Do alto de uma colina podia-se avistar uma casa simples mas bem cuidada, com uma varanda e um jardim para quem passasse em frente pudesse parar e ficar admirando. Nos fundos, o que a dona da casa mais adorava – as colunas lembrando a Grécia antiga, em tamanho menor para que sustentassem as alamandas e primaveras que subiam ao longo dessa beleza formando um quadro lindo. Em volta pequenas flores de várias cores terminando a composição. Podia-se imaginar que foi um cenário de um grande amor.
Nesta manhã estava ventando e Janete acordou assustada com o barulho forte anunciando uma nova tempestade, em seguida o telefone tocando. Régis ligando novamente para saber se sua mãe estava bem.
“Mãe, está tudo bem? Escutei o temporal e fiquei a pensar se não estaria assustada aí sozinha em casa...”
“ Filho, que bom que ligou ! Está tudo bem, já estou acostumada com essas coisas. Você não se lembra quando ficava assustado com os trovões e eu e seu pai começávamos a inventar estórias para que pudesse dormir? Ah... Ia te perguntar se não quer passar aqui no final do dia para tomarmos um lanche juntos. Estou com vontade de preparar aquele bolo que você adora. Que tal?”
“ Nada mal, almocei uma coisa esquisita e salgada demais hoje. Eu adoro esse bolo, nem precisa me dizer como vai ser. Não precisa nem de cobertura, tá bom?”
A conversa terminou com brincadeiras em trocadilhos, e Janete ficou sorrindo por um bom tempo. Uma pena que não pôde dar um irmão ou irmã a Régis. Mas a vida foi generosa, pois ele se deu muito bem com os coleguinhas de escola e mais tarde amigos de infância, adolescência, com os quais começou a viajar e aprender mais sobre a vida. Voltava com milhões de coisas para contar, todo alegre, sempre perguntando se tinha algo para comer. Estava sempre com apetite. Logo mais inventava alguma coisa para fazer junto com o pai. Sempre havia algum passatempo, o piano para preencher a casa com melodias de partituras infantis que ainda se lembrava, o baralho sempre esperando na mesa com a toalha bordada, o xadrez que deixavam para o dia seguinte, pois Régis era meio impaciente ao contrário do pai que dizia que este jogo era um bom ensinamento. Os amigos que estavam sempre em casa depois dos treinos de futebol. E mais apetite. Tantas coisas...
Não ia se aventurar com o jardim pela manhã, pois acabara de sair de uma gripe forte e o vento ainda continuava forte, mas as nuvens estavam indo embora. Quando saiu na varanda, avistou Irene sua vizinha e amiga. Ainda bem que estava de óculos, pois viu que ela estava lhe acenando. Caminhou até a figura mignon já de cabelos grisalhos que não queria pintar como suas companheiras. Os olhos de Janete sorriram de novo:
“ Ah, Irene, não vá me dizer agora que não veio ontem porque estava triste de novo com as hortelãs que não pegaram...”
“ Como adivinhou?” – começou a rir. “Ah, Janete. Não tenho mãos como as suas para plantas. Ontem recebi uma visita inesperada de uma sobrinha que fazia tempos não via. Não sabe como ficamos contentes. Jairo ficou animado e saiu correndo para a vendinha que ainda estava aberta e comprou algumas coisas para tomarmos um café juntos. Passei aqui para te pedir desculpas por não avisar. E também para saber se não precisa de algo porque Flora está indo para o centro e sei que adora aquele queijo que vendem no mercado...”
“ Oh, Irene, não sabe como devo agradecer por ter tantas pessoas se preocupando comigo. Eu nunca tenho tempo de me sentir só desde que Demetrius se foi. Régis tem sido um filho exemplar. Até os amigos dele me ligam dizendo que querem vir aqui para jogar xadrez ou me ajudar em algo.”
“ Janete, eu sou alguém que gosto muito de você, porque sei do quanto fez por mim e por Flora. Nunca vou me esquecer do acidente, você e Demetrius nos ajudando, arranjando tempo para ficar com nossa filha enquanto eu tinha que ficar naquela angústia do pós operatório. Puxa, ainda bem que passou rápido !”
“ Nossa, mas que falta de educação, você não vai entrar para me alegrar? Régis falou que está vindo depois do trabalho e vou preparar um bolo depois do almoço...”
“ Não, amiga, agora não posso, tenho que terminar as coisas lá em casa e mais tarde nos falamos, está bem? Depois me conte se Régis tem boas novas...”
“ Está bem, depois nos falamos então.”
O dia passou rápido. Não choveu para sua alegria, mas o vento continuava, só que mais suave agora. Estava em cadência com o relógio da tarde. Janete estava pensando em voltar a estudar, queria fazer algo em que pudesse trabalhar mais seu pensamento. Tinha muita criatividade. Vivia inventando coisas, mudava os móveis de lugar, mas detestava e tinha horror à mania de limpeza que observava em certas donas de casa. Algumas vezes brincava com Irene e Flora quando discutiam sobre a limpeza da cozinha. Para sua felicidade, sua amiga era o oposto de uma senhora do lar convencional. Devia ser por isso que estavam sempre a trocar idéias sobre livros, passeios, novidades, receitas e outras coisas mais.
No espelho da sala avistou sua própria figura de sessenta e tantos anos. Os cabelos lisinhos e finos, alguns fios brancos que a faziam pensar se pintava ou não. Demetrius costumava dizer que adorava seus olhos, pois estavam sempre sorrindo ou brincando com alguma coisa e que os céus haviam lhe dado mais alegria em ver que o filho havia herdado isso da mãe. Janete era um pouco mais alta que suas amigas de colégio, e procurava se cuidar, sempre arranjando algo para fazer em que pudesse sentir que estava em movimento. Sentia-se melhor assim. Os afazeres da casa lhe davam vigor. Talvez por causa disso a pele estava sempre corada, e não se incomodava com os pés de galinha que insistiam em aumentar. Sua sorte era que não precisava de regimes, comia de tudo e tinha mais apetite quando seu filho estava junto para beliscarem bobeiras.
Régis chegou com pães e leite como sempre. Estava lindo de terno mas já havia tirado a gravata. Sua mãe sempre pedia que andasse com uma cópia da chave da casa. Não se sentia bem em ver a campainha tocar, pois era seu filho, queria sentir que ainda morava lá, que aquela casa sempre seria sua. Tomava sempre cuidado com os porta retratos, apesar de ficar saudosa algumas vezes e não estranho, estava com lágrimas caindo dos olhos.
“ Mãe, estou muito feliz ! Vou viajar no mês que vem para um curso na Itália. A empresa quer que visite a matriz com um grupo novo, não é maravilhoso?”
“ Filho, estou muito orgulhosa de você, mas veja se aproveite para namorar um pouco. Desculpe dizer isso agora, mas desde que Clara se foi, não te vejo pensando ou falando sério sobre alguma namorada. Queria tanto que se casasse de novo. Você ainda pode ter filhos, me dar a alegria de ter netos vindo aqui me visitar...”
“ Mãe, faz apenas dois anos que Clara partiu. Eu sofri muito com toda aquela coisa de hospital, a quimioterapia, a depressão que começou a tomar conta dela, não consigo ainda esquecê-la. Todas as noites fico lembrando do jeito dela, do perfume que a casa tinha quando ela estava lá, dos planos que fazíamos juntos. Sabe, acho que me casei com ela, porque ela era de alguma forma, muito parecida com você. Não sei explicar como, pois você tem um rosto bem diferente, mas talvez a independência, mesmo com papai por perto. E me ensinaram isso. Está difícil, mãe. Não sei se porquê, se eu criei uma imagem de uma mulher, ou porque tenho muito trabalho ou escolhi trabalhar demais depois disso, ou então tudo tenha sua hora certa para acontecer. Não quero me preocupar com isso agora e nem desejar que fique a pensar sobre isso por mim, está bem?”
“ Está bem, mas é que não sou tão jovem e quero partir um dia sabendo que estará bem, com uma pessoa que te faça feliz...”
“Ah, Sra. sabe-tudo, eu queria saber se pensou na minha proposta de vir morar comigo, já que tocou no assunto. Sabe muito bem que podemos fazer outro jardim como você quer, agora estou em condições de aumentar a casa, você podia me dar mais idéias sobre tantas coisas... Você não vai mudar de idéia mesmo?”
“ Você um dia vai se casar de novo, eu tenho certeza. Eu ainda tenho muita saúde, e o melhor de tudo, lucidez para discernir o que é melhor para ambos...”
“ Eu amo tanto seu jeito de ser, sinto falta de você lá em casa. E acho que aqui te lembra muito papai. Não sei até que ponto isso é bom para você.”
“ Não é bom, é maravilhoso. Seu pai, você e eu fizemos muita coisa aqui que não quero me esquecer. Temos uma história aqui que por enquanto me faz bem saber que posso estar aqui vivendo tudo isso. Mas não tornei seu pai um mito na minha memória.Ele me pediu isso e o estou seguindo à risca , por mim e por quem me quer bem. Tenho que viver. E também porque você está aqui sempre, tenho minhas amigas, meu jardim que levei anos para deixar como está. Imagine a alegria de acordar de manhã, tomar meu café, bater a toalha e ver as migalhas de pão indo de encontro aos passarinhos, saber que minhas flores estão bordando o espaço cada vez mais, as borboletas, parece música, sabia?”
“Mãe, você não existe, sabia?”
“Régis, meu filho, por favor, eu queria te pedir para ouvir sua mãe mais de vez em quando, como quando você ainda fazia faculdade e ficava encucado com algumas coisas. Sei que é duro dizer isso, porque eu mesma vou sentir isso, mas estou pensando em você. Prometa para mim que vai ter mais tempo para você e menos para sua mãe, prometa que vai procurar viajar mais como antes , não a trabalho, mas com seus amigos para que eu saiba que você está rindo mais e quem sabe venha a conhecer alguém. Por favor,...”
“ Mas, mãe, você já não é mais uma criança, eu sou teu filho, alguém tem que se preocupar com você !”
“Eu sei disso, mas a gente aprende depois de muitos anos, o que é melhor para os nossos filhos. Não pense que estou falando isso da boca para fora. Irene e nossas amigas vivemos falando sobre isso. Seria muito egoísmo de nossa parte como mãe, querer tanto de nossos filhos quando pudemos viver tanto. Estamos de algum modo satisfeitas com nossas vidas, apesar de termos cada uma, um mundo diferente. É isso que queria que entendesse...”
“Certo, prometo que vou pensar em tudo isso que conversamos hoje. Mas não pense que vai me convencer tão fácil como conseguia com papai” – risos.
Régis se despediu com um abraço forte. Janete brincou dizendo que se fosse mais jovem se candidataria a um novo posto ainda mais que a primavera estava por chegar.
Durante a noite, enquanto assistia televisão e continuava seu crochê, Janete começou a prestar atenção ao barulho da chuva que parecia teimosa, já que não parava nunca. Resolveu dormir para não lembrar coisas que podiam deixa-la saudosa.
Acordou cedo pela manhã e se lembrou que sonhara com crianças correndo pela casa e muita gente feliz. Foi lindo...
DEZ ANOS DEPOIS...
“Papai, queria ver Tia Irene. Ela sabe fazer aquela torta de banana do jeito que vovó fazia para nós, e ainda conta um monte de coisas legais, sabe... Será que nesse final de semana a gente pode ir lá?”
“ Ah, boa idéia. Só preciso confirmar com sua mãe se ela não marcou nada com as amigas, sabe como é, né, filho... Sua mãe sempre acha que eu marco as coisas antes dela.”
No trajeto para a casa de Irene, Régis ficou pensando nas coisas que separou para cuidar do jardim que sua mãe deixara. Poder passar um tempo lá era muito bom. Refletiu sobre as conversas que tinham trocado naquele tempo. Viu como ela estava certa. Parecia que sabia o que estava falando e com uma precisão assustadora.
Conheceu sua esposa numa outra viagem com amigos. E que sorte... ela trabalhava na mesma empresa, numa outra divisão. O tempo passou tão depressa, e quando viu já estava se casando novamente. Depois veio seu filho como sua mãe tanto desejava, as risadas ecoando pelos corredores da casa, cheiro de mais torta, mais bolo, mais doce de leite. Flora trazendo ingredientes para novas receitas. Irene que não parava de falar como dosar tudo, e Janete trazendo flores que colhera do jardim.
De uma anemia boba, descobriram que Janete estava com leucemia. Mas como ela havia pedido, queria partir dormindo, e foi o que aconteceu. Dissera na noite anterior que era muito feliz por ver que tudo havia acontecido como pediu aos céus. Queria agradecer suas amigas e seu filho por isso. Régis chorou quando escutou isso.
Mas havia aprendido que devia continuar sorrindo com tudo que vivera junto com seus pais.
Eles sempre pediam que procurasse se lembrar dos fatos bons e que passasse a mensagem para frente. Era por isso que viviam. Porque sempre sonharam com a felicidade de seus semelhantes. Ainda bem que Irene e Flora ainda estavam lá. Sabia que não ia dar conta de responder à todas as perguntas de seu filho. Um brilho acendeu no seu rosto e um sorriso aberto iluminou seu semblante. Sentiu que sua mãe estava mais perto do que imaginava...
FIM
YOSHIE
Monday - Mar15th,2004 5:42pm
yoshie1608@bol.com.br
all rights reserved*