A menininha esfregou os olhos, apoiou as mãozinhas gordas no pedaço de chão forrado por esteira e se levantou sem fazer barulho. Andou pelo interior da cabana de taipa, passando por cima dos irmãos, pelo fogão à lenha, por baixo da rede do pai e abriu o trinco enferrujado da porta rústica bem devagar. Apesar da sua pouca coordenação e andar desajeitado, era bem pequena, conseguia realizar esse plano de fuga todas as manhãs, antes do sol nascer, com extrema destreza.
Sentiu a lufada do vento gelado com cheiro de peixe em seu pequenino rosto, seus cabelos amarelos, compridos e desgrenhados chicotearam o ar desordenadamente e os pezinhos afundaram na areia enquanto ela se aproximava da praia. Escalou com pouca dificuldade o rochedo frio, encaixou o pequeno corpo dentro de uma das cavidades da grande pedra e ficou observando...
A lua branca enchia de luz o mar calmo, havia poucas estrelas e a menina riu... Riu deles, dos bichinhos, riu com eles, tão bonitos, os golfinhos. Eles também pareciam sorrir para a menina, saltando, mostrando as barrigas, nadando em círculos...
Todos os dias, desde que sua mãe morreu, passou a fugir para a praia. Sonhou com a mãe numa noite e se levantou. Naquela madrugada, não chorou, mas foi para a praia. No primeiro dia ficou apenas olhando o mar, nada viu. No segundo apareceu um bichinho. No terceiro foram dois e nos dias subseqüentes, muitos: Seus corpos lisos, brilhantes, fofinhos... Elevavam os orifícios de respiração para fora da água e emitiam uns sons agudos. A menina, com sua voz fina, “respondia”. Quem presenciasse a cena diria que eles estavam realmente se comunicando. Esse “diálogo” durava até o momento em que os primeiros raios de sol apareciam e os bichinhos iam embora. Então, a menininha realizava o trajeto de volta, entrava na cabana de taipa e se enfiava em seu cantinho de dormir. Ao que se saiba, ela nunca foi descoberta. Aquele era o seu grande segredo.
A pouca idade da criança, porém, não lhe agraciava com a qualidade da inocência: Ela sabia o peso de ser uma órfã de mãe e que sua família vivia em condições muito precárias. Tempos depois, quando a colônia de pescadores onde vivia adquiriu um velho aparelho de TV, e ela pôde ver quase que diariamente imagens de pessoas bem vestidas e saudáveis habitando mansões luxuosas e pomposas na alienação das telenovelas, a certeza de ser uma excluída tornou-se ainda mais evidente.
Contudo, a despeito das mudanças físicas e psicológicas que a idade lhe trouxe, apenas uma coisa não se modificava: sua sólida amizade com os golfinhos. Ou melhor, algo mudou sim: alguns anos depois daqueles primeiros encontros à distância, a moça já era capaz de nadar com eles, tocá-los de leve, sentir o cheiro deles. Era uma interação maior do que a que ela poderia ter com qualquer ser humano.
Com o tempo, os limites impostos por sua desfavorável condição social foram sendo superados. Ela venceu a ignorância própria de quem não pôde ser alfabetizada ainda criança e começou a ganhar a vida na cidade.
Durante muitos anos, ficou sem o contato com os golfinhos, mas a mulher jamais perdeu o hábito de acordar cedo e ficar pensando neles, com a estranha certeza que, se fosse à praia da pequena ilha onde nasceu, encontrá-los-ia “sorrindo-lhe”, do mesmo jeito que antes.
Seus esforços levaram-na à universidade, tornou-se bióloga e, mais tarde, uma dedicada pesquisadora... Dos golfinhos!
Simão, o golfinho mitológico; a coloração da pele dos bichinhos que variava de acordo com a luminosidade da água do mar; as variedades de espécimes; a comunicação entre eles por modulação de freqüência; os relatos sobre a menina neozelandesa Jill Baker, que “cavalgava” oceano adentro no dorso do golfinho Opo; o golfinho Elie, que também brincava com crianças na costa do condado escocês de Fife; os golfinhos que apareciam mortos nas costas marítimas sem qualquer razão física aparente; e, principalmente, seu trabalho com crianças traumatizadas e altistas em que utilizava a presença de um golfinho no processo de terapia; - eram os temas e atividades que ocupavam a maior parte do tempo e energia da pesquisadora que amava demais aqueles animais.
Quando atingiu a idade da razão, nossa doutora-heroína tornou-se uma ativista, jogando-se ao mar junto com outros companheiros em protesto à captura desses mamíferos para servirem de atração turística em aquários particulares de empresários milionários. Foi filmada por redes de televisão e taxada de radical-extremista por “jornalistas” a serviço do poder econômico.
Mas, quando em protesto na água gelada do oceano sentiu o forte impacto na cabeça desferido por algum desajustado da Guarda Costeira, ainda teve consciência para perceber seu corpo afundando, mole e inerte, e muito sangue à sua volta, num contraste com os raios do sol que na água do mar penetravam. Agradeceu pela vida que teve, pela intensa vida que teve, e se entregou ao seu destino, o de morrer pelos golfinhos. A última coisa que viu antes de perder totalmente os sentidos, foi uma mancha escura e esguia, com bico e barbatana aproximando-se à grande velocidade do seu corpo ferido.
Mas não pensem que esta história terminou aqui!
Nossa heroína ainda viveu por muitos anos, sempre fiel à sua nobre causa. Quando chegou realmente ao final da vida, com 95 anos de idade, pediu aos netos que a levassem pela última vez à praia da pequena ilha onde nasceu. Queria agradecer aos bichinhos por eles terem lhe dado um sentido para viver. Ela agradeceu. Eles vieram ao seu encontro. Eles agradeceram de volta.