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Contos-->MARCAS DO PASSADO -- 30/11/2004 - 20:18 (Edmar Guedes Corrêa****) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MARCAS DO PASSADO

O telefonema que recebi deixou-me por demais surpreso. Era um amigo de infância que não via há muitos anos, desde quando eu parti com minha família para São Paulo. Não que eu não tenha retornado a Rosário de Minas nesses últimos trinta anos; aliás, estive por lá a passeio incontável vezes; todavia não tive a oportunidade de encontrá-lo em nenhuma delas. Na verdade, eu nem mesmo me recordava de sua existência. Se ele não tivesse me feito lembrar dos nossos momentos juntos, de nossas aventuras quando ainda éramos dois garotos de onze anos, eu não saberia com quem estava falando.
O que me deixou intrigado não foi seu repentino reaparecimento, mas sim o desejo de me ver com extrema urgência. Tentei arrancar-lhe a causa de minha procura, todavia, ele negou terminantemente adiantar qualquer coisa. Contrariado, dada a sua insistência em me revelar algo, pensei em não atender ao seu pedido. A curiosidade porém tornou-se forte o bastante para me convencer a partir o mais breve possível.
Assim, parti no dia seguinte. A viagem era longa – aproximadamente oito horas de ônibus. E durante o trajeto voltei ao passado em busca de lembranças, de detalhes acerca daquele passado perdido no tempo.
A última imagem que tenho de Ferdinando era a de um garoto muito parecido comigo. Tínhamos quase a mesma estatura e nossa idade poucos meses de diferença. Ele era mais forte, seus cabelos não eram tão lisos quanto os meus e seus olhos eram mais redondos; talvez por causa da sobrancelha, mais grossa e dessa.
A primeira recordação que tive dele foi quando estava em sua casa. Estávamos na cozinha sentados num banco de madeira, ao lado do fogão à lenha, tomando café. Sua mãe, Dona Ednalda, uma senhora alta, de boa aparência, conversava conosco enquanto nos servia o café. Noutro canto, sentada no vão da porta, estava a irmã mais velha de Ferdinando. Era uma mocinha dos seus dezesseis ou dezessete anos. Ainda vejo seus cabelos desgrenhados, seu olhar triste e profundo como que desolado devido àquela vida insignificante e sem perspectiva a que estava condenada no seio daquela família pobre.
Não sei por que, mas a doce lembrança daquela menina permaneceu mais tempo na minha cabeça que a daquele que requisitara inexplicavelmente minha presença. Antes de adormecer no ônibus, perguntei-me o que teria sido daquela menina. Teria ela se transformado numa bela mulher? Ou a vida miserável, a dor, o sofrimento e até mesmo o lugar a havia sugado sua beleza?
Eu não fazia a menor idéia, contudo, assim que chegasse, certamente encontraria respostas para essas e tantas outras perguntas.
Desci em Juiz de Fora e fiquei aguardando o ônibus para Rosário de Minas, o qual só passaria dali à uma hora e quarenta minutos. Aproveitei o intervalo para jogar uma água no rosto e tomar um café bem reforçado, pois não fazia a menor idéia de como seria o resto de meu dia.
Cheguei em Rosário as onze em ponto. Quando desci do ônibus, senti-me perdido, sem saber que rumo tomar. Olhei para um lado e depois para o outro da rua principal tentando me decidi. Por fim acabei resolvendo encarar o problema de frente. Era melhor eu ir direto à casa de Ferdinando e descobrir por que ele queria tanto me ver.
Fui caminhando em direção a sua casa. Lembrava-me vagamente onde ela se localiza, todavia, recordava perfeitamente de sua fachada e tinha quase certeza de que não deveria ter mudado muito nesses trinta anos. Assim, fui descendo pela rua. Enquanto isso, ia fitando a fachada de todas as casas pelas quais passava e fazia um esforço para relembrar quem morava em cada uma delas. Mas era uma lembrança inútil, pois sabia que grande parte delas já havia morrido ou não moravam mais em Rosário. Na verdade, quase nada mais restava para atestar que algum dia eu passei a minha infância naquele lugar; apesar de que, eu tinha muitas lembranças daqueles felizes anos, lembranças que eu teimava em não esquecer.
Não precisei andar muito para reconhecer a casa.
Havia um tom lúgubre, um claro sinal de decadência naquela fachada. As cores haviam quase que desaparecido, as janelas fechadas davam a impressão de local abandonado. E ao ver aquilo, fui tomado de profunda tristeza. Digo tristeza porque fiquei desolado. Imediatamente a sensação de que aquilo não era só externamente abateu sobre meu espírito. Por alguns instantes eu temi entrar naquela casa. Mas já havia chegado até ali, então teria que continuar.
Na lateral havia um velho portão de madeira. Abri-o com dificuldade, pois estava quebrado e era preciso levantá-lo e segurá-lo para que se movesse. Depois segui por um corredor até os fundos da casa. Eu conhecia aquele corredor, todavia o mato tomava conta, aumentando assim o estado de desolação do lugar.
Quando cheguei ao final, bati palmas e gritei.
A seguir apareceu uma senhora que me recebeu e introduziu-me ao interior da residência. Não pude evitar de correr os olhos para os lados. E vi que havia pouca mobília, tudo bem simples. Fiz um esforço para recordar dos objetos, mas só lembrei do banco de madeira e do velho fogão à lenha, abandonado e rachado em vários pontos. No mais tudo me parecia estranho.
Nada porém me causou mais tristeza que o que meus olhos viram em seguida. Ao ser introduzido num amplo quarto, deparei com um ser em estado lastimável estendido na cama. Era-me difícil convencer-me de que aquele homem cadavérico tivesse alguma coisa com a idéia que eu tinha de Ferdinando, quando era um menino. Contudo, sua sobrancelha grande e olhos esbugalhados não deixavam a menor dúvida.
À minha entrada, Ferdinando mexeu-se na cama com dificuldade, e me saudou com um largo sorriso e espichou o braço para me cumprimentar. Vi o quanto lhe era dificultoso fazer aquele simples gesto.
Durante algum tempo trocamos algumas palavras. Naquele instante, parecia-me que a dificuldade em falar se tornara mais aguda do que eu já tinha notado quando ele me ligou. Assim, pude compreender o motivo de sua pressa. Ele estava em estado grava, quase terminal. Só não sabia ainda o motivo pelo qual ele desejava tanto falar comigo. Não obstante, isso seria esclarecido em pouco tempo.
-- Estou com AIDS – disse ele por fim. -- Tenho só mais alguns dias de vida.
-- Qual nada! Você não me parece tão ruim assim! -- quis ser gentil, apesar de ser visível que a doença já o havia consumido.
-- Não há mais nada o que fazer.
Em seguida entrou a mesma senhora que havia me recebido com uma xícara de café numa bandeja.
-- O senhor aceita um cafezinho? -- perguntou ela.
Aceitei-o por delicadeza. Aquela situação me havia tirado a vontade de ingerir algo.
Permanecemos mais algum tempo no quarto. Nesse ínterim, fiquei sabendo que seus pais haviam morrido. Seu pai morrera a pouco mais de dois anos e sua mãe falecera a pouco mais de dois meses. Quanto a irmã, morava no Rio de Janeiro. Tornara-se gerente de uma rede de lojas na capital fluminense e todo final de semana vinha visitar o irmão enfermo. Fato esse que me alegrou, pois cheguei a pensar que aquela senhora, de expressão sofrida e castigada pelo tempo, que me recebera pouco antes era sua irmã.
No meio da conversa, tentei descobrir o motivo que o havia levado a insistir com que eu fizesse uma viagem tão urgente assim. E quando eu toquei no assunto, ele respondeu:
-- Falaremos disso mais tarde. Primeiro: preciso tomar um banho e comer alguma coisa. Você não quer almoçar com a gente? Quase não como nada, mas farei um esforcinho dessa vez. -- disse ele com dificuldade. Via-se que até forças para falar lhe faltavam.
-- Não há problema algum. Vou aproveitar para fazer umas visitas e voltarei dentro de uma hora para almoçarmos.
Ele assentiu e então me retirei. Não queria exigir dele, mais do que era capaz de suportar.
Aproveitei aquele curto espaço de tempo para fazer duas visitas. Assim, quando olhei no relógio e vi que deveriam estar a minha espera, retornei.
Assim que entrei, fui recebido novamente por Marialva – fiquei sabendo o nome dela na primeira visita que fiz. Lá também me contaram que ela era prima dele. -- Ela foi logo dizendo que Ferdinando não estava passando nada bem, mas que no momento havia adormecido. Contudo, ela me convidou a sentar à mesa e almoçar. Disse que não havia necessidade de esperar seu primo acordar, pois certamente ele não ia conseguir ingerir nada por algum tempo.
Bem nem eu havia terminado a refeição quando ouvi tosses no quarto. Marialva correu a socorrer o enfermo e me deixou às sós. Pensei em me levantar e ir dar assistência, mas detive-me ao perceber minha inutilidade. Além do mais não dispunha de intimidade suficiente para invadir seu quarto sem ser convidado. Aproveitei o momento para meditar acerca da existência humana.
Ao final, depois de diversas ponderações, cheguei a conclusão de que a felicidade não passa de uma ilusão e de que a vida é meramente uma tragédia encenada num palco chamado planeta terra. Quando estava para concluir meus pensamentos, fui interrompido por Marialva, dizendo que seu primo queria urgentemente falar comigo.
Ferdinando parecia ter piorado naquele intervalo de tempo. Talvez fosse devido à crise que tivera há pouco. Percebi o quanto lhe foi dificultoso virar para o lado. Sua voz havia se tornado mais fraca e menos compreensível.
Sentei na cadeira diante de sua cama, mas ele me pediu que sentasse na cabeceira da cama e apoiasse sua cabeça no meu colo. Fui prestativo e não recusei seu pedido. Parecia-me que quanto mais ele falava, mais as crises de tosse se tornavam agudas. Em dado momento cheguei a pensar que ele não ia conseguir me dizer o que tanto queria. Mas enfim consegui:
-- Minha mãe só me contou isso antes de morrer. E ele me fez jurar que não ia contar isso para ninguém, mas eu não achei justo morrer com esse segredo. Então decidi te chamar urgente antes que essa doença maldita o levasse comigo para debaixo da terra. -- Ao pronunciar essas palavras, outra crise se apossou dele. A prima veio em socorro e eu principiei a me levantar e me retirar quando ele, usando de todas suas forças, disse: -- Não saia.
-- Ele está piorando muito rápido – disse ela.
Durante alguns minutos permaneci em silêncio. Marialva tentava acalmar o primo para que as tosses cessassem. Mas tudo que ela fazia, apesar de ter alguma experiência no assunto, parecia ser inútil.
Quando ele parecia ter melhorado um pouco, pediu para que a prima se retirasse e então fez a revelação:
-- Teu pai teve um caso com minha mãe e ela acabou ficando grávida. No começo ela ficou em dúvida, mas quando nasci ela teve a certeza: eu era filho de seu amante. Portanto sou teu irmão. Naquela gaveta, trancada de chaves, estão as provas disso.
Em seguida a crise tornou-se mais aguda. Eu não sabia o que fazer. Estava paralisado, aturdido por aquela revelação. Como puderam fazer isso comigo? Privar-me de meu irmão? Agora ele estava ali, quase morto, e eu não podia fazer mais nada por ele.
Aquela agonia, aquele sofrimento durou por longas duas horas. Por alguns momentos ele pronunciou algumas palavras e pediu para se apoiar no meu colo. Obedeci incontinenti. E isso só fez aumentar o aperto em meu coração. Ferdinando sofria profundamente e seu sofrimento, desde o momento em que descobri a verdade, também passou a ser meu sofrimento. Eu preferia nunca ter recebido aquele telefonema. Eu preferia nunca ter sabido a verdade, mas agora tudo havia mudado e eu não podia mais me manter indiferente ao que se passava. Afinal de contas, ele era um pedaço de mim que lutava desesperadamente contra a morte.
Subitamente tudo acabou. Ele parou de tossir, deu um último suspiro e sua cabeça pendeu para o lado. Eu tentei evitar, mas as lágrimas deslizaram pela face. De um instante a outro senti raiva, muita raiva. E não pude evitar em dizer em altos brados:
-- Ó Deus! Por que me fizestes isso?
Foi Marialva quem teve a incumbência de fazer os preparativos para o sepultamento. Eu não estava em condições e não tinha ânimo para pensar em nada.
Não voltei para casa naquele dia, como havia planejado, nem no dia seguinte. Todavia, ao retornar, não era a mesma pessoa; era um homem triste, com um grande vazio no peito; era um homem inconformado com o destino.

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