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Cartas-->Aos que se levam muito a sério -- 05/05/2002 - 10:47 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sorriso de Defunto


“Mil venturas é pouco; uma desventura é muito!”


Concebemos o ‘milagre’ como o sucesso de nossas esperanças prévias, mas o verdadeiro milagre é simplesmente se estar vivo. Assim, tropeçamos com o miraculoso a cada segundo, frígidos e inacessíveis, farejantes em meio a um tesouro descomunal, cujo valor é inconcebível à estreiteza de nossa alma. Acreditamos que nossa realização pessoal se dará à medida em que formos adquirindo paulatinamente uma lista de itens, conquistas, degrau por degrau, coisinha por coisinha (e cá pra nós, embuste por embuste) _ aí sim, atingiremos o tal estado que idealizamos. E, por outro lado, fechando o cerco, acalentamos uma espécie de fé mística no Dia da Sorte Grande, o dia em que os céus se abrirão e Jeová deitará seus olhos lânguidos sobre nós, e se comoverá diante de nossa intensa pureza e nos premiará com um cajado mágico. Sim, qualquer imbecil sobre a terra se considera um imperador usurpado, credor de todos os cafunés do universo! E nesse meio tempo, enquanto o Espírito Santo não desce nem a alma sobe, a simples e incorruptível vida desliza, indiferente aos nossos caprichos.

Embora tenhamos uma agudeza, às vezes neurótica, pra escarafunchar nossas supostas problemáticas, escapa-nos uma constatação elementar: se estamos com saúde não nos falta nada, a não ser darmos o devido valor a este fato, gozando-o com o mesmo entusiasmo de quem acaba de achar um baú de ouro. “A melhor coisa do mundo é não sentir nada”, nos garantem os enfermos. Mas falta-nos um pouco de afinação, de inspiração e, sobretudo, atenção _ itens mais valiosos que todos os prêmios da Mega-Sena juntos. A felicidade, a auto-realização, está sempre mais à frente, mas SE LIGAR que é bom, nada! Talvez a mera indolência tenha um bom papel nisso. O famoso poder da inércia!

Espiritualmente, o verdadeiro e tão decantado sentido da vida é simplesmente viver (e dar valor a este fato a cada minuto); o resto é lucro. Materialmente, embora disponhamos de mais conforto e recursos de que nenhum imperador romano jamais gozou, nos sentimos miseráveis e complexados ante os acenos das novas “necessidades”. (Um homem de 300 anos atrás daria um braço e uma perna por coisas que hoje julgamos triviais, como água encanada, vias públicas pavimentadas, luz e energia elétrica, poder de locomoção rápido e barato, anestesia, pílulas miraculosas que debelam a loxoflemoriose em 15 minutos, liberdade de expressão, comida temperada, atenuação da barbárie, horizontes morais e intelectuais mais amplos, garantias civis razoáveis, pornografia generalizada, mercado de consumo abastecido etc). Em geral, o que levamos em conta na valoração do mundo e do tempo em que vivemos _ nossa própria existência aí incluída _ é uma série de comparações tacanhas e imediatistas, ladainhas sentimentalistas sobre como seria bom se quiquiqui, revoltas poéticas, melancolias por termos perdido um pedaço de goiabada e um devaneio podre nas paisagens idílicas do passado. O fato de se estar vivo neste momento é um luxo tão extraordinário que não faz sentido pormo-nos em posição relativa a caprichos abstratos, aos pequenos _ e muitas vezes, imaginários _ arbítrios da paisagem humana e material que nos circunda. Praticamente todos os nossos pesares não são feitos de realidade e sim de conversa fiada; moldados dia após dia na argila da babaquice ancestral, da inhaca cotidiana, do precioso mosaico de escrúpulos, apegos, ilusões baratas, vaidades e miçangas mil.

Mesmo que alcançássemos tudo o que achamos que a vida tem de bom pra nos oferecer, ainda assim viveríamos putos pelos motivos mais gratuitos... Vamos imaginar uma cena: são 10 da manhã, o Zé Prequeté tá a passeio no mar do Caribe. O fulustreco, jovem, esbelto e robusto, recém premiado na loteria, vagabundeia em seu iate principesco, abastecido com estupendos vinhos e iguarias (gastronômicas e sexuais), sem o menor compromisso com nada, num mar esplêndido, num dia espetacular... enfim, tudo o que poderíamos caricaturar aqui como exemplo da mais perfeita bem-aventurança! Mas a cena não estará completa se não mencionarmos aí um draminha emocional qualquer... Sim, pois mesmo no paraíso arranjaremos sempre um jeito de arquitetar uma problemática ou sentimento de insuficiência, de sentirmo-nos credores de algum benefício extra (talvez porque a Orquestra Sinfônica do Céu não toque quando estalamos os dedos). Isto é fato; nada pode encher um balão furado! Embora já estejamos, quase todos, embarcados em algo bem mais precioso que um iate _ ou seja, um corpo são _ temos sempre uma moedinha pra contabilizar em prejuízo, o que não seria nada se não ficássemos tão absortos por esta mania a ponto de esquecer o fascinante panorama e de fazer de cada bobagenzinha (uma após outra, infatigavelmente) um bicho-de-sete-cabeças.

O principal formador de nossa espiritualidade é, sem dúvida, a conversa fiada do dia-a-dia, as inócuas carapetas e veleidades despejadas da boca pra fora. São acúmulos de expressões soltas no ar, arremedos, automatismos verbais e morais, tolices sentenciosas. Enfim: o zunzunzum é o pai e a mãe do homem. Às vezes me flagro agastado, puto, por um par de bolachas quebradas, e é então que me repreendo: “Foda-se com suas frescuras pra lá, neném! Pra cima de mim, não! Acha que vou entrar na sua?! Sou muito maior que você, mermão! e a loucura da vida, maior ainda!!” Tento sacudir-me do automatismo fácil, do regulamentar e resignado continuísmo de mim mesmo. E de fato, não se levar à sério é a mais saudável forma de depravação que conheço! Ademais, a auto-credulidade costuma ter muito de credulidade e pouco de ‘auto’ (= de, por, para si mesmo), ou seja, via de regra tem como ponto de partida um tipo de entreguismo mimético: o ‘eu’ julgando sentir e agir por si, mas pouco mais que reproduzindo padrões externos introjetados. Daí, o dócil desvelo para com nosso milenar legado de bocós imitativos e repetitivos. A dócil coerência ao nosso valor de mercado. A dócil cumplicidade ao atual momento histórico. A dócil fidelidade a nossos deveres de cidadãos respeitáveis... Se nosso planeta é um grão de poeira vagando no infinito _ e nós, a poeira da poeira _ só de maneira radical podemos vislumbrar a infinita gama de possibilidades, de relações, de valores que subjaz a tudo e em tudo.

Além desta gosma de auto-credulidade e conversa fiada que acompanha o homem através das eras, um advento moderno surgiu pra nos tornar ainda mais zarolhos e zorongas: o marketing. Este se tornou um fato espiritual e não apenas um papo furado sobre automóveis, detergentes, bancos camaradas etc. Realidade e mídia confundiram-se numa mesma maçaroca indistinta. Num mundo dominado pelo business, pelo assédio intensivo da persuasão, a tendência é que fiquemos mais sujeitados por construções mentais e estéticas pré-fabricadas do que atentos às verdadeiras possibilidades da vida _ toda uma vasta tecnologia de padronização e cretinização pública nos encaminha pra isso.

E a visão viva da vida? Estaremos assim tão embotados pelo burburinho do cotidiano que não nos reste a hipótese de uma visão religiosa da existência? (Só esclarecendo: com esta expressão _ “visão religiosa” _ não quero me referir a nenhuma mística piedosa, mas a uma simples constatação dos sentidos quanto ao escandaloso milagre do AGORA, com toda a sua virgindade inconquistada.)

Enquanto ajeitais os cabelos, milhões de bombas atômicas explodem em cada estrela, a Terra despenca a 130 quilômetros por segundo ao redor do Sol; o Sistema Solar a 1200 km/s em torno do eixo da galáxia; e esta, por sua vez, também em disparada pelo cosmos. Parece incrível, mas até mesmo Dona Maricota, a futriqueira do bairro, singra o espaço numa valsa enlouquecida, juntamente com suas prendas de tricô!

Enquanto a mente se distrai com mil acasos, o corpo (cada célula, cada tecido, cada órgão) permanece fiel à sua prodigiosa lida, executando ininterruptamente bilhões de tarefas tão complicadas, tão delicadas, que se pararmos pra pensar, arriscamo-nos a entrar em pânico ante a impossibilidade de conceber que tal complexidade possa se sustentar coesa por mais dois minutos, sem emperrar.

O absoluto dos berra na cara, na existencialidade de cada coisa, e quanto mais relativizamos nosso ponto de vista tanto mais percebemos o aceno do absoluto. Podemos dizer que um milhão, em espécie, da atual moeda vigente no comércio das almas pode muito bem significar meio centavo, e vice-versa. Exemplo: qualquer cidadão financeiramente humilde de nossos dias pode ser considerado poderoso e abençoado se retroagirmos um pouco no tempo pra observá-lo do ponto de vista de nossos antepassados, com seus precários recursos técnicos e sanitários, instrução pífia, superstições tolas, suas infinitas hipocrisias e proibições, sua moral autoritária, sua jurisprudência brutal... Estes, por mais abastados, mais ilustres ou por mais bons-selvagens que pudessem ser, não podiam entrever outras luzes para além do parco horizonte cultural de suas aldeias (um jornal de domingo de nossos dias contém mais informação do que um aristocrata inglês de 200 anos atrás absorvia durante a vida inteira); nasciam e morriam em meio ao obscurantismo e ao imobilismo; não escovavam os dentes; e tinham uma grande chance estatística de morrer na flor da idade, seja por uma infecção banal, seja pelo capricho de alguma autoridade de baixa patente, ou avitaminose, asfixia social, remorsos infernais, tédio etc. Mas o grande diferencial, o fato extraordinário e deveras auspicioso que mais conta nesta comparação é que “estamos vivos”, se é que você percebe a importância deste detalhe. Bilhões de panacas já vieram à luz, cambalearam pelo palco da mamãe-natureza e viraram esterco. Mas hoje, bem ou mal (foda-se!) é nossa a vez. Esta é a nossa hora!.. nossa raríssima e valiosíssima hora. Portanto somos todos uns tremendos figurões _ mais gloriosos que todas as bonecas depravadas que refulgiram no trono de França. Indo pro futuro, veremos que também levamos grande vantagem em relação aos nossos descendentes mais remotos, que jamais conhecerão o sabor da água in natura, nem o que é um banho de cachoeira, que serão monitorados eletronicamente dia e noite, e que haverão de pagar um imposto escorchante sobre o oxigênio consumido na respiração. Tudo isto equivale a dizer: um centavo pode, muito bem, valer um milhão. De outro lado, imaginemos um ricaço de 80 anos, qualquer um, de qualquer nacionalidade, de qualquer ramo de atividade: com certeza ele trocaria sua fortuna até o último centavo, alegremente, pela ‘desconfortável’ situação de um operário braçal de trinta anos (um Fusca inteiro é melhor que uma Ferrari arruinada). _ Um milhão por um centavo... Em suma, penso que temos o vício de nos relativizar de maneira frouxa, ao passo que, se o fizéssemos de maneira mais ousada, atingiríamos o outro extremo _ um extremo saneador. Nossa dignidade não tem um eixo vertical, mas um horizonte virtual, feito de acúmulos de conversa-fiada. Ou seja: NÃO ACEITAMOS A VIDA QUE NOS FOI DADA. Varamos as décadas, minuto a minuto, emburricados na mania de aferir o incomensurável e o sagrado através de parâmetros irrisórios. Podemos criar super-máquinas, super-softwares, video clips maravilhosos, obras arquitetônicas de tirar o fôlego, mega-projetos de gerenciamento empresarial, encher 500 mil páginas com ajuizamentos acadêmicos sobre a fenomenologia transcendental do abstracionismo astral, descrever matematicamente o comportamento de um pósitron na quinta-dimensão, construir estações orbitais e outros supra-sumos do supra-sumo... mas, espiritualmente, continuamos trotando e ruminando. Podemos construir religiões, teologias, lógicas, dadaísmos, dialéticas, escolásticas, semióticas, heurísticas, metalingüísticas; realizar prodígios de elocubração verbal... mas o fato principal é que, depois de tanta zoeira, tanto ilusionismo e tanto exibicionismo, continuamos os mesmos ingratos.

A simples gratidão à vida talvez seja a única religião possível: saber valorizar com o coração este estado extraordinário; estar ligado, LIGADO na volúpia de existir (pelo menos enquanto gozamos de boa saúde). Rico ou pobre, esbelto ou balofo, sedoso ou encarquilhado, pelancudo, encaveirado, esburacado, deformado, troto, escroto, feio, desengonçado, não importa! _ enquanto estamos andando, comendo, bebendo, rindo e cagando sem problemas, temos a obrigação de estar em êxtase. Se não somos gratos à vida _ não por posição filosófica, mas em sentimento presente _ podemos nos passar por príncipes aos olhos do mundo, mas seremos sempre uns rematados palermas. Posso encher dez piscinas de dinheiro, granjear adulação até ficar a ponto de explodir, mas se não mantenho uma sintonia com este sentido de Dádiva, torno a cair na armadilha, ou seja, no circo das insignificâncias. Permaneço um miserável.

Fomos condicionados, no período da infância, a associar o choro à obtenção de favor, piedade, colinho _ condicionamento que na idade adulta se transforma numa insidiosa e difusa tendência à manha, à lamúria. O simbolismo de benefício representado pelos pais mais adiante na vida se transforma num deísmo mais ou menos religioso, que se manisfesta no insistente cacoete de apelarmos a alguma espécie de poder invisível através de gemidos d’alma, do xingamento ou da morbidez piegas. Mas só através da aceitação e da celebração de tudo o que existe é que nos aproximamos desta grande panacéia que projetamos como um sucedâneo distorcido do “pai”. Como a ingenuidade dispersiva da mente não nos permite esta atitude afirmartiva, permanecemos a maior parte de nossas vidas vegetando num umbral de insuficiências imaginárias (porém, relativamente cômodas) até o momento de sermos sacudidos pela premência de uma insuficiência real. Aí sim, sem escolha, temos que ser positivos _ é nadar ou se afogar! (Pra depois, provavelmente, recaírmos numa dispersão renovada.)

A fuga ao ‘agora’ é um fenômeno crucial. A rebeldia da atenção nos remete sempre a uma atemporalidade amorfa, de modo a nos contentarmos indefinidamente com um sentimento fantasista de adiamento, entretidos com imprecisas perspectivas futuras _ sem nos darmos conta de que o presente sempre estará presente e o futuro sempre estará no futuro (e que tanto o gozo quanto as providências naturais de urgência imediata nos passam despercebidos no meio desse nevoeiro). O prato principal já tá na mesa: se você ficar aí parado com esta cara de bobo, achando que o futuro lhe reserva algo de muito especial, vai acabar comendo mosca. Se você não é agora, provavelmente não será nunca.

É o medo de sermos reais que nos paralisa; então nos distraimos com desafios mais amenos: vamos pelejar com as aparências (este é o nosso grande esporte!), com os índices e cotações na bolsa de valores do vitrinismo psíquico, com as invenções do folclore contemporâneo, com nossos minúsculos porém sempre renovados embirramentos, com o velho-do-saco; em suma, vamos nos ater aos truques de perfumaria, ao ecletismo adaptativo e acochambrado da mente. Tal histeria _ poderoso dínamo do mundo, combustível das epopéias, carnificinas e suicídios _ nos seria poupada se percebêssemos que nossa casa é o universo, e que os alicerces estão no espírito e não nos objetos e circunstâncias.

Aceitar o mundo, não superficialmente, mas de forma ampla e orgânica, sem juízos parciais, é o que diferencia o homem como um ser criador (e transgressor) do homem como fantasma psicossomático _ um pobre-diabo à mercê de enganosas redenções. É saudável, salutar e de bom gosto que saibamos nos dimensionar, que sintamos em profundidade que nossa vida, em essência, não é refém de nenhuma instância exterior. As circunstâncias devem ser encaradas como brinquedos (perigosos às vezes, mas brinquedos), e como tais, desautorizadas a nos reduzir a quaisquer termos de valia e merecimento. Não podemos dizer que nascemos realmente se nossa consciência é controlada, em qualquer grau, por coisas mortas, mesquinhas, distantes do fogo brilhante e afirmativo da espiritualidade genial. O veio da vida não é um fio estreito que só possa ser atingido a custo de muito esforço ou sagacidade. Ele é amplo, infinito, mas encontra-se em outra dimensão que não esta da idolatria e do relativismo débil.

O temor é um sentimento (ou vício) tão esquivo, tão constante e tão democraticamente compartilhado por todos, que simplesmente não o enxergamos como tal _ causando até estranheza que o mencionemos assim, à queima-roupa, desassociado de perigos objetivos como falta de dinheiro, violência urbana ou picada de cobra. Mas, sim, há o medo de encarar o mundo com os próprios olhos e não através de rumores. O medo de não se ter uma fachada bonita o suficiente pra acobertar a pobreza de espírito e a falta de coração, de personalidade. Há o medo de se reconhecer que há um desnível insanável e legítimo entre o que cada um é (ou cismou de ser) e o que os outros acham lícito que ele seja. E daí por diante. É a partir deste pecado original (a negação da liberdade radical do espírito) que advém toda a nossa vulgar epopéia de feiúra cotidiana: a grande árvore macabra onde acalentamos ternamente o medo e a preocupação, com todas as suas intermináveis e requintadas criações...

Quando a casa começa a pegar fogo, não ficamos com medo; simplesmente agimos _ pra combater o fogo ou darmos o fora. Entretanto, em nossa vivência ordinária, onde os perigos são mormente abstratos, o medo se dá as mais diferentes aparências e atitudes, cobre-se de adjetivos másculos, pavoneia-se em virtude, mas, afinal de contas, são meras reações de cagão! (como é feio borrar as calças, cagamos pra dentro os venenos metafísicos inerentes ao nosso erro de sintonia). Seja qual for o enredo, esta é a grande novela pras massas monstrificadas. A dramaticidade das emoções nos prende, mas, capítulo após capítulo, a moral da história é uma só: paralisia, adiamento, vacilo.

Tal estado de não-cumplicidade (tanto à existência como à nossa esplêndida solidão) pode ser apelidado de SÍNDROME DO ZUMBI. Este, por definição, é um ser que não está ligado nem ao céu nem à terra, mas que vagueia ao léu, enfeitiçado. Por ficções e escrúpulos frouxos, neste caso. É uma decorrência natural que algum tipo de fascínio, de encantamento nocivo, se instale infalivelmente onde quer que exista o medo (entendamos sempre este ‘medo’ em amplo sentido, principalmente quando entramos no terreno das sutilezas).

O zumbi, criatura acanhada (nem sempre quanto a comportamento exterior, mas quanto às grandes sacadas da vida), de acordo com a ocasião pode fazer papéis que vão de um extremo a outro no teatro da hierarquia material e espiritual mundana; porém, mesmo que se encontre num trono de ouro, ele nunca estará em sua ‘casa’. Caímos aí então numa segunda síndrome: a SÍNDROME DO EXILADO. Este, por sua própria condição de desterro, torna-se um farejador de trunfos e um perito em dissimulação. Seu ‘eu’ flutua entre dois pólos, de acordo com a quantidade de estímulos que o ambiente lhe ofereça: de um lado ele mira o reino assombrado do vazio e da falta de sentido; de outro, o reino heróico do esforço e da força de vontade (e também da velhacaria), onde se encontra a sua verdadeira vocação espiritual, qual seja: tornar-se parecido com todos e, ao mesmo tempo, mais ‘importante’ que a maioria. Faina ingrata, não?! Mesmo que tenha sucesso em seus empenhos em se tornar um honorável membro de seu habitat social, sua vida continuará sempre dominada e permeada por uma inquietação corrosiva, que é a de poder ou não comprar a boa vontade de seus semelhantes (criaturas perigosamente complexadas, via de regra). Que tenha as chaves da cidade, medalhas e placas condecorativas, a patuléia rastejando a seus pés... isto não muda o essencial: ele continua apartado de sua melhor natureza, que é a liberdade, a singularidade não negociável; continua aferrado àquela máxima medíocre de que “são as aparências que governam o mundo”, enquanto o mais provável é que desgovernem, pois dentro do clube das aparências confundem-se ainda uns tantos milhares de facções, todas fundamentadas em algum tipo de bastardia psíquica, e todas elas dotadas de julgamentos ora altamente crédulos, ora altamente pretensiosos a respeito das demais. Então o Exilado, esta cobaia do engano, que pensava ter controle total até sobre o vento, poderá eventualmente constatar baixas alarmantes em sua cotação no mercado. Precisará, portanto, de novos trunfos e atrativos... E é assim que a banda toca: desafinando! Neste mundo inconciliável, ao invés de brincarmos com as diferenças (sendo cúmplices ou insolentes com elas, mas sempre alegremente), nos afligimos ao ver que as pessoas, as baratas, e até mesmo os objetos inanimados podem não se pautar segundo nossas acrisoladas regras _ e então, se não estamos em posição de destruí-los ou desclassificá-los, buscamos ressentidamente algum pacto possível. Mas a verdade é que somos todos chifrudos, chifrudérrimos! e não há nada de mau nisso. Não estamos aqui pra seguir cartilhas, mas pra folgar, doidejar com com elas; eu sou livre _ e você também o é, até mesmo pra bancar o sonso e querer me adornar com uma coleira. Em geral não atinamos que ser “alguém” (ou seja, abstrair-se da tirania da persona, do “eu” como grife e objeto de consumo; do espírito como item utilitário) é termos poder de carteirada pra irmos, por assim dizer, a qualquer lugar de peito aberto, pois temos aí a dignidade natural da liberdade, a despretensão de quem não tem nada a impor, e a segurança de quem não tem nada a perder ou defender. A liberdade deveria ser o nosso ideal mais fanático, o verdadeiro ouro a ser ambicionado.

As atribulações por que passamos até chegarmos à idade adulta nos servem pra que formemos as noções básicas sobre a natureza e o funcionamento das coisas. É como se atravessássemos um campo de provas _ com provas edificantes e provas obscurantes. Muita coisa foi aprendida e muita coisa nos foi roubada. Em nossa natural boa-fé, tínhamos a impressão de que as regras do jogo, apesar de pouco francas, eram algo de positivo, algo legitimado de antemão; e assim, sem que nos apercebêssemos, as pistas falsas foram se tornando parte natural do caminho _ daí a sutil transição do sonho infantil pra confusão de uma realidade quase senil. Felizmente, um dia começamos a abrir os olhos e a desconfiar de que a alma do jogo está no jogador e não nas regras do jogo. Até então extraíamos todo o nosso senso de valor e dignidade não de uma alta e abalizada fonte de juízo, mas de meras pessoas, ou seja, de um poço cheio de mesquinhez, presunção, covardia e de todo tipo de veneno (obs: se você considera os seres humanos protótipos de anjo, experimente dar muita trela a qualquer mosca-morta...). A partir daí, num ponto ou outro da vida, é preciso dar um “basta”, e parar pra retomarmos a respiração _ nosso próprio ritmo e nosso próprio ar _, senão prosseguiremos sempre como autômatos, ingenuamente, barganhando num formidável supermercado de enganos onde o lucro vem, naturalmente, em moeda podre. As aparências sempre cobram por si um valor extorsivo, e você que entrou no jogo, verá na hora da revenda que foi logrado, e que especulação só funciona no comércio, nas finanças e na putaria. É preciso, o quanto antes, a partir do momento em que recobramos nossa consciência, deixar de lado a misericórdia filial e dar um chute na bunda de toda forma de autoridade, das cativantes prescrições da moral e da cultura: da mística do homem capaz e intrépido, expedito e invencível ou da mulher adorável, guerreira de cama, mesa e banho etc. Com isto quero dizer tornar-se cínico o suficiente pra recomeçar a cada minuto do zero, desembaraçado e incólume, e não meter-se a punk (pois você já tem now how suficiente pra cornear a raça humana inteira mantendo o cerimonial dos bons costumes.)

Qual a sua neura predileta? Tá acabrunhado por ter as pernas tortas? Perturbado porque andam dizendo coisas feias de você? Faz de si uma dimensão amesquinhada porque é pobre? É feio? Tem problemas de Q.I.? É meio lerdo? Não se casou e constituiu família como todos? Não é sexualmente convencional? Tem uma cara estúpida e não pode fazer nada a respeito disso? Não tem uma profissão atraente? Levou chifre da mulher? Não deu o devido valor a sua falecida mãe? Fez alguma besteira da qual se arrepende? Ficou meio lesado desde aquele dia em que pegou o papai pelado em cima da mamãe? Etc, etc, enfim: em que medida a graça e o brilho lhe fugiram por conta de uma sutil rede de preocupações, cismas e complexos? Não importa. Qualquer que seja a nossa posição, desvantajosa ou não, em relação aos modelos entronizados pela sociedade, isto deveria afetar apenas alguns protocolos exteriores do nosso modo de agir, mas não a vitalidade do modo como nos postamos perante a existência, nem a absoluta generosidade da sentença espiritual que devemos nos ditar. Dizem os zen-budistas: “A ação pura, livre de confusão, só pode advir quando estamos cagando e andando pra tudo.” De fato, a obstinação do ego é uma espécie de delírio patológico institucionalizado. À medida em que você se ocupa devotadamente com as suas insuficiências e problemáticas, tanto mais se embaraça na teia, hipnotizado pelo bulício das elocubrações (ou alucinações) apáticas: torna-se uma noivinha de vampiros. Mas quando dá um peido pra tudo, você quebra o encanto e permite que seu espírito retorne a si. Os cães param de latir e os urubus se dispersam, magicamente. Mais tarde, ao dobrar uma esquina, você perceberá que aquele infernizante probleminha já não existe mais _ na realidade ele nunca existiu; o que existia era falta de espírito (pretensão, auto-piedade sem auto-estima, submissão excessiva às aparências). A ordem natural do espírito não advém de luta, determinação, tenacidade: ela sobrevém com a auto-absolvição incondicional. (Um tipo diferente e desejável de obstinação é a da “atenção sobre a atenção”: demovê-la de sua inércia costumeira e fazê-la se concentrar, o mais assiduamente possível, naqueles escaninhos da mente onde se encontram nossas verdades libertadoras. Por serem, em geral, conquistas mais tardias em nossa história pessoal, tais verdades se encontram menos entranhadas na fisiologia do cérebro _ no emaranhado dos neurônios _ do que o antigo acervo de impropriedades em nós sedimentado durante a mocidade. É chato admitir, mas esses conteúdos superiores, por mais luminosos que possam ser, só se tornarão efetivos, ou seja, autônomos, espontâneos, através da repetição: sendo constantemente solicitados pela consciência. Ou, quem sabe, através duma iluminação súbita que supere o gradualismo ‘careta’ dos processos neurológicos.)

O fato de sobrevivermos não significa que sejamos reais. É fundamental e improrrogável que admitamos francamente: estamos sozinhos. Ninguém poderá nos tirar do buraco na hora H. Ninguém nos redimirá da ‘infâmia’ de termos feito da vida uma coisa relativa, cotada quase sempre em termos de radiantes balelas. Apesar de nossos belos olhos, apesar de nosso muito especial jeitinho de sorrir e falar, ninguém nos carregará no colo até a outra margem do rio. Nem carece.

Não é grande coisa andar ereto em duas patas se, espiritualmente, anda-se de quatro. Não basta sobrepujar a sagacidade do papagaio, a destreza do macaco, a ternura do cachorro. Pra ser gente tem que ter sacanagem, tem de haver transgressão, tesão espiritual. O bom-humor e a vivacidade que herdamos do macaco são atavismos muito bem vindos, porém à esta dádiva simplesmente biológica, maquinal, eu gostaria de apor uma outra a ser conquistada com nosso próprio fogo: a irreverência. Esta, sim, se pode qualificar como um salto do espírito: a divina volúpia de sentir a vida, de gozar como um pervertido com a simples visão das cores, formas, sons, movimentos; a capacidade de ver as coisas de forma nua, sempre renovada (e não o significado ritual que a elas se aderiu); a capacidade de se lixar, não só pros lacaios da morte como pra si mesmo; de ter o “desacato” de exultar não só com a beleza e a harmonia, mas também no meio da confusão, do absurdo, da relatividade enlouquecedora e da banalidade desesperante; de se cagar pra dramaturgia desta vida; de ter a fé de não precisar ter fé, certeza de merda nenhuma.

Não existe nada na vida que possa por tudo a perder. Mas mesmo que não nos reste realmente nada, ainda assim podemos sair vitoriosos, estourando os miolos ou pulando de cima do viaduto. Ter tudo a seu favor é estar condenado a ser um macaco num paraíso de macaco. Tudo o que existe tem a ver com o Bem, ou seja: o que é, é; foda-se o que não existe, foda-se o que deveria ser. Revolta e mau-humor só é bonito em adolescente; em marmanjo não passa de maluquice. É preciso que saibamos nos olhar bem lá do alto, pelos olhos de um passarinho (um satélite também serve). Todas as pujantes cenas de nossa dramaturgia pessoal não passam de um causo pitoresco contado por um velho galhofeiro, em alguma taberna da eternidade.

Nossos problemas não são causados por gnomos; por isso, a cada vez que nos deparamos com eles (com problemas), devemos encará-los sem lamúria, mas sacanamente, como um desafio, um jogo de aprendizado (ou de superação, caso a estrepada seja inevitável). E _ só relembrando _ com a maior insolência possível!.. Se o que você mais quer é o conforto conformista, conforme-se: procure se lembrar de vez em quando que você tem pela frente uma eternidade inteira pra descansar na santa paz. Qualquer carcaça de boi pendurada no açougue goza de sossego e boa consciência. O ideal _ heróico, talvez _ é não sermos reverentes nem mesmo pra com nossa própria ruína. Mas se você está vivo e com boa saúde, atreva-se a romper a desfalecida sisudez do marasmo: esbofeteie-se, dando gargalhadas na frente do espelho; esbraveje com a primeira pessoa com quem cruzar hoje na rua: “Eu sou um imbecil, sim, e daí?!!” Depois, segure-a pelo colarinho, mire-a nos olhos com uma expressão de completo deslumbramento, e urine nas calças...

Ser livre é saber mandar tudo às favas, tranqüilamente _ o que não tem a ver, necessariamente, com desregramento ou porra-louquice, mas com não levar à sério as consagradas fantasmagorias, de qualquer espécie, que tentam nos afixar um preço e estipular nosso valor de mercado. É prescindir, olimpicamente, das razões e alegações convencionais com que as pessoas tentam se justificar. É rir de si mesmo, do próprio enfado, dos próprios fricotes. É não estar preocupado com merda nenhuma. É ser patife, desavergonhado e filho-da-puta.

Não viemos a este mundo pra provar nada. E isto é tudo! Não cabe aí nenhum ‘porém’, nenhuma ressalva, nenhum reparo sutil. Não devemos nem a nós mesmos qualquer comprovação de aptidão adaptativa. Nada, nada! E embora isto soe niilista, o que decorre daí é exatamente o contrário!

O verdadeiro gênio da vida está na simplicidade; acontece que sempre invertemos as bolas. Confundimos auto-repetição com sentimento, imitação com argúcia, ajustamento exterior com convicção íntima, convicção íntima com realidade objetiva, realidade objetiva com um samba de uma nota só. De certa maneira, qualquer um de nós pode ser comparado àquela figura do jeca arredio, sempre sobressaltado ante o novo (e o mundo inteiro torna-se novo e virgem a cada segundo, não há como negar). Daí termos lá nossas razões em sermos tão escabriados: a liberação é algo insólito demais, de tão simples _ e taí a casca da banana: no momento em que queremos aprisionar, instrumentalizar o simples, ele já fugiu de nós, já venceu a validade.

Se despojássemos dos milhares de livros que versam sobre filosofia existencial, todas as idéias que se agitam no domínio das meras conseqüências e reações, talvez não conseguíssemos encher uma só página. Restaria algo mais ou menos parecido com estes 3 enunciados:

1- Estou onde meu corpo está.
2- Aonde for, eu estarei comigo.
3- Do chão eu não passo .
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