
Daí a dizer que tenho inveja de você, porque imagino que, na sua condição masculina,pôde viver tantos sonhos que jamais poderei imaginar quais seriam, e os pôs em prática na sua hora certa.
Ler seu livro sobre bares, me remete a Rita Lee, Caetano, Raul Seixas, reacionários perigosos banidos do meu dia-a-dia. Vistos de hoje, tão ingênuos, mas naquele tempo verdadeiros ícones de rebeldia!
Vida certinha(!?!?)... Cadê o curso de Arquitetura? Cadê o marido certo da hora certa? Cadê a tão propalada segurança de ter seguido caminhos que nem sempre foram escolhas minhas?
Tem hora que dá um aperto...Mas me contenho e vou à luta, pois foi o que mais aprendi a fazer nessa vida. E vou feliz...Dá para entender?...
De tudo isso, ainda me sobrou a esperança de conseguir o tão desejado lugar ao sol, o tão esperado amor incondicional de um companheiro e a tão desejada liberdade de escolha.
Tenho mil coisas a agradecer na vida: as pessoas que têm afeto por mim, e que conto aos montes. Quantos poderão dizer o mesmo?Amigos e amigas leais e sinceros, filhas adultas e companheiras.
Mas mesmo assim, não posso negar que ainda tenho uma pontinha de inveja...ah! Se tenho!...