Ana Maria desperta. Entre as dobras dos lençóis, pedaços de um bilhete mal escrito. Em todo ambiente, as horas vazias. Ditando a tragicidade do medo. Das feridas mal cicatrizadas.
-Alguém a quem telefonar ?-Faz que não com a cabeça. Seus olhos provam a dimensão exata das suas carências. Mesmo quando sorrindo me diz adorar o boteco do André e as figuras exóticas que povoam suas noites de delírio.
Pergunto ao Grupo de quem é a culpa. Não é um caso isolado. Milhares de outros estão sozinhos.
No corredor, encontro o médico. Esses jovens de hoje...
-Quer voltar para casa ?-pergunto
-Não sei. Precisa ler o que... Ai, dói o meu lado esquerdo...
Tenho urgência. As linhas trêmulas...
Porque as coisas sempre terminam assim ? Pôxa ! Você entende ?
Batem à porta. “Não deve ter alta antes das dez”. A enfermeira deixa cair o aparelho e resmunga:
-Aos diabos os quem vivem se drogando !
Ana me olha com olhar estranho. Imagino vê-la pela primeira vez. Logo, porém, dá volta por detrás da cama desfeita e eu sinto a sua dor. O seu grito seco. De defesa diante do perigo. Da ameaça que vem de fora.
-Pombas ! Eles também se drogam. Se dopam todos os dias de ambição e poder.
E empurrando com a língua a espuma histérica da revolta:
-Eles mijam no nossos sonhos !
Seus desabafos (truncados ali amargamente) vão compondo uma peça triste, na complexidade dos problemas jamais questionados.
Se me enterram viva
todos os dias, cedo e à tarde
à noite, odeio a farsa que zomba dos desejos
do meu tempo
Ana tentara algumas vezes andar com os próprios pés. Não fora ela quem se aventurara ir para a capital, conseguir um diploma superior ?
Agora, quando pensa rever a cidade de suas origens, sente o chão ruir as seus pés. “Não sei se abrirão as portas”...
Antes, costumava brincar de felicidade nos campos e rios que circundavam a Chácara do Sol. Fazia até sonetos usando como tema o “orgasmo das flores”. Só mais tarde acordou. Haviam lhe roubado as inocências...
-Olhe ! Veja ali o Quinzinho. –E batendo a mão para o amigo:
-Tô aqui bicho !
-É seu colega de classe ? -Pergunto-lhe enquanto entramos no carro.
-Foi. Era da turma do 3oano. Naquele tempo a “erva”corria solta. Também o professor Nonato vivia amarrado nas pernas da Sissa ...
-Esse ensino é uma m...!
A insatisfação era visível e irônica. Dissera mil vezes para si mesma que tudo aquilo era sombrio. O que queria mesmo era que lhe levassem um botão de Bem-me-quer nas aulas de História Pátria.
-O que se faz dos entulhos sociais ?
Voltou a ter medo. Mas era um medo diferente daquele de sua mãe, funcionária pública há mais de vinte anos, que se alimentava de perdas e recuos. Apesar de ter reservado em seu coração de filha um destaque especial, nunca perdoara o fato de sua mudez, quando ferida na alma e no salário.
-Gostaria de ver toda essa gente de cabeça feita...
-O que ?- surpresa, percebo que absorvi o tempo em triste reflexões.
Estamos chegando em Guimarães. Na rua Gonçalves Dias, faixas e cartazes indicam as próximas eleições municipais. Tudo fica claro. Até o receio de que Ana volte a sangrar mais uma de suas veias.
-Essa cidade é de fazer pirar qualquer pessoa que queira mudar a consciência do povo. Imagine você que cansei de assistir ao tio Inácio negociando o voto dos eleitores.
-Mas as coisas estão mudando...-digo, tentando dissuadí-la da descrença e do pessimismo daquele momento. Havia entendimento para tanta complexidade ?
Lembrei de certo aluno de Filosofia :
“Da sombra turva desvio pálido
sobre as dores na rua
vacilam minhas pernas, meu pensamento
A cada passo, a cada tosse,
mais me desfaço”
Para Ana, a vida lá fora continua a mesma:Uma barganha de interesses
A única arma que a sustenta é a vontade.
Uma vontade capaz de superar a sua grande fragilidade imposta pelos desafios da discriminação social e familiar.
Senhora de suas vontades, voltaria a procurar o aconchego materno. O que importa agora é a sensação de um sentimento maior. Maior que qualquer repulsa ou contestação.
Resoluta, caminha em direção da verdadeira realidade.
Toca a campainha. Chegou a hora, diz corajosa. Acompanho-a de longe e ouço a sua voz:
-Oi, pai!
-Oi, mãe!