Na volta a Porto Alegre, as lembranças e culpas que porventura existissem foram sendo maquiadas pelo sorriso farto. Assim, consegui me misturar às multidões, sumir no vazio do dia e fazer da Lua minha companheira, amiga e confidente. De barba feita, cabelo aparado e roupas simples, demorou para meus ex-colegas de sindicato e zeladoria me reconhecerem. Após alguns dias de visitas constantes ao sindicato, consegui uma vaga de segurança do prédio, que me faz parecer mais uma babá que um porteiro. Passo o dia ajudando a carregar malas e pacotes, sou prestativo com todos. Até porquê, as grades entre a portaria e a rua evidenciam os riscos que assumem essas pessoas que colocam suas faces como fachada dos prédios comerciais do centro. A atenção e o conhecimento prévio de todos que circulam pelo prédio me dão uma boa vantagem em qualquer abordagem suspeita que venha a sofrer. Como meu emprego é informal, não tenho que cumprir horários muito rígidos, mas estou sempre disposto a ajudar em todos os serviços que aconteçam após o horário do meu expediente. Com a confiança de todos renovada, consegui as informações que precisava e que me conduziriam aos dias de hoje sem maiores problemas ou percalços.
Existem inúmeros prédios sem zelador atualmente. Isso parece um círculo vicioso. O desemprego aumenta, o poder aquisitivo das pessoas diminui e quem pode fazer algo a respeito corta custos com mais demissões e extinções de cargos. As cópias das chaves desses prédios são feitas por mim mesmo. Adquiri habilidades que outrora desconhecia. O crachá do sindicato dos zeladores, devidamente falsificado até na identidade, e a Lei Municipal que ordena a todos os prédios sem zelador manter uma cópia das chaves principais no sindicato destes tornaram-se meus principais parceiros. Após visitar alguns prédios que descumpriam a lei, denunciei-os e aguardei até que se adequassem a mesma. Com isso, obtive um rol de oportunidades finito mas devidamente grande a ponto de encobrir meu rastro. Iniciei pelos pontos de maior movimento à noite – a rota de bares e prostituição.
Detalhes me escapam com a rotina, mas ainda vislumbro o primeiro dia, o primeiro alvo e a primeira manchete.
Escolhi o inverno para iniciar as atividades. Passeei pelas ruas durante uma semana até encontrar um ponto médio que me trouxesse a visão de várias quadras e um alcance satisfatório para o meu equipamento, que àquela época ainda não era tão eficaz quanto é hoje. Entrei no prédio Dom João VI por volta da 1 da manhã. Prédio comercial, vazio praticamente, exceção feita às prostitutas que freqüentavam os dois primeiros andares ambientados por uma casa de strip-tease. Subi pelas escadas secundárias até o sétimo andar, o penúltimo. Sentei no corredor, próximo a uma vidraça que me mostrava a rua em frente. Aguardei em silêncio e no escuro uma hora ao menos, verificando a possibilidade de alguém subir ou passar por ali àquela hora. Nesse entremeio pude observar o movimento da rua. Com o frio castigando seus corpos, o movimento frenético das prostitutas mistura-se ao sibilar nervoso do vento que castiga seus corpos. Os acertos são feitos rapidamente e os fregueses não se detém muito tempo sequer para avaliar a mercadoria. Estas embarcam nos carros sem nem saber quem ou quantos estão lá dentro. Algumas descem logo em seguida, não acertando o preço, creio eu. Outros fregueses preferem os bares, como o que existe nesse prédio, no térreo. Dividem-se em dois grupos distintos. Os primeiros descem do carro, caminham de cabeça erguida, jogam a chave para o manobrista, olham em volta procurando demarcar o local e até chamam alguma prostituta da rua para conversar reservadamente antes de entrar. Os demais ao pararem o carro, saltam e, sempre olhando para o chão, entregam a chave ao manobrista, adentrando a porta logo em seguida. Isso tudo em questão de segundos. Ao ver essas cenas penso ter escolhido o lugar errado, mas persisto. Subo o andar que me separa do terraço do prédio sem pressa. Olho no relógio: marca 2h5min.
O vento castiga minha face. A melhor posição que encontro é encostado numa chaminé, atrás do prédio. Escondido do vento e com o visual da rua de trás do prédio, passo a observar o setor secundário que circunda a prostituição. Alguns fregueses deixam seus carros nas ruas secundárias, economizando míseros trocados que pagariam aos manobristas e flanelinhas na rua principal. Só por este fato, fico perseguindo com a luneta um cara que chega de BMW. Ele pára ao lado da esquina. Deve estar se escondendo do frio, penso eu. Ledo engano. Está aguardando informações. Não defino se é cafetão ou coisa pior, mas fico espreitando. Em cerca de meia hora ele recebe todo o tipo de visita, desde prostitutas velhas e gordas até guris de 12 ou 13 anos que trazem parte do que arrecadaram batendo carteiras. Percebo claramente, quando ele retira os documentos e parte do dinheiro das carteiras e as devolve aos pivetes. O movimento vai raleando e verifico que já passam das 3 da madrugada. Meu objeto de estudos volta para a BMW, arranca vagarosamente e pára em frente a um hotel que as prostitutas da rua utilizam para programa, meia quadra adiante. De dentro do hotel sai um homem, arrastando uma mulher jovem que aparenta cerca de 20 anos, se os tiver. Joga-a dentro da BMW e fica parado do lado de fora. Os vidros escurecidos do carro me impedem de ver o que acontece lá dentro. Abro o foco para verificar a cena na totalidade. O vigilante externo impede algumas mulheres e seus fregueses de entrar no hotelzinho, circula ao redor do carro, acende um cigarro dá duas ou três tragadas e o joga fora. Escora-se à parede e fica a olhar para o carro até que aporta se abre bruscamente e a garota sai em disparada. Vacilante e trôpega é facilmente apanhada pelo capanga que aguarda seu superior sair. Ele emerge, lentamente, recompõe a camisa, fecha sua porta com maciez, faz um gesto para o capanga que termina de rasgar a roupa da infeliz, tira-lhe a calça justa que ainda mantinha seu corpo aquecido e a carne branca se contorce com calafrios, não sabendo se de frio ou pavor. Nesse ínterim já sei o que irá acontecer. Com a garota jogada sobre o capô traseiro da BMW nosso lorde inglês prepara-se para penetrá-la por trás.
Calculo a distância, deve ser uns 200 metros até o alvo. É muito, para meu equipamento e a precisão que almejo. Corro para a escada de incêndio ao lado do prédio que o liga com um prédio de 3 andares que tem frente para o lado de trás da rua. Perco uns 10 minutos até estar em posição novamente. Para minha felicidade, meu amigo resolveu dar mais umas pancadas na moça, até ver-lhe o sangue brotar por entre os lábios. Quando o tenho na mira está terminando o que começara a 10 minutos atrás. De 120 a 150 metros calculo – já serve. Respiro fundo e os miolos do sujeito espalham-se por sobre o carro. Poderia ter ficado mais tempo curtindo a cena, mas a rota de fuga, traçada dias antes não pára de passar diante dos meus olhos. Melhor segui-la.
No outro dia procurei nos jornais e nada, mas no dia posterior ganhei uma nota de capa em um dos principais jornais da cidade.
“Assassinato no beco da prostituição deixa família sem pai e rede de prostituição sem rumo.”
A matéria, bem como a manchete, era sensacionalista, no entanto emitia bem a realidade. O cidadão que havia aniquilado, um dia atrás, era pai de família, além de maior traficante de drogas da cidade. Controlando as operações de tráfico e prostituição com destreza há vários anos, mantinha a maior parte do submundo da cidade sob seus tentáculos. Não à toa, era conhecido como O Polvo. Procurei maiores detalhes mas não haviam. Ao investigar em veículos de comunicação com informações mais sérias e responsáveis, pude apurar que a polícia trabalhava com duas linhas de raciocínio: vingança ou inveja - um novo líder abria caminho para assumir o controle das operações.
Na época, refleti muito sobre os fatos e mais uma vez sorri para o novo rumo que minha vida tomava.