Eram três e quarenta e cinco da madrugada. Eu estava entrando em casa. Um som melancólico e nostálgico invadia sutilmente minha sala, através da janela aberta. Havia sido uma caçada fracassada... ele chegou à festa acompanhado... acompanhado. Depois do susto, foi mais fácil, ou menos difícil, sei lá, encarar a pseudo-rival pelo espelho do banheiro. Eu sabia que era um jogo em vão, mas não parecia querer desistir, algo ainda precisava acontecer.
A luz do poste, que atrevidamente iluminava a frente do meu apartamento, fazia par com aquela música, naquela que era a mais circunstancial de todas as invasões que eu já sofrera. Deixei meu corpo cair sobre o sofá inflável, o ar expelido por ele refletiu o profundo suspiro de minh’alma. Era mais uma dor, mais perda, mais uma carta fora do baralho... eu estava fora do baralho, a carta, mais uma vez, era eu.
A sonoplastia inundava meu olhar, no fundo de mim uma alma pedia uma chance... alguém tocava um blues... talvez um triste jazz. Alguém que, como eu, se perdera na caçada de um amor escolhido. Sentia a necessidade de ser escolhida pelo menos uma vez. Dentro do meu peito um rancor enorme se formava por esta condição: nunca ser a caça, ocupar sempre o papel de caçadora. Tão faminta, tão gulosa, com tanta fome de um único amor e, no entanto, tropeçando sempre no medo de quem não se queria deixar amar... pelo menos por mim... como ele.
A água começou a correr pelo meu rosto. Puxei para perto de mim a velha e companheira carteira de cigarros importados. Acendi uma ponta, puxei o gosto, traguei o cheiro... permiti-me então viajar na música que permanecia. Alguém insistia em me fazer companhia durante a madrugada.
Enxuguei os olhos, fui tão “Dulcina” que não me permiti nem mesmo borrar o rímel... fui muito infeliz. Deveria ter borrado o meu rosto, manchado o meu corpo, mas fugido da senzala de não ser amada por ninguém, de não ter recíproca.
Acompanhei a luz, caminhei até a janela e trilhei o caminho que ela fazia em sua intrometida visita. Parei com a lua. Olhei ao redor e tudo o quê vi foram prédios vazios de uma cidade que se formava, que crescia. A música, porém, parecia parte de um cenário eterno, expressionista, pintado por qualquer grande nome da minha fantasia. Outro rio se formou do meu olhar. Dessa vez não tive pudor, singularidade ou humildade em me fazer marcar. Escorri pela parede e despejei-me no chão. Já não podia ser tão falsa a ponto de não sentir minha própria dor, minha própria solidão. De não sentir pena de mim.
Da janela do décimo primeiro andar, o trompetista continuava sua canção. Meu desespero fazia par com sua amplidão... e na minha fúria de quem escolhe correr o risco, não o vi na varanda a minha frente. Não reparei ser o trompetista a alma que me abandonara, o corpo que me partira, o homem que buscava para mim.