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Cartas-->LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA -- 01/02/2023 - 16:49 (Renato Souza Ferraz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA

Renato Ferraz

 

Pedra era uma apenas uma pequena cidade, no interior de Alagoas.

O acesso para quem chegasse de outros locais passava pela rua onde eu morava

O ônibus que vinha da capital do estado, todas as tardes, anunciava a sua chegada buzinando.

Funcionava quase como um despertador público. Apesar que uma sirene da fábrica local já cumpria esse papel

Na maioria das vezes eu me encontrava na calçada brincando, parava o que estivesse fazendo para ver aquele ônibus passar

E reflexivo, olhando para o caminho por onde ele veio, Um dia eu teria que pegar aquele caminho e ir embora.

Isso era um sonho de menino, que ao mesmo tempo, como uma premonição alimentava o coração de esperança.  

Eu me interessava em ouvir as histórias sobre a capital, qualquer que fosse o assunto.

Vinham-me logo à mente o mar, as escolas, o cinema, os hospitais, os carros, as pontes.

Tudo deveria ser bem grande e em quantidades maiores, ao contrário do interior.

A vida de criança, numa pequena cidade, onde todos se conheciam e na década de 60, era bem tranquila.

Pensar em se mudar dava medo e gerava insegurança.

Eu ia para a escola de manhã e após o almoço logo que fazia os deveres de casa e o sol do sertão permitia, ia brincar.

No fim da tarde tinha esse compromisso, meu momento de reflexão, ia esperar a chegada do ônibus vindo da capital.

Meus pais diziam sempre que quem quisesse ter uma vida melhor precisaria estudar bastante.

E que a conquista teria que ser enfrentada com determinação e renúncia.

Para uma pessoa pobre era mais difícil ainda, porém isso não deveria desestimular.

Ao contrário, era uma possibilidade de se viver um futuro melhor.

Portanto sair de casa, deixar a vida tranquila para trabalhar e estudar, era o primeiro passo de uma decisão de rumo da vida.

E eu conhecia várias histórias de pessoas até mais pobres que eu, enfrentaram o desafio e venceram.

Cada uma com seu exemplo e uma lição a ensinar.

Enquanto o tempo passava e a vida lá fora me chamava, eu podia apenas ouvir atentamente.

Só que eu tinha uma mágoa, na minha cabeça de criança o tempo de menino era malvado, demorava demais a passar.

Passados já todos esses anos hoje sinto-me quase que engolido pelo tempo,

tudo passou rápido e nem meu tempo de criança foi preservado, apesar da minha queixa à época.

Também guardava comigo o que meus pais diziam sobre a vida. Com 18 anos resolvi enfrentar o desafio

e fui morar na capital para estudar. Precisaria de um emprego para me manter porque tinha o suficiente para sobreviver, apenas por 30 dias. 

Ao chegar à cidade grande, vindo do interior, senti logo a mudança de ares.

Realmente o tipo de vida era muito diferente, bem mais agitado.

Tudo era longe e precisava usar transporte para se locomover, pagava-se por tudo, as pessoas eram mais apressadas,

as ruas e construções apresentavam dimensões enormes. O movimento era intenso toda hora.

Era comum multidões sem aparente motivo, nos lugares, na rua, etc.

Gostei demais da escola onde fui estudar. Era a escola técnica federal local.

Fiz os primeiros contatos, fui me entrosando aos poucos, ainda meio cismado e assim a vida foi se moldando ao novo ritmo.  

Lembro quando fui conhecer a praia, no fim de semana. Fiquei entusiasmado quando vi tanta água num mesmo local,

com ondas e mais ondas brincando umas sobre as outras. Que paisagem mais bonita era aquele universo azul com a junção de tantas piscinas,

embaixo do céu. Era como se o céu estivesse virado de cabeça pra baixo, as nuvens tivessem derretido e enchido de água aquele gigante.

Ora, para quem veio do sertão como eu, era uma confusão danada na minha cabeça.

Ver esse excesso aqui e saber que lá a falta de água na torneira era o normal, me causava grande sofrimento.

Ainda há o calor que é cruel e as árvores e plantas ficam verdes por pouco tempo. Era um verdadeiro contraste tudo isso...

Perguntei-me, na minha ingênua ansiedade de adolescente sonhador se não poderia ter uma forma

mais simples de dessalgar aquela água e fazer uma encanação bem grossa para enviar água para o sertão.

Afinal o governo é tão rico e tudo que ele quer, pode fazer. Fazer dívidas e até fabricar dinheiro, se quiser, ele pode.

Por que não resolvia aquela situação? Era muito triste saber que não apenas a minha,

mas em muitas cidades o povo morria de sede e de fome por falta de água.

O mar foi minha primeira reflexão, já morando na capital. Causada pelas contradições, de ser belíssimo, extravagante,

mas não servia para ajudar o sofrimento do povo da roça e das cidadezinhas pobres do interior.

Após as primeiras emoções, a realidade do cotidiano era dura, algumas coisas a gente entende logo.

Outras precisam de mais tempo ou a gente nem precisa entender mesmo.

 

 

Comentarios

Orival Tadeu Lopes da Silva  - 27/03/2023

Muito boa a tua Carta. Boas lembranças da infância, bastante reflexivas.
Fizeram-me voltar no tempo. Vivi infância semelhante.
Parabéns pelo texto. Já escrevi bastante no Usina. Depois de 10 anos estou retornando.Há-braços!

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