«Nasci algures numa casa solarenga do Norte. Tive uma infância feliz. Os meus pais, os meus avós e todos os familiares me acarinhavam. Tinha um quarto cheio de brinquedos. Nunca senti a falta de nada. Estive num bom jardim-de-infância, frequentei uma boa escola e completei o curso do Liceu. Tive boas notas e, assim, pude entrar na Universidade e seguir o curso que sempre desejei: Medicina. Quis ser médico».
Estes seriam os ingredientes para uma história inteiramente feliz. Se fosse verdade. Mas não. Comigo tudo se passou de modo diferente. Nasci e fui abandonado, tive uma infância curta e não vivi nem com os pais nem com os avós. Foram nulos os contactos com a família, visto que não a conhecia, os brinquedos contei-os pelos dedos duma só mão, senti necessidades de vária ordem, não completei nenhum curso convencional, não estive em nenhuma Faculdade.
Nunca soube quem foram os meus pais. Fui criado numa Instituição, onde recebi o carinho possível, mas diferente daquele que se recebe da família.
Aprendi um ofício, entrei no mercado do trabalho, pratiquei desporto e namorei. Casei e tive filhos.
Hoje, passadas várias décadas, sou avô de netos já adultos, depois de recriar um ambiente familiar, onde o carinho e o respeito foram a norma.
João Pedro, com olhar distante, pensa no que tem sido a sua vida.
Agora, por decisão própria, encontra-se num Lar para idosos. Enviuvara. Um acidente vascular deixara-o meio paralisado. Não quis ser um peso para os filhos, até porque eles também tinham filhos, casas pequenas e preocupações de sobra. Ajudavam-no no pagamento do lar – que era óptimo – e que, doutro modo, não estaria ao alcance da sua bolsa. Visitavam-no assiduamente. Todos, incluindo os netos. Arranjaram mesmo um horário para se revezarem, de modo a que ele se sentisse acompanhado quase diariamente. Nos dias de aniversário de cada um, vinham-no buscar.
Agora, sente-se velho e doente. Colhe, no entanto, os frutos do carinho que soube dar aos filhos e aos netos.
À sua maneira, João Pedro é um homem feliz. Aguarda tão só, com tranquilidade, o fim da caminhada, iniciada há cerca de oitenta anos.