Tantas coisas acontecendo lá fora, no quintal... O balido da rechonchuda ovelha tira-me o sossego, avisa-me da chegada dos bodes e cabras que foram pastar no lixão. O chimpanzé recolhe os copos em que me serviu limonadas e drinques refrescantes; faz caretas, guincha e ameaça quebrá-los se eu não lhe der o gelo que está em minha boca. Recuso-me, afinal de contas, sou eu o patrão e não aceitarei rebeldias, badernas ou manifestações reivindicatórias de criaturas com QI abaixo do meu, cujos cérebros somente se desenvolveram para não impedir-lhes a sobrevivência; permitem-lhes descascar bananas e quebrar castanhas. Aqui, “o Estado sou eu!” Feito homem, superior aos demais seres que me circundam, por desígnio e obra da Divina Providência.
Enfim, os bodes chegaram e trazem-me presentes repugnantes, um marmitex de podridão e fedor de degenerescência. Moscas varejeiras os escoltam. Peço que fechem a porta. O crepúsculo se aproxima e talvez visitantes indesejados tentem infiltrar-se na casa, hospedando-se sorrateiramente à espera da ceia para qual não foram convidados. É verão, sei que a casa vai transformar-se num forno escaldante, a atmosfera insuportável, mas teremos de suportar se quisermos escapar às picadas noturnas e aos zumbidos incômodos dos insetos xipófagos quando formos dormir. Os bodes prontamente se dirigem até a porta e lutam enfurecidos para decidirem quem irá realizar aquilo que lhes havia ordenado, surdos para as reclamações das cabrinhas sobre como ficará quente aqui dentro e tentam mostrar frenéticas como a maquiagem começa a derreter e seus rostos transformam-se cada vez mais rapidamente em quadros abstratos e de muito mau gosto.
“Calem-se, idiotas!” Rosna o cão estafeta com o jornal entre os dentes. “Desculpe o atraso, chefinho, mas não resisti a um impulso instintivo que me fazia correr e ladrar para os pneus dos carros que passavam em alta velocidade pela rua. Mas agora que todos já voltaram para suas casas, a hora do rush já passou e o trânsito começou a rarear, fui capaz de trazer o jornal para o senhor.” A aparência do jornal colocado aos meus pés pelo cão me repugna e não ouso tocar nele. Pego, mais que imediatamente, um dos pequenos micos que pulam sobre mim na correria para guardarem a louça do almoço pelo rabo, rodo-o no ar e sapeco-o com toda a violência no costado do cão estafeta. O cão gane, o mico guincha, nenhum deles reclama e nem mostra intenção de se desvencilharem de mim. O papagaio recém chegado ao lar, observa tudo atentamente e mostra-se surpreso. “Desculpe, chefinho, se o jornal está todo babado. Não consigo controlar. Nem os lenços de papel que me foram presenteados pela pequena Mia são suficientes para conter essa afluência espumosa, quase efervescente que despenca pela minha boca. Ai, chefinho, o senhor está correto. Eu mereço esta surra. O senhor veja que, por incrível que pareça, dei para perseguir e mordiscar os gatos vagabundos que se alimentam na casa daquela velha que mora aqui do lado. Ela me enxotou a vassouradas, mas não antes de eu ter cravado meus dentes em sua canela magra e amarga. Amanhã talvez eu não apareça por aqui na parte da manhã. Estou preocupado e gostaria muito de procurar um médico para saber o que está acontecendo comigo. Eu trago o atestado e, não se preocupe, o senhor pode me designar para trabalhos e atividades extras que surgirem no decorrer de minha estadia aqui”. Espanto-o com o pé e mando-o deitar mais do que rapidamente, pois ele terá de dormir sem o jantar. “Obrigado, chefinho ¾responde-me ele, submisso¾ Quer que eu traga seus chinelos?” Encaro esta pergunta como uma ousada gozação de sua parte e grito: “Fora, vira-latas vagabundo! Não ouse tocar esta boca espumante em meus lindos chinelos!”
Enquanto isso, os micos que estão na hora de seu intervalo apressam-se em catar, nos pêlos um do outro, os pedaços miúdos do cérebro do pobre colega que servira de porrete e que eu havia trucidado na minha fúria incontrolável.
Todos os dias são iguais nesta Arca de Noé construída para navegar nos rios infernais. O barqueiro cobra um pedágio exorbitante e eu fico pensando: “Como será quando não houverem mais coelhos para alimentar esse barqueiro de merda?” Os coelhos basicamente só estão na casa para servirem de alimento ao velho Caronte, mas, apesar de se reproduzirem com relativa facilidade e rapidez, seu número diminui rapidamente e eu começo a crer que existem ladrões de coelhos nesta casa. Talvez fosse o cão estafeta e seus impulsos incontroláveis, ou talvez os malditos vermes que habitam o subsolo.
Até a presente data a convivência com certos seres misteriosos que surgiam eventualmente durante a madrugada era, não de todo pacífica, mas não me trazia reais problemas no que se refere à nossa tranqüilidade nas sessões de filmes de terror B. Quem não gostava muito era a sempre tensa Mia, a quem o cão estafeta referiu-se ainda há pouco, antes de eu expulsá-lo da sala. Eu sabia que as coisas estavam erradas quando Mia rosnava situada à frente da porta como que para proteger-me de algum intruso violento. Por sugestão de uma franguinha haitiana preparou-se uma espécie de defumador capaz de afastar as influências pestilentas que agora não ousam sequer passar dos limites do terreno.
Foi Mia quem sugerira que não fossem introduzidos muitos gatos em nosso lar. Ela estava a par da existência de um certo ser infernal, de nome Cérbero, o qual, com um único ataque seria capaz de abocanhar três gatos. "O senhor sabe", dizia-me Mia, "Não é por mim e nem pelo cão estafeta. Nós já nos acostumamos à presença dos gatos. Apesar de não serem, assim, modelos de simpatia, não nos causariam nenhum mal e não seríamos nós quem iria morder os traseiros daqueles animais. Mas, talvez, eles ficassem um pouco sobressaltados e poderiam botar tudo a perder com sua agitação."
Concordei, afinal de contas Mia sempre me apresentava argumentos razoáveis e que visavam manter a ordem entre nós. E mais do que qualquer outro, ela já há muito me acompanhava todas as vezes em que resolvíamos fazer a travessia.
"Talvez apenas um dos gatos pudesse permanecer." Pensei em voz alta.
"Qual deles?" Perguntou-me Mia e completou: "E por que?"
"Você há de compreender, pequena Mia, que a presença daquelas ratazanas que se escondem no porão é indispensável se nós quisermos que elas mijem na comida armazenada e que será destinada a você sabe quem. Um gato, pelo menos, iria tirá-las de sua letargia e as faria espalhar o mijo por toda a parte."
"Tem razão, chefe. Acho que um único gato não faria nenhum mal."
"Assim seja!" Bradei com todo o ar e fumaça de cigarro contidos em meus pulmões. E os gatos, a exceção de um, foram expulsos sem demora.