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Contos-->Um homem que tinha um peixe entre as pernas -- 17/06/2004 - 03:40 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos






Um homem que tinha um peixe entre as pernas


Se eu fosse cega não poderia estar agora fazendo caretas ao sol. Nem enxergaria essa luz que em todos os janeiros ferem esta praia.

— Ei. Não faça sombra. Não tape meu sol, por favor. — Disse. E era voz de mulher, da mesma mulher que ainda há pouco considerava a possibilidade de ser cega.

— O sol não é só seu, dona. Mas eu ouvi ontem a senhora pedindo ao Zequinha pra passear na jangada dele — respondeu-lhe a voz de um homem. De um homem não. Digamos, de um homem bem jovem.

— E ele disse que não. Que não carregava muié pro mar — explicou, bem emburrada, imitando o falar do referido Zequinha.

— É. Ele num carrega não, mas eu carrego — adiantou-se logo o rapaz.

— E quem é você? — ela indagou àquele metido.

— Sou o filho dele, meu nome é Humberto.

— O meu é Alba.

— Eu já sei. Aqui todo mundo sabe de tudo.

Até aposto que estão fuçando minha vida. Fui o assunto da semana nesta vila de pescadores. Eles são tão engraçados. São tão diferentes do pessoal que eu conheço, julgou a moça. Ele foi se sentando. A areia, afinal, era pública. Abancou-se bem pertinho, querendo se chegar, já todo cheio das afinidades, já puxando conversa, já íntimo. Era doidinho para experimentar uma turista como aquela, uma dessas que aparecem de vez em quando pela vila. Todas muito formosas, vindas das cidades grandes. Se um dia conseguisse namorar com uma, ia ser tão bom.

Foi com essa intenção que começou a prosear, contar coisas sobre a vida dos pescadores, sobre o vaivém das jangadas, pois esperto, notou que Alba tinha um fraco por elas.

Ela ouvia com paciência, sem prestar muita atenção. Ali estava o primeiro nativo com quem travava amizade, e travar amizades era seu desejo. Tinha vindo para aquela vila com a esperança de conhecer gente despoluída, simples, quem sabe até um homem novo, puro, diferente dos outros que conhecera até o momento e que lhes davam enjôo. Alguém especial para lhe dar sentido à vida; sonho secreto que não larga as mulheres; a eterna perseguição da aventura do amor romântico.

Humberto passou a ser como se fosse sua sombra. Achava que ela era um pedaço de mau caminho. Ah, quem dera, planejava entre suspiros, seguindo-a por todos os lugares do vilarejo, deixando seus quefazeres de lado.

Andava léguas para não deixar faltar alface e tomate na salada que ela tanto prezava. Quando um siri vinha enganchado em alguma rede era imediatamente separado para que ele pudesse presenteá-la. (O pessoal da capital dá o maior valor a carne de siri). Cajus maduros encontrados pelas estradas em que passeavam durante o dia, eram transportados aos pedacinhos, pelos dedos dele para a boca vermelha que ela usava sempre. Não dispensava em hora nenhuma o batom escuro e provocante.

A noite, eles iam para o bar do Mamede. Ela ficava deitada na rede de corda armada no terraço, e ele escanchado numa cadeira, de frente pra ela, encantado; se gabando, se gabando, ou tocando violão. Caboclo matreiro aquele. De madrugada, sem que ninguém visse, ele colhia ramalhetes de bogaris e os depositava na porta do chalé onde ela dormia hospedada. O mar era muito escuro nessas horas.

A claridade fazia com que ela acordasse às seis da manhã. Havia em seu quarto uma janela que não fechava direito, impedindo que a penumbra fizesse a noite durar um pouco mais. Aproveitava para dar longos passeios, esticar-se, respirar o iodo vindo do sal. Ouvir o som do mar constante. Ao seu lado Humberto, constante também.

— Olha lá uma jangada chegando. Já sei reconhecer. É a do teu pai — comentou Alba, apontando o infinito.

— Hoje eu te levo pra dar uma volta. Ouvi dizer que ele vai pra cidade. Assim que o velho der as costas a gente vai.

— Por que o Zequinha não gosta de mim, hem?

— Né isso não, minha filha. Né isso não. Ele gosta sim.

— Então por que ele não me deixa passear na jangada dele? — Quer saber por quê? Nem ele nem nenhum pescador leva mulher pro mar.

— Mas por quê?

— Quer ver pergunte aos outros se eles te levam. Não é só o pai Zequinha não. Ninguém vai te levar.

— Mas por quê? Eu pago. Eu disse que pago. Pode dizer o preço.

— Num é questão de preço, não.

— E o que é?

— Besteira de gente ignorante. Num liga não. Faça o que eu digo: não se preocupe que eu te levo. Mas num fala nada pros outros. Um dia eu te levo — prometia.

Ela já tinha sofrido várias recusas. Esse jovem pescador era sua última expectativa. Passear numa jangada lhe parecia uma coisa tão simples. Não entendia por que punham tanta dificuldade.

Nadavam furando as ondas, cedo, muito cedinho, mas com calor suficiente para que suor e água salgada se misturassem sobre a pele. Ele ia aos abismos do oceano buscar- lhe corais, estrelas-do-mar, conchas e madrepérolas. Aceitava todos os desafios para deixá-la alegre. Brincavam na água azul-turquesa como talvez tivessem brincado os primitivos. E era tanta coisa linda que nem dá pra tudo contar.

Certa vez inventaram de pescar lagostins nas locas deixadas à vista pela maré vazante. Arrancaram-nos de seus esconderijos com as mãos nuas e por isso os dedos tão lindos dela ficaram sangrando. Ele, com olhos de desejos múltiplos, lambeu-lhe o sangue com luxúria, e foi agora, neste momento, que pela primeira vez mergulharam-se dentro dos olhos, no fundo das pupilas, dizendo o nada que diz tudo.

— Vamos até a pousada. Vou cozinhar os lagostins só no bafo da panela — disse Alba desfazendo o clima.

Na pousada não a deixaram preparar aqueles frutos deliciosos que o mar nos dá. Sua pesca estava proibida. Era época de desova. Se a fiscalização pegasse, além de fechar o estabelecimento, aplicaria uma multa. E a multa custava uma fortuna.

— Não é nada disso. É pura implicância dessa negrinha nojenta, essa tal de Teca. Ela pensa que é importante só porque arrumou esse emprego de cozinheira nessa titica de pousada. Num ligue não, minha bichinha — pedia o moço carinhosamente — vamos lá pra casa. A gente cozinha lá. Mãe Maria num há de se incomodar, não.

— A Teca foi sua namorada? — perguntou Alba com ódio.

— Foi. Graças a Deus num é mais. A gente namorava antes de você aportar por aqui.
— Puxa-saco. Enxerida.
— É isso mesmo. Ela fez isso pra puxar o saco do patrão. Tá bem dormindo com ele — disse Humberto, demonstrando ainda uma lasca de ciúmes por Teca.

— Que dormindo com ele que nada. Eu conheço o patrão dela, o Otávio, que é o dono da pousada. Ora se ele haveria de querer aquilo. Ela quer é implicar comigo por causa de você — garantiu enciumada, tentando desvalorizar a cozinheira. — Sempre que pode ela me persegue. Vou dar queixa dela.

— Ligue não. Vá se queixar não. Ela é uma pobre coitada e precisa desse emprego — pediu, mudando de idéia, resolvendo proteger sua antiga namorada. — Afinal de contas, tem tanta coisa muito mais bacana pra se fazer — argumentou o rapaz.

Bebês de lagostins cozidos no bafo da panela com casca e tudo. Depois, pra comer, é só tirar a carne de dentro da casca e molhar na manteiga derretida. Iguaria para se saborear de joelhos.

Trepou no coqueiro levando o facão entre os dentes. Era só ela querer água de coco, ou qualquer outra coisa, para que ele fosse buscar.

— Cuidado Beto. Não vá cair daí, pelo amor de Deus — gritou Alba, olhando para cima, encandeada pelo sol.

— Ai vai. Agora o nome dele é Beto? — perguntou com ironia mãe Maria. E gritando para o filho: — Ei, Humberto. Teu nome agora é Beto? Num foi assim que o padre te batizou, não.

Noite dessas, depois da cachacinha pra dar quebranto, foram dar umas voltas por detrás do cemitério. Quase louco, ele a imobilizou com o próprio corpo amassando seu corpo fêmeo contra o muro. Perfume de jasmins. Cheirava seu cangote afogando-se lá, enquanto ela sentia a rigidez máscula encostando-se nas suas coxas, esfregando-se. Com impaciência levantou-lhe a saia e já estava quase conseguindo. Porém ela escapou no exato momento em que ele afrouxou o abraço para desabotoar-se. Aconselhada pelo diabo que morava em si, fugiu correndo para o chalé e se trancou. Ele não conseguiu alcançá-la, passando a noite inteira gemendo, implorando ao pé da porta. E ela nada:

— Por favor minha querida. Por caridade. Abra a porta. Abra. Vamos. Abra essa porta, minha bichinha. Num tem ninguém aqui. Ninguém vai saber.

Mas no dia seguinte todo mundo soube. Todo mundo olhava pra ele com cara de riso, até a Teca.

Esse episódio, em vez de irritá-lo, fez com que se tornasse ainda mais perseverante, mais atencioso e mais apaixonado. Não há quem explique essas coisas do amor. Dali em diante as vontades dela eram satisfeitas antes mesmo de serem manifestadas, aquela coisa de adivinhar pensamentos. Só não tinha conseguido ainda andar de jangada.

— Por que você não me leva hoje? A jangada está parada ali. Veja.

— O pai está de olho na gente. Noutro dia ele tava dizendo pra mãe que num ia pra cidade, como estava querendo, pra evitar que eu fizesse uma desgraça.

— Desgraça? Por que desgraça? Você sabe ou não sabe conduzir uma jangada?

— Sei. Sei sim e muito bem. Pode perguntar a qualquer pessoa. Mas aqui, eles acreditam que levar mulher pro mar dá em desgraça. Coisa de gente iletrada — explicou-lhe cheio de orgulho por ser um dos poucos com estudos naquela vila de pescadores dos confins do mundo.

— Mas eu quero ir. Num ligo pra essas crenças. — Desafiou enquanto Humberto a agarrava pelas costas. As mãos dele colhendo-lhe um dos seios alojado dentro do sutiã.

Ela passava o dia inteiro em trajes de banho. Algumas vezes apenas amarrava um pano colorido na cinturinha fina, bem-feita. Talvez fosse por isso que o corpo do rapaz não se comportasse direito dentro do calção. Seu sexo pulava a toda hora para fora da roupa, assim como um peixe vivo pula para fora da rede.

Foi mãe Maria, com voz ameaçadora, quem contou claramente para Alba, que todos os pescadores dali faziam um voto pra Janaína, a poderosa deusa do mar e dos corações, de não carregarem outra mulher dentro de suas jangadas a não ser ela própria, figurada por uma imagem de madeira pregada no meio do mastro.

— Ela se vinga de quem quebra o voto, levando o maldito pro fundo do mar.

Dali em diante ela começou a observar melhor o ícone encravado nos mastros, e a entender dos mistérios daquele mundo tão masculino. Apesar disso não se conformou aumentando a pressão sobre o namorado, deixando bem claro que só aconteceria o que ele tanto desejava se ele a levasse ao mar numa jangada. Empurraria o pobrezinho à loucura, mas não cederia. Jogo delicioso é entrar nesse limite. Momento de incomparável poder é quando os homens fazem qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, para entrançar seu corpo no corpo de uma mulher, e quando essa mulher é a gente.

Criou a moda de colher ostras para comer. Ela as apreciava vivas apenas temperadas com suco de limão bravo. Ensinou a criançada da vila a despregá-las das rochas usando uma faca velha, pois embora aquela praia fosse lotada de ostras, eles não costumavam comê-las, nem vendê-las, nem nada. Gastou tardes e tardes nessa lida deixando Humberto enciumado e impaciente. Sobrava para ele apenas o aproveitar-se de uma ou outra distração dos curiosos para poder, por baixo d água, meter a mão por dentro da calcinha do biquíni, excitando-a. Ela estremecia, mas não deixava que ele notasse só para atormentá-lo. O coitado ficava todo inflamado. Estava quase alucinando, até chegando uma vez a relinchar como um jumento, tal era seu estado de paixão. O sol era quente de arder sob as costas. O mar era de uma beleza superior.

Tinha que acontecer, repetia-se Humberto. Tinha que acontecer. A vida exigia. Onde punha sua boca sentia o gosto dela, onde punha seu nariz sentia seu perfume. Sonhava com ela em seus braços, linda, vindo toda apaixonada. Depois, tinha certeza, ela nunca mais ia querer fazer outra coisa na vida.

Rindo, enquanto ele a espremia num abraço, ela pedia provocante.

— Me leva pra passear de jangada, amor. Daí nós vamos fazer tudo que você quer. Com o sol por cima e o mar por baixo.

— Levo — dizia entre beijos na boca.

— Quando? — perguntou, empurrando-o.

— Amanhã — decidiu, iniciando outro beijo, tentando provar o veneno da saliva daquela mulher que o obcecava.

Acordaram ainda de madrugada para aproveitar a vazante da maré e saíram a pé atravessando a água salobra das diversas barras dos rios que convergiam para o mar. Os galos cantavam.

Dirigiam-se a um outro vilarejo onde morava um tio de Humberto, também pescador. Ia ver se conseguia pegá-lo desprevenido. Ia ver se conseguia roubar a jangada dele. Faria qualquer negócio para satisfazer o principal desejo dela, e, enfim, satisfazer seu principal desejo, pois os dois desejos interdependiam. Estava tão feliz que cantava, corria e chapinhava na espuma retida pela areia.

Não foi difícil rolar a embarcação para as águas que começavam agora a subir. Era a hora da maré encher. Quando passaram a arrebentação das ondas, o sol já clareava o mundo. Finalmente alcançaram a solidez do alto-mar.

Janaína, fixada no mastro, o olhava com as sobrancelhas afiadas. Ele fez uma silenciosa oração à deusa, fixou o leme com uma corda para melhor se dedicar aos dengos do amor e jogou as roupas pra dentro do samburá. Vestindo apenas o sol por cima e o mar por baixo, conforme a proposta, exibia-se nu ante o espanto quase infantil daquela mulher tão cobiçada.

— É enorme. Parece um peixe. Um enorme peixe. É liso, rijo, indomável e vivinho como um peixe.

— O peixe quer o mar — segredava rouco, bulindo com o corpo também nu que ela lhe apresentava.

E olhava fascinado para seu próprio sexo. Segurava orgulhoso as dimensões que a natureza havia lhe dado, como um rei empunha um cetro, o símbolo do poder sobre os outros mortais. Sorria.

Satisfizeram com requinte a todas as exigências da natureza, repetindo esse ritual por um inteiro dia.

— O peixe quer voltar para o oceano, senão morre — pedia, começando tudo novamente.

— Não posso mais. Assim você vai me machucar. Por favor, cuidado — queixava-se ela, embora permitindo sempre o retorno.

O sol já estava se pondo quando voltaram. A praia estava lotada de gente, porém ninguém disse nada. Ao verem os dois saltarem da embarcação sãos e salvos, se retiraram silenciosos, não restando uma viva alma para ajudá-lo a recolocar a embarcação no seco, aquele árdua tarefa de rolar a jangada sobre dois troncos de coqueiro.

Muito mais tarde da noite ele voltou para casa. Mãe Maria, mal o avistou já foi chorando e se lamentando. Pai Zequinha, mal conseguindo se controlar disse entredentes:

— Você pra mim já está morto. Ela vai te levar, eu sei — e sem mais poder se conter, chorou também.

Dia seguinte, quando clareou, Humberto viu pai Zequinha se preparando para ir pescar. Não queria acompanhá-lo. Queria Alba. Mas, mesmo contra seu desejo, resolveu obedecer ao destino. Quem sabe assim o amansaria?

Começou a ajudar, foi fazendo as arrumações, mostrando atitude de quem vai. Zequinha, foi aos poucos relaxando a cara de aborrecimento, porém só falando o indispensável. Dava as ordens pois era o mestre. Juntos pai e filho partiram:

Rumo a um horizonte de encantamentos, e rumo ao descanso nos braços da mulher que acreditavam ser única com poder de acompanhar um homem ao mar. Janaína, a que tinha lhes colocado um peixe entre as pernas.


Joyce Cavalccante





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CARLOS CUNHA/o poeta sem limites

dacunha_jp@hotmail.com








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