Saudades do Brasil
Era um começo de noite, no primeiro dia do Matsuri – festa japonesa em que o povo da cidade sai para as ruas vestidos com kimonos e trajes de antigos samurais. Enchem elas de gente alegre que vai para a avenida principal e, junto aos carros alegóricos enfeitados com grandes lanternas que levam sobre eles crianças, pessoas velhas e jovens, batendo no couro de enormes tambores e assoprando sempre a mesma melodia calma e saudosa em suas inúmeras flautas de madeira, ficam circulando em festa – e eu fui até o bar do Nei.
Lá encontrei vários amigos e a conversa que corria entre eles era sobre a folia e a algazarra que pretendiam fazer naquela noite. Assim que me viu um deles já falou:
- E ai Carlão? Chegou na hora certinha, irmão. Estamos nos preparando pra por fogo na avenida e ver a “japonesada” queimar. Você vai junto com a gente, não é?
Quem se dirigiu a mim foi o Germano, um cearence de cabeça chata, baixinho e troncudo, que tinha a mostra, no enorme decote do vestido vermelho e escandaloso que trajava e que com certeza havia emprestado de sua mulher, pois ela costumava usar roupas assim chamativas e deselegantes.
Ele estava sentado em uma banqueta, na ponta do balcão do bar, e o Ronaldinho que era sócio do Nei na casa, aplicava em seu rosto espinhento e feio uma pesada maquiagem, que o deixava horrível e hilário ao mesmo tempo.
- Cala a boca Germano. Espera eu acabar de pintar sua cara e depois você conversa, porra... Assim vai ficar tudo manchado, o Ronaldinho falou com a voz pastosa que tinha depois de acompanhar os fregueses em várias cervejas, como sempre fazia.
- Pinta essa merda da minha cara e não enche o saco, o Germano respondeu pra ele e levou o copo de cerveja, que estava em sua frente, a boca deixando escorrer um filete branco de espuma pelo queixo emplastado com pó de arroz.
O aparelho de vídeo do bar apresentava as imagens de um show do Zeca Pagodinho e das caixas de som saia á música “Deixa a Vida me Levar”, numa altura que dominava todo o ambiente e atravessava as grossas portas de vidro da porta, sendo ouvida pelos japoneses que já passeavam pela avenida.
Pedi uma KIRIN e ao levar a boca o copo da cerveja foi que eu vi a Euza, estendida sobre um dos bancos da última mesa, lá no fundo do bar. Ela tinha a cabeça tombada para fora do banco e sua enorme e bela cabeleira negra se estendia até o chão. Sua perna direita estava esticada em cima do couro marrom e a esquerda estendida fora dele, formando um V que fechava no emaranhado de pelos, também negros, de sua enorme vagina.
Ela estava sem calcinha e esborrachada sobre o banco do bar. Tinha as pernas arreganhadas e de sua boca escorria um fio de saliva gosmenta. Ia ficar ali jogada até passar o porre que tinha tomado, sem que ninguém ligasse, afinal todos os dias era a primeira a tombar e todos já estavam acostumados com ela ali naquele estado.
Peguei minha cerveja e fui até a mesa em que ela estava desmaiada, sentei-me no banco da frente e, depois de tirar papel e caneta de minha bolsa, comecei a escrever sobre aquelas pessoas maravilhosas e da necessidade que eles tinham de festejar, de alguma maneira, o carnaval que á anos era para eles só saudades. Eram um grupo de amigos – de meus amigos – que se reunia todas as noites naquele barzinho brasileiro, ali naquela cidade do interior do Japão, para falar saudosamente das coisas que tinham deixado em sua “Terra Amada” e tomarem um porre para aliviar o cansaço estafante do trabalho escravo que eles faziam todos os dias nas fábricas japonesas.
Todos eram – éramos – escravos do dinheiro que ganhávamos no Japão e que nos libertava da miséria financeira em que vivíamos em nosso país.
Perto da porta do bar eu notei que tinha empilhado um surdo, alguns pandeiros e uma cuíca. Daqui a pouco aqueles meu amigos sairiam ridiculamente travestidos, por uma avenida do Japão, batendo nos couros um samba descompassado e deixando surpresos, abismados e admirados, de sua imensa alegria, aos japoneses que nela estivessem.
As suas almas fantasiariam uma utópica felicidade e transformariam a San/Go/Yon – nome de uma grande avenida na cidade em que vivo no Japão e que em português é 3/5/4 – numa Marques de Sapucaí em seu carnaval solitário e tão fora de época.
Lágrimas enormes rolaram nessa hora de meus olhos e caíram sobre a folha de papel em que eu escrevia. A amassei e sai do bar sem me despedir de ninguém.
Vi que naquela noite nem um porre ia aliviar a dor da saudade que sentia do Brasil e fui para casa tentar dormir, mesmo sabendo que passaria ela em claro.
CARLOS CUNHA
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CARLOS CUNHA/o poeta sem limites
dacunha10@hotmail.com
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