Era uma bela manhã de Sete de Setembro, onde uma multidão se acotovelava em busca das melhores posições, para a grande Parada Militar que se realizaria em poucos minutos.
No palanque oficial estavam os políticos, as autoridades, os militares; suas esposas, com alegres fisionomias e vestidas a rigor. Na platéia os espectadores demonstravam imensa ansiedade. As crianças sentadas nas calçadas brincavam numa inocência angelical; as donas de casa discutiam como se fossem catedráticas em assuntos amplos e inesgotáveis; os idosos gesticulavam entre si ao conversarem sobre o Governo; as cordas isolavam o acesso das pessoas, isolando também o jeito de ser, agir e subsistir.
O dia estava maravilhoso e propício, com o sol já alto e uma temperatura amena. A comissão de abertura caminhava os primeiros passos para o início. Naquele congestionamento todo, encontrava-se uma figura humana totalmente ignorada, andar desordenado, corpo baixo e encurvado, cabelos curtos e maltratados, barbas brancas e longas, mãos calejadas, com aproximadamente 80 anos e, sobretudo, olhar sóbrio e digno. Era simplesmente o Velho Abdala. Ante a tanto protocolo e euforia, esta silhueta passava desapercebida pelos apreciadores de um espetáculo daquela magnitude.
O Velho Abdala também se vestia a rigor para eventos tão convidativos como este. Estava com o velho e único terno preto que havia ganhado do esposo de dona Amélia, por serviços prestados; uma camisa de mangas longas, furada e manchada, ganhada de um conhecido caridoso; os sapatos estavam arranhados e empoeirados da Vila, e como não poderia faltar, uma gravata toda torta, com um nó mal feito no pescoço. Era uma figura tão rara, simplória e muito didática do ponto de vista humano.
O Velho Abdala morava com sua amiga Tainha, uma cadelinha Vira-Lata que ele encontrou quase morta, jogada no lixão da cidade. Esta encara o velho como salvador e a cumplicidade deles é mútua e transcendental. Eles moram numa baixada, num sopé de um morro, onde se localizam várias favelas.
Enfim começou o grande desfile, com os colégios em roupas multicoloridas e fanfarras contagiantes; começou também o Velho Abdala em sua “caçada”. Todos olhavam para o deslumbrante desfile e o Velho Abdala olhava para o monótono chão. De súbito encontrou o primeiro e como brilhava! Bastante satisfeito limpou o achado e colocou-o no bolso do paletó preto. Os sons do desfile ora vinham e ora fugiam e o Velho Abdala encontrou outro, este sim como era grande e bem trabalhado. O desfile continuava e o Velho Abdala procurava outros, até de forma acelerada, pois o tempo transcorria e em breve o desfile se findaria.
Após algumas horas realmente o desfile começava a se desfazer, as multidões se dispersavam e o Velho Abdala sentou-se na calçada, cansado de tanto rastrear o chão com aqueles olhos tão ativos e cativantes. Tainha deitou-se do lado dele compartilhando o prazer daquela árdua tarefa. Deu um suspiro e iniciou a contar e avaliar a natureza e raridade do seu achado. Ele havia conseguido encontrar onze espécimes diferentes, sendo de diversos tamanhos, cores, formatos, tipos,.......
O velho estava contentíssimo pelo seu achado, porém, triste pelo tempo ter sido tão escasso. Outras concentrações como esta se formariam e certamente lá também estaria Tainha e o Velho Abdala com o seu surrado terno preto e terna alma. Quem olhasse no final da alameda veria o corpo pequeno e encurvado do Velho Abdala, logo atrás a companheira Tainha, rumando em direção à ladeira da favela com o achado todo na mão e a contemplar.
Esta figura pode ser encontra em qualquer lugar, com maior ou menor gradação de sensibilidade e enfoque, direcionados pelos supostamente normais e inatingíveis. O Velho Abdala simplesmente tinha um hobby muito especial, era colecionador de botões.