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Contos-->AMIGOS E AMORES -- 02/02/2005 - 23:22 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O vento forte que sopra do sul, trazendo a poeira que se deposita nas suas roupas e nos seus cabelos não deixa você acender o cigarro que aperta entre os lábios. Você risca o isqueiro várias vezes, irritado. Procura uma posição que permita à chama inflamar a ponta desse companheiro que você não hesita em incinerar, enquanto ele, vingativo, destrói sistematicamente seus neurônios e as poucas quimeras que eles tentam guardar.
Praguejando, você decide parar, apesar de estar atrasado, e ocultar-se por trás de uma placa (“Hoje rodisio de peixe”) para, enfim, acender o maldito cigarro. Mania mais idiota essa de fumar antes de chegar ao escritório. Lá também se fuma, que diabo! Mas sabe que precisa fazê-lo. Sentir a fumaça invadindo seus pulmões, numa forma de auto-fragelo masoquista e prazeroso, antes de enfrentar a rotina de telefonemas, reuniões e da angustiante sensação de não pertencer, de apenas fazer. Sem evolução.
Seus cabelos revoluteiam, loucos, ao contato furioso do vento. Não tem problema. Você irá penteá-los na empresa, depois de dar bom dia à secretaria, que irá olhá-lo inexpressiva, distante, sem sexo e sem ilusões. Também irá recompor seu paletó e sua gravata, dançarinos de ritmos diferentes, mas igualmente ensandecidos pelo som do vento.
Você decide apertar o passo. Na maleta, os documentos que serão entregues ao diretor, na reunião de meio-dia com os clientes que a empresa precisa conquistar. As dez laudas meticulosamente digitadas custaram-lhe uma noite de sono, mas você sabe que não conseguiria dormir, de qualquer forma. Ou que dormiria mal. A angústia dolorosa que o oprime, insistente, não cede facilmente ao sono.
Apressado, você volta rapidamente a cabeça quando ouve alguém gritar seu nome. É o jornaleiro. Sem pensar, você coloca a mão no interior do paletó e retira as duas cédulas que entrega ao homem de quepe azul, recebendo os jornais que ele entrega com uma daquelas frases que você nunca ouve. Assim como não percebe os votos cordiais de bom trabalho.
Seus passos voltam a ser céleres. Seus pensamentos concentram-se no que deverá dizer ao diretor quando ele pedir pormenores sobre o projeto e sobre os clientes que a companhia necessita conquistar.
O padeiro o cumprimenta, sorridente, quando você passa defronte às duas portas de correr da pequena padaria. Você não o nota. Assim como não se lembra que está sem café. Lembra-se apenas que “... os dados indicam uma possível elevação no valor das ações de empresas prestadoras de serviços, diante da ausência de um plano oficial de reabsorção de mão-de-obra inativa...”. E segue andando. A ansiedade noturna, ao que parece, decidiu fazer serão diurno. Seu coração acelera. Suas mãos se tornam úmidas. Consciente, você respira fundo, embora saiba que não irá adiantar muito. Suspiros, em você, são apenas sintomas das noites preenchidas por lembranças nem sempre agradáveis, nunca uma forma de fugir de seus fantasmas.
Você já avista a fachada da empresa e, curiosamente, aperta ainda mais os passos, como se temesse dar de cara com o chefe a esperá-lo na porta. Inconscientemente aliviado, você vê o vigia levar a mão ao boné, solitário em seu hábito cortês, num cumprimento mudo que não é correspondido. O elevador com a porta aberta faz com que você corra e comprima ainda mais aqueles seres sem rosto que, ao vê-lo, apertam-se uns contra aos outros, para lhe dar o maior espaço possível. Seu andar. A secretaria não-gente. Sua sala. Alívio.
Suas mãos retiram os papéis da pasta. Seu olhar passa pela persiana entreaberta e pousa na sala defronte. “Não chegou. Ainda bem”. Mais tranqüilo, você ajeita os papéis sobre a mesa, aponta um lápis e afrouxa a gravata. Desistiu de ir ao banheiro, alinhar os cabelos. Acha melhor assumir um ar de trabalhador obcecado. Tristemente verdadeiro.
Nesse instante, o interfone toca. A voz metálica, feita inteira de falta de vida anuncia:
- Dr. Alfredo, um cavalheiro deseja lhe falar. Disse que é um velho amigo seu (será impressão sua ou a voz neo-humana tem um certo tom de surpresa?).

***

O homem se adianta até onde você está, após a porta ser aberta com certa parcimônia pela secretária. A mão estendida praticamente desde a entrada e o cumprimento forte, enérgico, contudo, não conseguem desfazer a impressão de desagrado que perpassa e some dos seus olhos acostumados a fazer e desfazer contratos e acordos.
- Alfredo, meu camarada, como está?
A voz do sujeito é áspera, sonora, combinando com os olhos atentos e inquisidores, de quem está acostumado a mandar e, com grande probalidade, a desmandar.
Por mais que você dê tratos à cachola para identificá-lo, sua mente simplesmente se recusa a encontrar o arquivo no banco de dados de sua memória sobre aquela cara de um riso duro.
O indivíduo parece ter o senso de observação aguçado, pois, ainda rindo, pergunta:
- Não me diga que não se lembra mais de mim?
Como seu rosto deve ser uma resposta suficientemente eloqüente, o indivíduo, que parece ter compulsão por rir sem, aparentemente, achar nada engraçado, acrescenta:
- Sou o José Oliveira, do colegial, lembra? Aquele que segurava vela enquanto você namorava a Soninha. Conseguiu lembrar?
Sim, agora você recorda-se, não sem um certo prazer. Mas um prazer quase diáfano, que nada significa na sua vida atual. Contudo, mostra-se caloroso:
- Rapaz, como você está mudado. Parece bem maior o que eu me lembrava de você.
Você também se lembra que Oliveira não costumava se vestir tão mal e ter caspa no cabelo, mas nada comenta. Apenas tenta alimentar uma conversa em que não vê o menor interesse.
- Mas me fale de você. O que tem feito? Casou-se, tem filhos, etc., etc.?
A cara risonha mostra-se menos expressiva, assim como o tom e a resposta:
- Nada de muito importante. Um negócio aqui, umas bobagens ali. Coisas de homem de meia-idade que não se acertou na vida.
Oliveira parece particularmente pouco propenso a falar sobre o que faz da e na vida. Problema dele, afinal, você pensa.
Você fica calado, mas pensa que, pelo jeito, o número de bobagens tem sido maior do que o de negócios. E que também não o apresentaria como sócio em seu clube social.
Oliveira volta ao riso pouco festivo de antes, cheio de uma curiosidade longeva.
- Você, pelo jeito fez carreira. Diretor-geral de produção. (A voz de Oliveira trai uma admiração evidente). E em termos pessoais? Casou-se?
- Sim, há dez anos. Tenho dois filhos. (Você aponta o retrato da família sobre a escrivaninha).
Oliveira se aproxima do retrato emoldurado, toma-o nas mãos, parece absorto.
- É uma família bonita, termina por dizer. Acho que... acho que eu gostaria de ter uma assim.
O elogio banal toca a veia sensível do seu coração, pois sua família é, para todos os efeitos, seu porto seguro. Não foi à toa, aliás, que fez um seguro de quase um milhão de reais em benefício de sua mulher, caso venha a morrer abruptamente, por qualquer causa.
De certa forma, sua boa vontade para com o visitante inesperado se eleva um pouco.
Mas ele se cala e fica olhando o escritório bem mobiliado, o papel de parede, os móveis. Um silêncio algo constrangedor desce pouco a pouco entre duas pessoas que não se vêem há muito tempo e quase nada têm a dizerem uma a outra.
Você é o primeiro a romper o silêncio, mas hesita no que e como dizer.
- Bem...a gente poderia se ver mais vezes, colocar os assuntos em dia...
Hesita visivelmente antes de propor:
- Por que não aparece lá em casa para almoçar, amanhã?
O convite, se foi meio involuntário, porém, parece ter tido um efeito quase mágico em Oliveira. Seu rosto ficou radiante, como se esperasse por isso, mesmo sem acreditar muito.
- Mas claro! Seria uma honra.
Você rabisca o endereço num papel e entrega ao feliz Oliveira, recebendo em troca, um abraço que o deixa constrangido. Acompanha o visitante até a porta, despede-se e, antes mesmo de chegar novamente a sua escrivaninha, o chefe irrompe pela porta, gritando:
- Espero que finalmente tenha feito aquele maldito relatório.
Você suspira. Seu dia, de fato, começou.

***
Meio-dia. Você está tentando apaziguar uma briga entre os dois filhos, quando a campainha toca, ao mesmo tempo em que se ouve a voz mal-humorada de Márcia.
- Atenda a porta. Deve ser seu amigo.
Ela ficara tremendamente irritada ao saber que você convidara o amigo de ginásio para almoçar pelas seguintes razões:
Ele parecia não ter dinheiro.
Não fazia parte da sociedade.
Ela teria que fazer um almoço especial..
Você, contudo, recebe Oliveira com as honras do ofício, apresentado-o à família e levando-o para a sala de estar, onde os aguardam poltronas e uma garrafa de vinho branco seco que você, como bom anfitrião, sabia necessária.
Márcia, entre uma vistoria na cozinha e uma ida à sala-de-estar não pode deixar de reparar que o sujeito, definitivamente, não estava em seu ambiente. A camisa era azul e a gravata de um vermelho berrante, parcialmente roída por ratos ou qualquer outro bicho de igual quilate. Bom gosto, pelo jeito, não era uma das prendas do convidado. A barba malfeita e o paletó preto completavam a indumentária do tal amigo de infância, formando um todo pouco atraente e um tanto grotesco.
Outro detalhe que não escapou ao crivo feminino de Márcia foi o fato do indivíduo se sentar com certo cuidado na poltrona defronte à mesa de centro, quando a mulher o olhou ironicamente ao perceber que, ao invés de reclinar as costas no espaldar obliquo, o indivíduo mantinha-se ereto, como se estivesse para responder a uma prova oral, no ginásio.
Enfim, era amigo de Alfredo, não do casal e isso para Márcia já era o bastante, pois considera você (claro que sem seu conhecimento), de maneira geral, um tolo quase absoluto. Tanto que ainda não percebera que Márcia saía com um colega de sua repartição há mais de um ano.
Enquanto isso, você e Oliveira, graças às velhas lembranças e, em especial, ao estoque farto de vinho branco, vão estreitando a camaradagem, que passa dos casos pitorescos da juventude de ambos, às reflexões sobre política, economia, emprego e família. Mas, enquanto suas opiniões são abertas e francas, Oliveira é sempre genérico, evasivo.
Veio o almoço e a felicidade trazida pela boa comida. Um pouco mais de palestra amigável e despedidas afetuosas. À saída, Oliveira comunicou baixo a você:
- Posso encontrá-lo amanhã à noite próximo à antiga estação ferroviária? Tenho algo fabuloso para lhe mostrar.
Você estranha o pedido, mas comovido pelo vinho branco aceita-o prontamente e após se despedir do conviva vai dormir o sono dos justos, enquanto Márcia, após esperar você começar a roncar, liga para o amante.

***
Você consulta o relógio a intervalos cada vez menores. O abandono e o escuro da antiga estação ferroviária não são, afinal, de contas, o melhor lugar para relaxar. Também, que idéia mais imbecil essa de se encontrar com Oliveira naquele lugar e naquela hora. Positivamente você devia estar bêbado.
Você já está pensando seriamente em ir embora quando ouve passos leves nos antigos paralelepípedos de pedra que calçam as ruas próximas à estação.
Você se vira e dá de cara com Oliveira, com o mesmo riso sem graça da manhã em que estivera em seu escritório.
- Pô, cara, que negócio tão importante é esse que você tem que me falar para estarmos aqui a esta hora?
Oliveira não responde, mas continua caminhando em sua direção, parando a três metros aproximadamente de onde você está. Ainda sem falar nada, enfia a mão no interior do paletó mal ajambrado e de lá tira uma pistola que você julga ser uma Browling ou 765 série especial, segundo os poucos dados que ficaram na sua memória desde os tempos do serviço militar.
Oliveira, ainda sem falar nada, aponta a arma diretamente para seu peito. Seu espanto é tão grande que você não consegue articular sequer uma palavra. Quando consegue falar, é para indagar, entre espantado e aterrorizado.
- Ei! Que brincadeira é essa Oliveira?
Oliveira, sempre silente, saca do bolso do paletó um cano com pequenos furos no qual você reconhece um silenciador e o rosqueia à ponta da pistola. Só então fala, a voz metálica:
- É simples, meu caro Alfredo. Sua mulher e o amante dela me contrataram para eliminá-lo. Se não me engano sua morte vale quase um milhão de reais. Como descobriram que eu era seu amigo de longa data e também que eu me dedico a, digamos, erradicar problemas em definitivo, viram em mim não só o executor perfeito, mas também uma forma de eliminá-lo de forma a parecer um latrocínio ou coisa parecida. Você não queria descobrir quais os meus negócios? Agora já sabe.
Você se desespera, tenta uma saída aterrorizada:
- Escuta Oliveira, eu tenho mais de 80 mil reais no banco. Eu te dou essa grana de você me deixar viver.
Oliveira apenas ri seu riso sem graça, antes de ironizar.
- Sinto por você, mas esses 80 mil também já fora inclusos no montante que sua mulher pretende arrecadar com sua morte.
Você pensa desesperadamente em alguma coisa, alguma forma de evitar o fim, mas tudo o que ouve é um pequeno estalo, logo seguido de três outros, que ressoam brevemente na viela. Você sente pequenas brasas queimando seu peito, dolorosas e ardentes. Suas pernas parecem de gelatina e seu rosto bate com força no chão de pedras. Um frio que vem de suas vísceras cresce dentro de você, enquanto seus olhos escurecem, mergulhando-o numa escuridão fria, total, que não impede você de ouvir um último som: um risinho sem graça e um murmúrio jocoso:
- Sabe a Soninha? Eu dormi com ela mais de dez vezes.
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