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Contos-->Amigos, adocicados ou apimentados, amigos -- 23/02/2000 - 12:35 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estou aqui para contar do sumiço do Seu Emílio de Santa Clara com seu carrinho azul debruado de raminhos ingênuos. Mas me permita antes o caldo desta mamucha, que eu já havia principiado? Não sou tão sem maneiras, mas ando cansada de entornar copos, que só vendo! Beber três litros de água por dia é dureza, sabe? (Pausa para morder a fruta.)

Talvez, variando a embalagem... (Pausa para sorver o caldo.)

Optei por comer a fruta em vez de tomar-lhe o suco, porque caldo espremido em copo de vidro era muito impessoal. Adoro embalagens. Às vezes mais do que o que lhes vem dentro. Coleciono papéis de bala, achando valia para tudo o que seja lata jogada fora. Então, não chega a ser esquisito que eu admire de verdade a brilhante idéia de quem, lá um dia, ergueu um barraco com embalagens de refrigerantes descartáveis (os refrigerantes é que são descartáveis, não as garrafas). Vi naquela construção insólita a concretização do meu culto do invólucro.
Ter de lavar a fruta, descascá-la, espremê-la, talvez tanto esforço recompensasse meu estômago, que se sentiria, finalmente, merecedor do líquido de frutose que eu lhe ofereceria. Ilusão gástrica, algo assim, para um estômago suscetível. Deste modo foi que me curvei à receita médica de entornar sucos, água, tudo o que de fluido, para compensar a seca planaltina. (Pausa para virar a mamucha do avesso e comer-lhe os gomos.).

Destroçada a laranja, as sementes estiradas na tampa de alumínio, vamos à história. Quero contar, já dizia, do sumiço de Seu Emílio de Santa Clara com seu carrinho azul debruado de raminhos ingênuos. Ah, mas posso lavar as mãos antes? Dois minutinhos, e já volto. (Pausa para a torneira aberta do banheiro e um par de mãos gêmeas se lavando debaixo.)


Voltando: sobre o Seu Emílio de Santa Clara, para quem não o conhece, é aquele moço magro de mais ou menos uns sessenta anos e alguma barriga, meio baixo, jaleco azul, casquete (esqueci a cor), cara de bom moço, situado - ele e seu carrinho - na descida de uns cinco metros do bloco C da 402 Sul, à sombra da primeira árvore. Quanto ao carrinho, não sei se já disse, era todo debruado de raminhos ingênuos, sabe lá pintados por que mãos.
O que me invocava no pôster do moço junto do seu carrinho era aquela coisa pacata e normal que não deixava atrás de si rastro de encanto nenhum. Presença calma, sem dar fé, o homem e seu carrinho eram figuras vulgares, enviscadas na paisagem monótona de dias iluminados e secos, bem característicos do horizonte sem nuvens de Brasília. Catástrofes varriam o mundo, a crise econômica era comentada em cada pão na padaria, mas tudo de ruim o vento soprava para longe, pelo menos enquanto Seu Emílio de Santa Clara não se arredasse do carrinho - pela última vez eu repito - azul debruado de raminhos ingênuos.
Comprar pastel de Santa Clara passou a ser para mim uma ida à igreja. Nunca mais, pela semana, eu tivera coragem de recusar a iguaria. Mesmo se naquele dia eu não estivesse para doces, ainda assim, para mim comer o pastel era uma oração, que às vezes eu rezava sem querer, mas sabendo que tinha de rezar. Quase um presságio, mas bem mais sagrado. Portanto, não casava, tampouco, eu ofertar o petisco a ninguém quando minha inapetência se arvorasse, que era como entregar a outrem, não sei, um agrado que me fosse predestinado. Bem se vê que meus sentidos confundiam-se, e a iguaria, antes de satisfazer o meu paladar, assentara praça entre as minhas mais caras afeições. O espírito suplantara o prazer, sentimento mesmo que experimentamos com essas quitandas feitas em casa, cheirando longe e no final quase sempre imperfeitas, por isso adoradas. Lembro-me agora do que uma professora de culinária me dissera uma vez: o bolo que dá certo oferecemos aos amigos; o que queima no forno escondemos para comer mais tarde, a família reunida para o sacrifício que muitas vezes perdura por dias e dias. Jogar fora o bolo não jogamos, em respeito ao esforço da cozinheira, ingrediente que não vem escrito em papel de nenhuma receita.
Mais um mistério nesta vida! A divindade imperfeita tocando o céu com os dedos. No final, do cheiro desse forno nunca me saíra bolo que prestasse! Eu quase morria de vergonha das visitas, que nem para elas às vezes eu tinha um pedaço de bolo apresentável e palatável. "É caseiro, não é?" - desculpavam-se. Eu respondia afirmativamente, rubra já de desespero. "Que beleza! As coisas caseiras têm mais substância!" - justificavam. Salva do vexame pelos meus bravos heróis, salva do bolo queimado ou solado, ou destemperado, ou horroroso todo. Eu devia, como penitência, repetir a mim mesma, silenciosamente, a verdade do para-isso-é-que-servem-os-amigos. Não, não estariam os comentários deles eivados de falsidade, nem pense. Bastava reparar bem no elogio feito, quase uma justificativa para o fracasso do bolo, não para o meu próprio. Quase a dizer: seu esforço é o que vale, e afinal algo você cozinhou, mesmo imperfeito, mas queremos saboreá-lo como a um manjar dos deuses, porque feito por você. entre mortos e feridos, palmas para nós todos.
Um dia eu imaginara que o carrinho do moço estava era soldado ao chão. Olhei olhei para os pés do carrinho, mas o pastel me veio à boca antes que a cabeça decifrasse a charada, mas, afinal, a indagação não levava a nada mesmo.
Dona Maria assinava aquela poesia comestível. E como anda a patroa? Hoje está um pouco adoentada, anda trabalhando demais, cuida disso, cuida daquilo. Ver Dona Maria eu nunca vira, mas sabia imaginá-la de pele clara - evocação do nome do pastel, devia ser -, delicada de modos, olhos azuis, cabelos grisalhos, um pastel de Santa Clara.
Pois não acredita que Seu Emílio de Santa Clara se pirulitara de repente? E o engraçado é que o mundo continuava a existir bem sem ele, cheio de bons paliativos a uns três ou quatro metros mais abaixo do lugar vazio do carrinho, guloseimas expostas em vitrines bem mais atraentes de mil e cinco confeitarias. E pensar que o Seu Emílio de Santa Clara já tinha sido fotografado por mim um dia, eu que achava bonito aquele carrinho personalizado, estampado de florezinhas entrelaçadas, uma graça de humilde - e quem demonstra tanto capricho só podia fazer um pastelzinho de Santa Clara bem suave e adocicado, como, de fato, era o tal pastel.
Pois um dia fui tomada da falta do Seu Emílio de Santa Clara. Desde quando ele fora embora? Lembrei-me da última vez que eu atravessara aquela rua, empurrada pelo tempo curto que me fazia correr pernas, e, pensando bem... é, ele já não estava ali no seu habitual canto no dia em que tropecei do salto agulha e tombei no meio da alameda, espalhando toda a compraria que eu cometera no mercado de conveniências do posto de gasolina. Mas o mais aterrorizante, o que realmente mais me incomodou, foi: meu Deus, como nunca mais eu me lembrara de rezar o santo ofício culinário à porta do carrinho azul, tão logo a estampa sumira do meu campo de luz? Minha cabeça pesava ante o vazio da resposta. Eu tentava, inutilmente, puxar pela memória algum detalhe, um enfeite qualquer que me apontasse: "e ele já não estava lá naquela hora". Sinceramente, senti-me uma tonta, não fosse pelo sentimento tardio da ausência do moço, fosse por eu não ter dado falta do que ele vendia, ao menos isso - o pastelzinho doce.
Mas, se eu não tinha lembrança de nada, meu corpo saiu na frente e começou a dar seus sinais. Primeiro veio um fundo no estômago - ausência do pastelzinho de recheio de ovos, açucarado por cima, pecado de espartilho, pecadilho. Depois, o mal-estar foi crescendo, crescendo, até o queixo, misto de saudade com angústia, tristeza da ausência do carrinho com o moço atrás, e afinal nunca houvera nenhum sinal de solda no chão onde antes o carrinho permanecera estacionado e aonde eu sempre esquecera de ir, numa qualquer madrugada, voltando para casa por um daqueles atalhos que escolhemos para provar alguma verdade para nós mesmos. Eu senti que todos os mínimos mistérios que eu viera acrescentando ao quadro bucólico de um velho vendendo pastel doce estavam, irremediavelmente, decifrados, e fora o que me dera mais tristeza.
No primeiro dia eu não quis me dar conta da ausência que testemunhei. Mas na semana seguinte, quando às duas da tarde calhou de eu escorregar para o banco na hora do almoço, para pagar umas contas, lancei um olhar distraído ao canto sombreado onde antes havia um moço com seu carrinho de pastéis de Santa Clara. O que vi? O que não vi: um sinal escuro sobre o chão que por tanto tempo resguardara o fato. Minhas pernas me levaram até lá e eu deixei que elas se virassem a seu jeito, não quis imperar sobre seus espasmos. Elas pisaram o chão e se plantaram um bom minuto naquele canto. Até que meus olhos, encandeados por um sol de alumínio, avistaram a banca de revistas lá embaixo, e prontamente conclamaram as pernas a mais algumas passadas.
Eu por mim nem soubesse o que eu buscava. Sentia-me ao jugo de peças desconchavadas que me davam ordens. Por exemplo, nesse instante eu tinha de rumar para a banca porque minhas pernas o exigiam. A banca plantada na esteira da ausência do quadro do Seu Emílio e seus pastéis de carrinho, ou quem sabe? O sol estava tão forte! Quando lá, a primeira coisa que presenciei foi um jornal gotejando sangue - estupro, violência, assalto. Meus olhos não agüentaram, que tudo o que procuravam eram letras rendilhadas de manchetes mais amenas. A banca era escura e, não bastasse, minha boca reclamou um doce. Meus olhos deram o aviso de umas cocadinhas morenas num vidrão de tampa, mas quem falou foi a boca: "Por onde anda o Seu Emílio, o do pastel de Santa Clara?". "Seu Emílio, pelo que eu sei, aposentou-se. Foi para o interior morar numa casa grande e arejada, um antigo sonho dele. Homem de sorte!".
Sem cara de nada, o homem da banca me espetara uma resposta certeira. Adeus, negativa que me serviria de mote para peregrinar atrás de algum mistério! Desta vez não havia adornos, a história me viera oficial e fácil. Tomei tento, sepultei as idéias nas suas devidas covas rasas. Consultei meus olhos e a resposta me veio escanchada no desejo doce de morder uma cocada morena. Concedi-lhes o gosto. Minhas mãos encantaram-se com uma Capricho e cataram da carteira umas notas de bêbado para comprá-la. Saíram dali folheando as páginas, os olhos, finalmente, agradecidos do colorido, o paladar dulcíssimo.
No espaço vazio do carrinho, o sol quebrou um raio mais forte. De agora em diante eu passaria a freqüentar a banca de revistas, mas desta vez sem arvoramentos, eu me fiz a promessa, e segui minha trilha.

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