O apito do vapor se confundia no ar com o apito do trem de ferro das gerais, lotados de passageiros. Passageiros da embarcação que se atracava no porto e passageiros do Maria-fumaça cortando a ponte também de ferro sobre o rio. Acenos longos com lenços, chapéus, mãos e guardanapos tanto do lado da locomotiva como da gaiola flutuante que fazia manobra para atracar no porto cheio de pedras pontiagudas. Não podia subir mais pela inavegabilidade do rio. Somente cachoeiras e cascatas. As fumaças das máquinas levadas ao vento se intensificavam numa comunicação codificada entre os maquinistas. O verde da estrada e o verde ribeirinho marcavam o cenário entrecortado por várias montanhas rochosas de picos elevados. Lá no alto, bois pastavam pontificando de branco a tela esverdeada-colorida.
O trem na sua engrenagem complicada, produzindo um som característico, cortava o sertão levando sonhos enquanto o vapor desembarcava sonhos. Sonhos depositados em baús de segredos e desejos de meninas sonhadoras, intocadas. Eram tantos olhares no desembarque ribeirinho, tantos olhos nos vagões a cortar cerrados e matas virgens infindáveis.
Paulino, rapaz jovem, especialista em topografia, chegara no vapor e precisava ainda embarcar no trem que demorou pouco na estação. Um grande fazendeiro o esperava para mediar umas terras que seriam vendidas para uma firma de plantio de eucalipto. Paulino tinha pressa, esbarrava num aqui, outra licença ali com empurrões delicados ou não. O trem enrabava a curva e o vapor demorava encostar. Paulino agoniza até que toma uma carona improvisada e alcança a Maria-fumaça. Embarca. Lotada como sardinha, ele reclama enquanto enxuga o suor da testa. Espreme daqui, espreme dali e se acomoda. Alívio ter encontrado um lugar para assentar-se. Fecha os olhos tentando acalmar as batidas do coração acelerado. Abre-os logo apressado, desconfia que alguém o espia. Procura e encontra um olhar fisgado nele. Era o de Graziella, moça tímida com seus dezessete anos aproximadamente. Tinha vergonha de tudo e se escondia em saias compridas e blusas que cobriam todo o corpo esbelto. De uma notável beleza, olhos claros grandes e expressivos, cabelo longo quase selvagem. Dona de um sorriso lindo, pouco exibido. Estava sempre em companhia dos pais e até aquela data nunca havia provado o seu primeiro beijo. Graziella nunca namorara, mas quase sentira a química do desejo sobre o corpo, segredo seu, numa noite solitária de chuva fina. Sentiu pela primeira vez uma sensação de prazer, algo nela havia despertado... Chorou dias, sozinha, pensando ter perdido a tão recomendada virgindade.
Durante a viagem Paulino começou um diálogo de olhares com Graziella. A moça tremia. Conservava a mesma timidez, porém o espírito criara coragem e um desejo enorme de voar para o desconhecido, para o amor que tanto ouvia suas colegas falarem. Paulino desejava-a, já sentia o sabor daquela boca carnuda unida a sua e começou a aproximar-se da família da garota. Horas depois a amizade estava consolidada e uma confiança mútua fora adquirida entre eles. Conversa vai conversa vem descobriram que o pai de Graziella era o comprador das terras e ele o topógrafo enviado para fazer a medição. Foi logo convidado para jantar no vagão-refeitório. Muitos papos e após o jantar a família de Graziella permitiu que ela fosse o par dançante de Paulino recomendando que não se tardassem muito.
Paulino olhava extasiado para Graziella, puxava-a para si e ela se deixava levar. Tudo era novidade e o balanço do trem a incitava. Graziella ruborizava.Trocara a roupa para o baile e o vestido se atrevia no decote. Nuca o havia usado justamente pelo atrevimento do decote, mas naquela viagem era o único que estava à mão. À mão também de Paulino que casualmente roçava o colo delicado. Dançaram com alegria com as pernas tão coladas, sem observar ritmo, errando nas curvas e balanços do trem. A mão dele apertando abaixo das costas a fazia soltar gritinhos e sorrisos ingênuos tornando-os ainda mais provocantes. Esfregavam peitos e coxas, respiros e suspiros. Ele tentava roubar um beijo, mas ela escapava deixando-o louco, excitado.
- Vamos dar uma volta por outros vagões? – convidou Paulino educadamente
- Vamos. - respondeu Graziella sem saber direito o que fazia.
Os dois saíram do “salão” de mãos entrelaçadas. O coração da moça parecia disparar. Foram para um vagão mais calmo e com pouca luz.
- Alguém já lhe disse que você é maravilhosa? Acho que apaixonei-me à primeira vista.
- Assim eu fico pior ainda do que já me sinto – disse sorrindo timidamente.
Sem mais uma palavra ele a segurou de frente e a beijou com sofreguidão. Ela retribuiu e o enlaçou pelo pescoço suado de desejo. Não havia mais nada a que se esperar, estava marcado nas linhas do destino que seria ali, assim mesmo sem jeito e sem futuro. O trem sobe e desce curvas entre as montanhas já conhecidas e o rapaz descobre curvas e penetra labirintos desconhecidos.
Graziella descobriu que jamais seria a mesma, transformara-se em uma linda e feliz borboleta. Acabara de descobrir o quanto é delicioso viajar no balanço da Maria-Fumaça das Gerais.
Juraci de Oliveira Chaves
Pirapora MG 2005
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