“Há certas coisas que não há como falar.
Certas coisas não existem. Elas acontecem,
mas fazem parte de um sonho. A gente faz
questão de esquecer. Então é melhor
acreditar que seja um sonho.”
John Heatwood
Trabalho como auxiliar de escritório numa grande cidade. Minha rotina é absolutamente banal, igual a milhares de outras. Acordo às 5 horas da manhã, vou ao banheiro e me visto para o trabalho. Na cozinha faço uma pequena refeição: café com pão. Meu apartamento é pequeno, o aluguel é barato, dá para me virar. O que sobra, mando para os meus pais no interior.
Vou ao trabalho de ônibus. Já trabalhei em vários lugares. Me lembro de um ao qual demorava duas horas só para chegar. Trabalhei muitos anos no centro, no escritório de uma rede de super-mercados. Entrava às 8 horas. Meu trabalho consistia em classificar notas fiscais por tipos de contas, para serem depois lançadas no computador. Passava o dia inteiro nesses afazeres. Na hora do almoço, eu ia ao botequim do lado para fazer uma pequena refeição. À noite, frequentava o meu curso de computação. Quem quer vencer, tem que pagar.
Um dia, fui despedido. Compraram um programa de computador que fazia o que eu fazia e fui posto para fora. Traído pela tecnologia. Passei dois meses desempregado até que fui contratado para uma grande distribuidora de carne para hamburguer. O trabalho era o mesmo que o anterior: classificar notas fiscais por tipos de contas.
Meu novo ambiente de trabalho é muito agradável. Além disso, tem a Rozilda, que trabalha comigo e parece ser muito séria. Ela não é bonita mas sua companhia é agradável. O patrão é um homem generoso e me paga um pouco mais que o anterior. Além disso, permite que merendemos na cantina do escritório, pagando com vales para o fim do mês. A sala do patrão fica diante do nosso local de trabalho e eu fico muito satisfeito de poder cumprimentar aquele homem tão poderoso todo dia.
Hoje de tarde eu tive uma dor de barriga terrível. Fui ao banheiro por volta das dezessete horas e lá permaneci por quase duas horas. Quando me senti melhor, me limpei e saí. O escritório estava fechado. Todas as luzes estavam apagadas, exceto a da sala do chefe. Fui à minha mesa recolher minhas coisas. Como a porta da sala do chefe estava entreaberta, não pude deixar de escutar o que ele falava ao telefone. Era alguma coisa acerca de uma entrega ilegal, que deveria ser feita num dos armazéns da distribuidora. Peguei minhas coisas e fui embora.
Ao chegar no cursinho, contei o ocorrido a um amigo meu, o Procópio. Ele ficou intrigado e curioso e sugeriu que fóssemos dar uma olhadinha. Não sei porque eu aceitei. Agora, me arrependo. Mas, de qualquer forma, eu fui. Ao chegar no local da entrega ilegal, escondemo-nos atrás de um camburão de lixo e ficamos a observar. Vimos quando o carro do chefe chegou e entrou no armazém. Depois, começaram a chegar carros frigoríficos que se amontoaram em fila diante do portão principal. Lá dentro, uma máquina rugia. Eu acho que era uma moedora de carne.
Excitados pela curiosidade, resolvemos nos aproximar de um dos carros frigoríficos. Cuidando para que não nos vissem, nos esgueiramos furtivamente pelas sombras. Ao chegar na porta traseira do último carro, resolvemos abri-la. A cena que vi foi inacreditável: crianças, rapazes, homens e mulheres, mortos e esfolados, pendurados feito gado. Procópio soltou um grito e saímos correndo. Comecei a ouvir tiros passando rente a mim e vi Procópio cair com uma bala na perna.
Agora estou em casa. Não sei o que fazer. Não vejo outra alternativa a não ser escrever o que me aconteceu. A polícia pode não acreditar em mim e, além disso, posso perder meu emprego. Estou com fome. Penso em comer um hamburguer mas, depois de tudo o que vi, é melhor não. Será que vão torturar o Procópio? Será que vão me descobrir? Ouço um barulho lá fora. Alguém vem entrando...
P.S. Esta carta foi encontrada por um catador de lixo no aterro sanitário da cidade e entregue a um repórter que fazia uma matéria no local. Este, por motivos óbvios, prefere não se identificar mas adverte: cuidado com hambúrgueres!