Caro amigo Arrais,
Há muito tempo que eu ensaiava escrever esta missiva, mas o "timing" da existência frenética dos nossos dias estava sempre em descompasso com a minha vontade e, fatalmente, eu ia adiando, adiando, sem cuidar que os anos passaram num tropel avassalador, viramos a página do século e do milênio e, agora, senhores circunspectos, perdemos aquele elã característico da juventude e a carta, talvez, reflita um "mood" diverso daquele que eu pretendia.
Na realidade, caro amigo, sinto saudades daquele tempo da velha repartição, tão simples, tão família, tão aconchegante na qual, embora assoberbados de tarefas multifárias, tínhamos tempo para trocar idéias, para permutar experiências e informações advindas da leitura de tantos livros interessantes dos quais, seguidas vezes, relembro "O Mestre e a Margarida", que você me emprestou e que lí com tanta avidez e prazer intelectual.
Olho ao redor de mim, já não posso ver o Orlando com aquele entusiasmo característico do bom sangue italiano; já se foi, também, a Dilma, que era filha do meu saudoso mestre de português, Otávio Farias...Mas, chega de fazer necrologio, tal não é a finalidade da carta. Pensemos um pouco nos que ainda estão conosco: O Adonardo, o João Luciano Matos, a Olga, enfim, um punhado de pessoas que, embora gozando de jubilações, como você, procuram participar de outros eventos porque o burocrata não se enterra no dia em que encerra as suas atividades de funcionário.
Conversando com você, quantas vezes, colhi ensinamentos que até hoje conservo na memória e utilizo na minha vida.
Mas, o que mais me chamou a atenção, foi quando você, muito sério, comentou comigo que não sabia o que ensinar a seus filhos: honestidade, esta está em desuso e as pessoas que a põem em prática, muitas vezes, são repelidas como estorvo; desonestidade, esta eu não sei ensinar, porque meu pai não me passou tal tipo de conhecimento. Naquele dia, meu filho mais velho tinha apenas dois anos, os seus, prezado amigo, estavam se aproximando da adolescência e, como estava longe para mim o dia em que teria de enfrentar o tormentoso problema, fiquei apenas imaginando como você se safara, com certeza, porque conheço bem seu talhe, apontando o caminho da retidão moral e do bem.
Pois bem, meus filhos cresceram bem mais rápido do que eu poderia supor e, bem mais cedo do que eu pensara, atingi aquela encruzilhada, lembrando-me das palavras de Rui Barbosa: de tanto ver triunfar as nulidades o homem vai ter vergonha de ser honesto.
Pode ser, pode ser, caro Arrais, mas poder enfiar a cabeça no travesseiro todas as noites e cerrar os olhos para só abrí-los no alvorecer é uma bênção que nós recebemos do Criador e, cá para nós, falta-nos o "jeito" para ensinar o contrário do que somos.
Um dia desses, pode ter certeza, gostaria de revisitar sua biblioteca, conversar "miolo de pote", abraçar o amigo tão presente no meu pensamento muito embora a gente pouco tenha oportunidade de se encontrar.
Desejo a você e aos seus, para arrematar, a Paz e a Serenidade que você inspira na sua tranquila maneira de ser, meu bom amigo Arrais. Que Deus esteja com você!
Um abraço fraterno do
Ronald
PS Que saudades dos velhos tempos! É um clichê, eu sei, mas é verdade.