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Contos-->VERSO e REVERSO -- 25/07/2004 - 20:19 (ORIZA MARTINS PINTO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
VERSO e REVERSO

Oriza Martins

Planalto Verde era uma comunidade pequena, porém relativamente próspera, cuja economia baseava-se, principalmente, na pecuária. Lá os “bons partidos” eram os filhos dos fazendeiros, visados por praticamente todas as moças que desejavam se casar.
A pequena Isa lembrava-se de Elisabeth, uma bela jovem, conhecida não apenas por sua beleza, mas também pela inteligência. As pessoas comentavam que Elisabeth, certamente, acabaria indo para a cidade grande cursar alguma faculdade.
– Será? – perguntava-se Dona Bila, a mãe de Isa. – Tomara que sim, mas, com essa beleza toda, ela vai é fisgar algum filho de fazendeiro por aqui mesmo.
De fato, não demorou muito, Elisabeth começou a namorar Gilberto, o filho do fazendeiro mais poderoso da cidade. Formavam um interessante casal. Ele, com cintilantes olhos azuis, despertara um profundo sentimento em Elisabeth e, desde os primeiros tempos de namoro, os dois jovens envolveram-se apaixonadamente.
Elisabeth mantinha uma espécie de diário, onde relatava o desenrolar do romance. Ele se divertia com isso e conseguia ler pequenos trechos que a jovem liberava. Com o passar do tempo, porém, os valores morais de Gilberto começaram a aflorar, no relacionamento.
Elisabeth era filha de pais separados. Vivia com a mãe, uma pequena comerciante, batalhadora – verdadeira leoa na defesa dos filhos. Se, para uma mulher separada, viver em cidades grandes já era bastante difícil, quanto mais não deveria ser em uma comunidade pequena e – pior ainda – naqueles tempos, nos idos dos anos 50! Elisabeth observava o preconceito de que a mãe era vítima e sempre a apoiava, manifestando solidariedade.
Para sua tristeza, inúmeras vezes, Gilberto referia-se de forma negativa a respeito de filhos de pais separados. Isso incomodava Elisabeth, mas o profundo amor que nutria pelo jovem amenizava a situação.
Paulatinamente, porém, ela percebia no namorado um exacerbado preconceito, defendendo os sagrados laços do casamento oficial, a família legalmente constituída, gabando-se de pertencer a um clã onde esses valores eram fortemente cultivados.
– Ah... geralmente... não sei, não... – dizia ele, entortando a boca, num esgar de pouco-caso. – Acho que pode ser arriscado casar com filhas de pais separados. Se os pais não deram valor ao casamento, o ambiente pode ter afetado a educação delas... vão acabar achando natural separar também, não vão valorizar a união...
Nesses momentos, Gilberto parecia cair em si e abraçava Elisabeth:
– Não se ofenda, querida. Estou convencido de que você é uma exceção... Vou compensá-la por ter sido criada em uma família desfeita... Você vai ter comigo um lar solidamente constituído... com fartura, um maridão apaixonado...
E Gilberto concluía, com ar sorridente:
– Aí, hein? Beth? Tirou a sorte grande! Vai ganhar um maridão apaixonado!
Ouvir aquelas palavras, proferidas pelos lábios tão amados de Gilberto, doía profundamente no íntimo de Elisabeth, mas ela acreditava que o tempo poderia mudar a visão de mundo do rapaz.
Porém o tempo se passava, e as coisas continuavam na mesma. Elisabeth começou, então, a rebater as idéias de Gilberto, deixando-o exasperado ao afirmar que uma separação não era algo tão deplorável, poderia acontecer em qualquer família.
– Nas boas famílias, não! – devolveu ele, enfático. – Pelo menos, não na minha, jamais admitiríamos!
Elisabeth calou-se, desejando que o destino pudesse dar a Gilberto uma resposta à altura.
Um dia, no auge de uma discussão com a mãe de Elisabeth, manifestando menosprezo por sua condição de mulher separada, ele deixou escapar:
– Na minha casa só vai entrar quem eu autorizar!
Foi a gota!
Não obstante toda paixão, Elisabeth decidiu-se por sacrificar seus sentimentos em prol de um futuro mais digno.
Em uma tarde de outono, após treinar muitas vezes diante do espelho, Elisabeth tomou coragem e desfez o namoro. Ele não conseguia acreditar no que ouvia. “Ela o estava dispensando? Isso era um absurdo! Impensável!”
– Sabe, Gilberto, eu lhe agradeço... – concluiu Elisabeth. – Você mostrou-me que tenho uma grande capacidade de amar. Amei você com todo meu potencial. Agradeço-lhe por haver-me proporcionado esta certeza: de que sou capaz de gerar muito amor. Estou grata a você por isso.
Essa foi a última frase que Elisabeth proferiu, despedindo-se de Gilberto, que permaneceu pasmo, mudo, estático, vendo a imagem da jovem distanciar-se, misturando-se às folhas de outono que caíam calmas, displicentes... Era-lhe incompreensível: como poderia aquela jovem pobre, humilde, filha de pais separados, estar-se recusando a se casar com ele, herdeiro do poderoso fazendeiro, renunciando a construir uma vida sólida, de fartura, num lar perfeito, a seu lado?
Elisabeth mudou-se da cidade, foi cursar a faculdade em São Paulo. Acreditava que o tempo curaria suas cicatrizes de amor...
Aquele outono se foi e depois novos outonos se passaram. Muitas outras folhas caíram e inúmeras vezes a natureza se renovou... assim como se renovam as esperanças nos corações humanos...
Elisabeth acabou radicando-se em definitivo na capital paulista e construiu uma sólida carreira, enquanto acompanhava com interesse alterações dos novos tempos: na política, na ciência, no dia-a-dia, nas artes, nos direitos humanos, na evolução das mentalidades e na visão de mundo das pessoas. Vez por outra, tinha notícias da terrinha. Vez por outra, ficava sabendo das novidades de Planalto Verde através de reencontros com velhos amigos, oportunidades que iam se escasseando com o tempo.
Anos mais tarde, Elisabeth voltou a ter notícias do ex-namorado. Um encontro com a antiga colega Lurdinha revelou o que a vida reservara ao preconceituoso Gilberto.
– Ele não se casou – disse Lurdinha. – Pelo menos, não oficialmente. Ele se “amigou”.
– Amigou? – admirou-se Elisabeth, lembrando-se do quanto Gilberto valorizava o matrimônio oficial.
– É... amigou. Juntou-se a uma mulher, concluiu Lurdinha. – Não sei por quê. Acho que ela devia ser desquitada, sei lá... Ah... E sabe de outra coisa? Os pais dele se separaram.
– Separaram-se? – Agora Elisabeth ficou espantada, pensando: “Os pais de Gilberto? Aquele casal tradicional, de fazendeiros, uma família perfeita, tão cheios de etiquetas?”
– Separaram-se “apenas”, não! Ela, a mãe dele, foi quem se separou. Aliás, ela fugiu de casa... com outro!
– Não!!! – admirou-se Elisabeth, abrindo um largo e zombeteiro sorriso.
– Verdade! E o cara, ainda por cima, era bem mais jovem do que ela! – continuou Lurdinha. – Aliás, era até amigo do Gilberto!
– O quê?! A mãe do Gilberto fugiu com um cara mais jovem? E amigo do filho?
– Pois é! E sabe da maior? Ela não ficou com ele, não. Logo o largou e trocou por outro. Ela montou casa na cidade e agora mora lá. Dizem que é tarada por rapazes mais jovens! Garotões... sacou?
Num daqueles átimos naturais de revanchismo da natureza humana, Elisabeth sorria ao imaginar as situações por que devia ter passado o Gilberto. Intimamente, sentia um certo saborzinho especial... e, afinal, suspirou:
– É... de fato... como disse um grande pensador, a vida se move por contradições...
Novos outonos se passaram...
No entardecer da vida, Elisabeth voltou a encontrar-se, casualmente, com Gilberto. Civilizadamente, recordaram os velhos tempos. Ele lhe perguntou sobre o diário.
– Você ainda escreve o diário?
– Sem dúvida – brincou ela, zombeteira. – Aliás, hoje você estará nele...
– Pena que saí dele há muito tempo – suspirou Gilberto, num tom saudoso. – Tantas vezes pensei no quanto gostaria de ler o que escreveu sobre mim, depois de tudo...
Ela apenas sorria, enigmática. Por fim, fez-lhe a clássica pergunta:
– E seus pais, como vão?
Gilberto engoliu em seco e respondeu:
– Vão bem.
E completou, sério, num tom forçadamente prosaico:
– Eles se separaram.
– Separaram?... murmurou Elisabeth mordendo a língua para não cair na risada. Por fim, encarou Gilberto e deixou escapar um ligeiro e irônico sorriso, acrescentando um clichê à resposta que a vida lhe dera:
– Pois é... isso acontece até.. com as melhores famílias...

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