Dois corações
Na aldeia todos o olhavam com estranheza, e os miúdos que brincavam em grupo na rua, perseguiam-no à socapa com a curiosidade infantil (ou nem tanto) de perceber se as histórias que se contavam eram, de facto, verdadeiras.
O rapaz sempre fora calado, mas mais calado se tornara mercê das insistências familiares e vizinhas que achavam que um futuro chefe de família deveria ter certas qualidades que não eram em si visíveis de todo. Deveria demonstrar certas habilidades sociais, galantear as moças da terra, no fundo comprovar a sua masculinidade e a sua viril qualidade de homem que é homem. Contudo, desde menino que para os mais atentos, o que não era o caso da maioria naquela aldeia, que se revelara emocionalmente astuto - consciente da incapacidade para agradar a pessoas demasiado exigentes ou demasiado cegas pelos condicionalismos sociais, cedo se escondeu por detrás de uma fachada fria, dura e impenetrável.
Não tinha amigos, namoradas não lhe eram conhecidas, desde muito novo que deixara de falar a amigos e conhecidos, apresentando-se sempre completamente desprovido de qualquer expressão que revelasse a mais pequena e ínfima emoção. Contavam-se histórias de que um dos seus passatempos favoritos era ir para o campo, onde matava pequenos pardais cruelmente, arrancando-lhes asas, patas, bico e até os olhos... Corria o boato de que o seu coração era de gelo, alguns afirmavam mesmo que não tinha coração.
Mas ele sabia bem que o tinha. A aparência dura e fria era a carapaça que escondia a sua fragilidade. Soube bem que tinha coração quando este saltou súbita e inesperadamente, aquando da chegada de uma camioneta de excursão que parara por alguns instantes na aldeia, e donde viu descer aquela rapariga de cabelos castanhos anelados. A mesma expressão endurecida e fria, contudo desvanecida ao encontrar outros olhos fixos nos seus. Os laivos de reflexos vermelhos no brilho acastanhado dos anéis do cabelo da rapariga fizeram correr o sangue nas veias do rapaz. O peito doeu para sempre e um dia, corroído por essas súbitas e lancinantes dores, sem mais aguentar e conduzido por um impulso instintivo mais forte que ele, largou a terra e partiu em busca da menina dos cabelos anelados.
Naquele mesmo dia, ao tomar conhecimento do aparatoso acidente na estrada, a população da aldeia, num acesso de curiosidade bizarra e mórbida, correu ao local do sinistro, onde esventrou o corpo do rapaz, já de si mutilado pelas circunstâncias, com a sede insaciável de saber se os boatos se confirmavam. No meio do sangue e das entranhas, os órgãos eram puxados e retirados, rasgados pela fúria e pelo delírio. Tudo estava lá, menos o coração. No seu lugar, um buraco negro, tão grande quanto a culpa e a ânsia daquela gente desfigurada pela indiferença pela morte. Confirmara-se: o rapaz não tinha coração.
Algum tempo mais tarde, ouviu-se na aldeia a estranha notícia de uma rapariga com cabelos cor de fogo que morrera, vítima de um estranho ataque cardíaco, resultante do facto apurado posteriormente de pulsarem no seu peito dois corações.
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CARLOS CUNHA/o poeta sem limites
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