Era uma época tão difícil, que nem me atrevo classificá-la como época das vacas magras.
Mas, como sabemos, na vida tudo tem sua compensação daí, ficaram as boas lembranças.
Época em que se tocava Calhambeque e se amava os "Beatles" e "Roling Stones", a personagem deste episódio carinhosamente apelidado de Marretão morava num vilarejo do subúrbio paulistano.
Cabelos longos, calça boca larga, camisa florida gostava de cantar e até se arriscou a compor alguma coisa que ele próprio chamava de música.
Seu porte físico nos lembrava o cantor Sérgio Reys (depois da evacuação freqüente de fezes líquida) - popularmente conhecida por diarréia.
Com os seus 2 metros e mais alguns tantos de altura ele "consertava" carros, e nem sou louco de contar aqui quais eram os tipos carros.
Os moradores do lugarejo eram pessoas humildes, que saiam de madrugada, muitos deles para trabalhar no Brás, Moóca e outros bairros tidos como industriais naquela época, os proprietários de carros eram poucos.
Mão de obra qualificada então, podia esquecer.
Se alguém estivesse com problemas mecânicos no carro ainda que de passagem pelo vilarejo, não teria muita escolha. Era entregar o "possante" nas mãos do quase eficiente Marretão ou ficaria mesmo na mão, ou melhor dizendo, a pé - se bem que na maioria das vezes o resultado obtido não era o esperado, daí fica fácil concluir o porquê do apelido "Marretão".
Sem ferramentas próprias, e com algumas apropriadas - (o pessoal esquecia que havia lhe emprestado, ele por sua vez, fingia que esquecia de devolver) e assim as apropriava com direito a plaquinhas de ativo-imobilizado e tudo mais, além das ferramentas, um macaco velho todo remendado, e desdentado atirado ao chão de terra batida, sem dentes porque macaco mecânico também tem dentes na catraca...
Era assim que Marretão tentava ganhar a vida - exercendo seus poderes "paramecânicos".
Era uma sexta-feira, talvez 13. Após uma longa e interminável batalha entre nosso herói Marretão x Caminhãozinho Ford (não me consta o ano de fabricação nem modelo) ele queria mais era voltar para sua casa tomar uma ducha de balde furado e encher um copão com cachaça.
Depois de muitos trancos e barrancos, finalmente o Fordinho consegue arrastá-lo até seu humilde casebre.
Logo que puxou o freio de estacionamento (era assim que ele chamava tecnicamente o freio de mão) e para que todos da sua rua o presenciasse pilotando aquela maravilhosa máquina, temporariamente sob seus cuidados...
Marretão mete a mão na buzina fanhosa e sofrida pela velha bateria arriada do Fordeco e todo sorridente é avistado pelo irmão que batizaremos carinhosamente de Lucio Flávio (nome bem afrescalhado não acham?) mas sinceramente é a cara dele - quer saber mais?
Para quem não quer pagar Royalties, por uso indevido do nome verdadeiro no texto, até que está de bom tamanho.
Estão curiosos para conhecer o mano Lucio Flávio? - ok, então vamos logo a apresentação:
Meio calvo movimentos lentos, branco encardido, mais amarelo do que papel antigo de recado, magro, acredito até que bem mais magrelo do que a tal Magriça, aquela nossa conhecida.
Lucio Flávio era o tipo do cara "braço curto" pra quem não sabe - é um tratamento de origem italiana atribuída àqueles que não são chegados a nenhum tipo de esforço físico, cá entre nós, muito menos ao esforço mental...
Mas uma coisa ele tinha em comum com seu incansável e batalhador mano Marretão, ambos eram chegados numa cachaça e nem precisava ser da boa.
Lucio Flávio metido a Guru, dizia aos quatro cantos possuir poderes paranormais e como todo guru que se preza também tinha seus seguidores, (se bem que eram meia dúzia de gatos pingados), mas que os seguiam com muito afinco e fervor, talvez até com muito amor e prazer...
Dias antes, Lucio Flávio afirmando ter recebido uma mensagem do além, convocara todos seus gatos pingados... opssss, digo seguidores, para um trabalho muito sério, um ritual a ser executado exclusivamente em mata fechada.
Marretão estava exausto dentro daquela espécie de cozinha e depois de umas boas talagadas de cachaça ele dá dois passos e empurra a porta empenada do seu quarto que também era de Lucio Flávio, e que também servia para os outros irmãos menores quando voltavam da casa da tia Margarida (assim chamada, pois quase todo mundo tem uma tia ou parente com esse nome, portanto, aqui não seria diferente).
Surpreso, vê seu quarto literalmente bombado - sete ou oito pessoas incluindo seu irmão, todos vestidos de branco cada um deles trazendo um coco nas mãos.
Marretão esfregou bem os olhos contra a luz piscante da fétida lamparina e logo percebeu tratar-se de uma reunião (talvez uma preparação para alguma atividade religiosa importante pensou, como já teria visto tantas outras vezes).
Orientados seguramente pelo Guru Lucio Flávio, seus seguidores tentavam enfiar a maior quantidade possível de pólvora nos dois furos que haviam feito em seus respectivos cocos.
Marretão dirigindo-se ao seu irmão com voz de trovão e fúria de vulcão foi logo perguntando:
- Mas o que está acontecendo aqui Lucinho?
- Que fazem todos esses caboclos sentados na minha cama?
- Vieram pra me ajudar numa missão, pois temos um trabalho muito importante a realizar, estamos terminando de encher os cocos com pólvora, depois é só lacrar com algodão e partir.
Precisamos estar na mata antes da meia noite (respondeu temeroso Lucio Flávio) - ele sabia que o pavio do mano Marretão era bem mais curto do que aqueles contidos nos cocos.
Marretão tinha um jeitão todo caipira de se expressar, ríspido, caso ficasse nervoso era preciso mais de duas pessoas para segurá-lo, porém naquela hora, limitou-se a olhar torto para cada um deles, balançou a cabeça negativamente e foi para uma outra parte mais tranqüila da residência, carinhosamente chamada de cozinha.
- "Num vai prestá" - resmungou Marretão.
Catou novamente a garrafa de cachaça levou até a boca enquanto com a outra mão retirava uma panela enegrecida do sofrido fogão a lenha, depois de algumas colheradas de feijão, já se preparava para sair, quando Lucio Flávio o chamou:
- Vi quando chegou com um caminhãozinho!
- Não quer quebrar um galho pro seu irmãozinho? - (até fiz rima)
- Fala logo! - respondeu Marretão irritado.
- Tudo que precisa fazer é levar meu pessoal próximo a mata onde será feito o trabalho, nem precisa ficar nos esperarando, se achar melhor pode voltar, depois a gente se vira, concluiu Lucio Flavio.
Marretão estava numa draga danada cansado e "cachaçado" - mas como sempre de coração aberto...
- Tudo bem, é só vocês empurrá o Fordeco, pra "pegá" no tranco (respondeu Marretão, passando a língua entre os dentes quebrados e semicariados).
Depois dos trancos e de muitos quilômetros rodados, finalmente o pessoal desce do caminhão, cada um mais zeloso do que o outro seguem em fila indiana trazendo seu maravilhoso instrumento de "trabalho" (o coco).
Marretão tenta trancar as portas do caminhão e sem sucesso resolve acompanhá-los, enquanto os discípulos de Lucio Flávio se embrenhavam mata adentro.
Chegando ao local escolhido pelo Guru - eis que é chegada a hora da preparação!
Lucio Flávio logo se arrepia todo parecendo um felino que viu buldogue.
Incorporado por alguma coisa, não sei de que e nem de onde, depois de berrar feito um porco de fazenda em época de final de ano, começa dar ordens com uma voz fina rouca e cavernosa, que mais parecia uma maritaca desafinada...
Sem pedir licença, passa em meio a eles e imediatamente instrue um dos seus homens a fazer um círculo no chão entregando-lhe um pedaço de carvão.
A noite estava um breu - uma luz de vela acesa era insuficiente para quebrar a escuridão.
Marretão agora está tenso, ele sente que o clima fica cada vez mais pesado na mata, observa tudo sempre atento e calado...
Depois de alguns minutos - Círculo desenhado...
Agora um silêncio indescritível que chega apavorar Marretão.
Subitamente a Maritaca, opssss, digo Lucio Flávio solta uma série de gritos estridentes, e depois de se acalmar pede para que cada um se posicione com o seu respectivo coco e os coloquem sob a linha do círculo a 360graus.
Tudo em ordem...
Lucio Flávio volta a baila mais inspirado do que nunca, ele solta a franga como pode, quero dizer volta a repetir seus gritinhos histéricos de maritaca desafinada, faz uns trejeitos, se empolga e fica nessa lengalenga durante uns quinze ou vinte minutos...
- Que fôlego!
Prossegue seu “showzinho” em grande estilo sob os olhares curiosos dos seus agora admiradores, e finalmente quase sem voz ordena para que cada um atinja o centro do círculo, pois é quase meia-noite e já teria recebido uma ordem do além para que os pavios de algodão fossem devidamente acesos.
Marretão esperto que só ele, ainda com um friozinho na nuca resolve sair de cena subindo por um lado da barranqueira em meio a uma touceira de mato tenta se abrigar de alguma possível eventualidade.
Aqui estarei seguro pensa, ao mesmo tempo em que resmunga, "Num vai prestá", mal havia se posicionado e um festival de explosões deixa toda parte da arquibancada, digo, do barranco clareado, parecendo noite de clássico no Morumbi.
Marretão ensurdecido e mais tonto do que habitualmente, percebe que foi atingido por uma lasca de coco que teimosamente insistia em permanecer fincada a sua testa.
Ele sai deslizando pela barranqueira abaixo e depois tenta desesperadamente socorrer "os iniciados” e de alguma maneira calar os gemidos abafados que quebravam o silêncio da mata, naquele misto de fumaça e escuridão.