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Contos-->As Ilimitações de Um Hobby -- 05/03/2005 - 22:25 (Luiz César Cruz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AS ILIMITAÇÕES DE UM HOBBY


Era uma bela manhã de Sete de Setembro, onde uma multidão se acotovelava em busca das melhores posições, para a grande Parada Militar que se realizaria em poucos minutos.

No palanque oficial estavam os políticos, as autoridades, os militares; suas esposas, com alegres fisionomias e vestidas a rigor. Na platéia os espectadores demonstravam imensa ansiedade. As crianças sentadas nas calçadas brincavam numa inocência angelical; as donas de casa discutiam como se fossem catedráticas em assuntos amplos e inesgotáveis; os idosos gesticulavam entre si ao conversarem sobre o Governo; as cordas isolavam o acesso das pessoas, isolando também o jeito de ser, agir e subsistir.

O dia estava maravilhoso e propício, com o sol já alto e uma temperatura amena. A comissão de abertura caminhava os primeiros passos para o início. Naquele congestionamento todo, encontrava-se uma figura humana totalmente ignorada, andar desordenado, corpo baixo e encurvado, cabelos curtos e maltratados, barbas brancas e longas, mãos calejadas, com aproximadamente 80 anos e, sobretudo, olhar sóbrio e digno. Era simplesmente o Velho Abdala. Ante a tanto protocolo e euforia, esta silhueta passava desapercebida pelos apreciadores de um espetáculo daquela magnitude.

O Velho Abdala também se vestia a rigor para eventos tão convidativos como este. Estava com o velho e único terno preto que havia ganhado do esposo de dona Amélia, por serviços prestados; uma camisa de mangas longas, furada e manchada, ganhada de um conhecido caridoso; os sapatos estavam arranhados e empoeirados da Vila, e como não poderia faltar, uma gravata toda torta, com um nó mal feito no pescoço. Era uma figura tão rara, simplória e muito didática do ponto de vista humano.

O Velho Abdala morava com sua amiga Tainha, uma cadelinha Vira-Lata que ele encontrou quase morta, jogada no lixão da cidade. Esta encara o velho como salvador e a cumplicidade deles é mútua e transcendental. Eles moram numa baixada, num sopé de um morro, onde se localizam várias favelas.

Enfim começou o grande desfile, com os colégios em roupas multicoloridas e fanfarras contagiantes; começou também o Velho Abdala em sua “caçada”. Todos olhavam para o deslumbrante desfile e o Velho Abdala olhava para o monótono chão. De súbito encontrou o primeiro e como brilhava! Bastante satisfeito limpou o achado e colocou-o no bolso do paletó preto. Os sons do desfile ora vinham e ora fugiam e o Velho Abdala encontrou outro, este sim como era grande e bem trabalhado. O desfile continuava e o Velho Abdala procurava outros, até de forma acelerada, pois o tempo transcorria e em breve o desfile se findaria.

Após algumas horas realmente o desfile começava a se desfazer, as multidões se dispersavam e o Velho Abdala sentou-se na calçada, cansado de tanto rastrear o chão com aqueles olhos tão ativos e cativantes. Tainha deitou-se do lado dele compartilhando o prazer daquela árdua tarefa. Deu um suspiro e iniciou a contar e avaliar a natureza e raridade do seu achado. Ele havia conseguido encontrar onze espécimes diferentes, sendo de diversos tamanhos, cores, formatos, tipos,.......

O velho estava contentíssimo pelo seu achado, porém, triste pelo tempo ter sido tão escasso. Outras concentrações como esta se formariam e certamente lá também estaria Tainha e o Velho Abdala com o seu surrado terno preto e terna alma. Quem olhasse no final da alameda veria o corpo pequeno e encurvado do Velho Abdala, logo atrás a companheira Tainha, rumando em direção à ladeira da favela com o achado todo na mão e a contemplar.

Esta figura pode ser encontra em qualquer lugar, com maior ou menor gradação de sensibilidade e enfoque, direcionados pelos supostamente normais e inatingíveis. O Velho Abdala simplesmente tinha um hobby muito especial, era colecionador de botões.


Luiz César Cruz 30/04/2003
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