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Contos-->Vista humana -- 21/06/2004 - 17:01 (Isabel Fontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Acordei de manhã com uma secura, sonhei que estava num safari e á minha volta era só areia. Há minha frente seguiam homens altos bastante morenos, queimados pelo sol, vestiam grandes túnicas e usavam turbantes na cabeça que lhes tapavam o rosto deixando ver somente os olhos. Sentia uma preguiça enorme, não conseguia pôr as pernas a andar, todos os meus músculos estavam presos, enferrujados. Depois de muito esforço lá consegui entrar no duche, foi das melhores sensações que tive, sentir a água a escorrer no meu rosto, pela minha pele. Tive de colocar duas vezes o creme de corpo a minha pele estava bastante seca, já para não falar do rosto que estava todo escamado, e notei que estava a perder cabelo. Reparei que não tinha mandado arranjar o meu fato cinzento, as calças estavam muito compridas e o casaco estava largo e com umas mangas enormes. Dobrei a bainha das calças com agrafos, arregacei as mangas do casaco e segui para o emprego.

A caminho da paragem do autocarro comecei a sentir imenso calor, pensei logo que estava com febre pois era um dos dias mais frios deste Inverno (ouvi noticiado nas notícias!) e chovia a potes. Transpirava imenso, comecei a sentir-me mal dentro do autocarro, sentia que todas as pessoas estavam a olhar para mim por cheirar a transpiração, por estar com mal aspecto. Não aguentei e saí duas paragens antes da minha. Fui o caminho todo com o chapéu fechado e sabia-me bem-estar toda molhada, como peixe em água doce. Segui logo para o escritório deixando de lado o pequeno-almoço.

A primeira coisa que fiz foi dirigir-me para a casa de banho e beber água pelo gargalo da torneira, que sensação, que frescura. Durante a manhã toda os comentários iam de – Estás com péssimo aspecto! Ou – Deves de estar doente, porque não vais para casa?. Não fui almoçar com os meus colegas como de costume, passei as duas horas do almoço fechada na casa de banho a beber água pelo copo da minha escova de dentes. Chegado do almoço, o meu chefe chamou-me á sua sala. Fui aconselhada a ir para casa duas semanas para descansar, não mencionou o meu aspecto, por estar a trabalhar demais e merecer umas férias. Despedi-me dos meus colegas e lá segui para casa mas desta vez fui a pé, não queria voltar a passar a mesma vergonha que tinha passado de manhã no autocarro. Durante todo o caminho até casa o que me fazia mais confusão era o facto de desde manhã ainda não ter comido nada e já serem três da tarde. Mantive-me firme comprei mantimentos no supermercado para duas semanas e fechei-me em casa.

Tudo aconteceu muito de pressa, quando dei por mim não chegava ao lava loiça da cozinha e tinha que subir para duas cadeiras empoleiradas uma na outra para conseguir ir aos armários buscar comida. Já para não falar da porta do frigorífico que ia ficando fechada dentro dele umas quantas vezes, não tinha forças para aguentar a porta. Decidi colocar toda a comida nuns tapetes no chão da sala para não ter de correr mais riscos, nem com portas de frigoríficos, nem empoleirada nas cadeiras da cozinha. Os dias iam passando e a fome era cada vez mais reduzida, se não nenhuma, apenas sentia muita sede. Acabei por colocar a mangueira de lavar o quintal ligada á torneira da casa de banho, estava mais perto da sala e tinha daqueles reguladores de saída de água, sempre que tinha sede bebia por ela. Como não me doía nada e achava que era alguma gripe ou algo passageiro não fui ao médico, também naquela altura já não chegava a lado nenhum nem á maçaneta da porta, deixei-me ficar na esperança que alguém me encontrasse e resolvesse o meu problema.

Os dias foram passando, já não conseguia nem chegar ao pequeno móvel da televisão e do vídeo, estava á dias a ouvir as mesmas falas a ver as mesmas imagens do filme que estava no vídeo, mas o pior era o som á noite da cassete a rebobinar. Já sem forças para fechar a presilha da mangueira deixei-a aberta na esperança de darem pela água no corredor do meu piso. Comecei a sentir imensa falta de ar sempre que não estava banhada pela água que escorria, deixei de sentir os meus braços e pernas e a única coisa que conseguia mover era a cabeça para a colocar na mira da água.
O telefone não parava de tocar, devia de ser do meu emprego, a campainha da porta a mesma coisa, já não conseguia falar, mantinha a esperança de que alguém visse a água a sair do meu apartamento e chamasse os bombeiros e aí me encontrassem. A certa altura do dia comecei a ouvir imensos barulhos á minha porta, balancei convencida que me iam ouvir, algumas batiam energicamente outras gritavam o meu nome. Estiveram horas naquele preparo até que de repente ouvi um estrondo e a porta da entrada caiu. Os bombeiros entraram com uma rapidez parecia um filme, seguidos logo pelos meus vizinhos na esperança de cuscarem alguma coisa.

Fecharam a torneira da casa de banho, que me deixou com falta de ar, reviraram a casa toda, eu permanecia com falta de ar, parecia que não estavam a encontrar o que queriam. Os segundos iam passando e eu agonizava até que um bombeiro me encontrou e me pôs primeiro num copo com água em cima da mesa da sala de onde eu podia ver toda a agitação que se estava a passar na minha casa, depois num saco plástico e de seguida levou-me com ele.

Hoje vivo sozinha num aquário redondo numa casinha de pedra rodeada de pequenas árvores com uma vista humana.
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