Walderez já começa a ficar impaciente com o trânsito. Trancada em sua pick up confortável, demora a perceber que seu carro, apesar de novo, não consegue andar. Não há espaço para isso. O engarrafamento alcança uns 20 quilômetros de extensão.
Fica curiosa para saber o motivo de tanto caos. Talvez um acidente. Talvez algum motorista imbecil que sem saber dirigir tenha atravancado tudo. Talvez isso, talvez aquilo. Não quer abrir a janela e perguntar – e olha que é só apertar um botão. Liga o rádio, o mais alto possível, para que não possa pensar e fica ali, com ar e a música. Condicionada.
É final de tarde. Um dia qualquer. O quadro basicamente o mesmo naquela via expressa; o tráfego sempre estaca naquele trecho. A princípio, aquela paralisação é uma decorrência normal do inchaço urbano e da superpopulação de veículos motorizados e não motorizados. Só aos poucos, quando o fluxo recomeça, e lentamente avistam no meio da rua um lençol branco cobrindo algo é que os motoristas juntam as idéias e montam tudo em suas cabeças. Apesar de ambulâncias e viaturas marcarem presença com barulhos ensurdecedores, a cena vista por quem passa por lá não possui trilha sonora. Apenas um arrepio nos pêlos do corpo.
Mesmo dia. Três horas antes.
Priscila caminha pelo Viaduto. A tarde fria. A cor cinza. Os olhos opacos. Apesar de andar para frente, não parece olhar para lugar algum. Talvez seus pensamentos tenham ficado num barraco de favela e tenham sido consumidos, assim como a última carreira de pó recém aspirada. Talvez sua vida tenha sido moeda de troca: uma transa; um papelote. Talvez seus olhos nem estejam tão opacos assim. E nem seus pensamentos tão perdidos. Talvez, Priscila nunca tenha sido tão lúcida como agora.
Tão lúcida e completamente alucinada, ela caminha e trança as pernas. A vermelhidão das córneas é resultado do choro de poucos minutos atrás. E o choro é resultado das memórias, de sua vida. “Da merda da minha vida”, pensa Priscila. Repara em um cachorro que anda ao seu lado, boca aberta e focinho úmido. Imagina lhe dando um pontapé que o faz parar lá embaixo do viaduto, estatelado. O cachorro passa. Para. Ela agacha e lhe faz uns carinhos nas orelhas. Ele fica alegre. Ela não tem motivos para isso.
A cocaína aos poucos deixa seu organismo e sem pedir licença o vazio invade. Vazio cheio de angústia e melancolia. Já não é mais confiante e auto-suficiente. Agora, se sente apenas humana, com o peso de todas as coisas, ínfimas ou não, a lhe curvar as costas. Cabeça que aponta para a calçada. Cabeça que aponta para o céu e para o nada.
Vagando como uma alma perdida, Priscila para. De frente para a mureta do viaduto, observa a via expressa lá embaixo que se agita com rapidez. Por um instante, não consegue distinguir os movimentos descompassados. Carros, pessoas, a chuva fina molhando o asfalto, tudo lhe parece uma massa disforme, uma imagem impressionista, que quanto mais se tenta distinguir, menos se consegue enxergar.
Pensa na mãe, nas irmãs e no pai. Pensa nos sobrinhos, nos amigos e em amor. Sabe que não ama ninguém. Sabe que já amou muito e que apenas não conseguiu amar a si própria. Não conseguiu gostar de si própria e a se desejar. Sempre quis o nada, como um cristão que reza, pedindo a benção de Deus.
O corpo coberto pelo lençol branco. Esticado na calçada, inerte, não atrapalha mais o tráfego. O fluxo de carros volta ao normal dos outros dias; lento, mas andando. Um veículo em especial se aproxima. A mulher dentro dele é a maior interessada no ocorrido. É claro se soubesse que...