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Contos-->O BODE BOLERO -- 02/09/2005 - 13:42 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Este conto faz parte da série "Menina da Chácara" composta por 23 episódios. Neles conto parte da minha infância passada na chácara do meu pai, às márgens do Rio Araguaia, em Aragarças, fronteira com Barra do Garças, Mato Grosso. As pessoas citadas nos episódios são todas reais. Evidentemente, alguns nomes forma mudados para preservar a privacidade das pessoas. Chamo a atenção para o modo como meu irmão caçula me tratava: "moço". A razão é explicada no primeiro episódio, "A Charrete". No início, escrevi para meu filho e meus sobrinhos, que gostavam de ouvir o relato das minhas aventuras com o gato "Paizinho". Mais tarde, algumas pessoas leram e me incentivaram a publicá-los.


















“O BODE BOLERO“




Dos animais existentes na chácara um, em especial, era motivo de freqüentes correrias e preocupações para Menina. O velho bode que, segundo a garota, era a criatura mais feia do mundo. A imagem do capeta. De fato, a semelhança com o diabo que Siá Doninha descrevera para os netos, fazia com que a garota o respeitasse e o quisesse bem longe dela. O bode, mais alto do que qualquer outro do rebanho, era preto, possuía chifres grandes e pontudos, os olhos ameaçadores cobertos por longos cílios grisalhos. Tinha o cavanhaque espesso e longo, também grisalho, que lhe conferia um ar realmente satânico. Seu comportamento também era feio como ele.





Menina tinha a impressão de que o bode sempre existira e não se recordava quando ele havia chegado à chácara. O bode era o rei da criação de caprinos. Quase todos os cabritos do cercado eram seus filhos. Ela ainda não sabia contar além dos dedos dos pés e das mãos e, seguramente, a família do bode ultrapassava o número de seus dedos. O rebanho era mantido dentro do cercado. Só saia quando era levado para a pastagem. Livre, comeria toda a horta e as outras plantações. Menina respeitava os domínios do bode, isto é, não se aproximava muito do cercado dele. A recíproca, porém, não era verdadeira. Ao menor descuido de alguém, ele escapava. Quando isto acontecia, a garota era a primeira a ser ameaçada, pelo fato de estar quase sempre em volta da casa.


Maior do que a ameaça de levar uma chifrada, era o pavor que Menina sentia da cara dele. Pavor igual, só sentira num dia de carnaval, quando seus pais a levaram para assistir ao desfile do bloco de Zé Pereira, em Aragarças. Ela e Zico nunca haviam visto nada tão terrível. Homens usavam máscaras gigantescas, de diabos e monstros. Dançavam e cantavam pela rua, apavorando as crianças que choravam e tentavam se esconder atrás dos pais. Diante do desespero dela e do irmão, Josefa tentou acalmá-los. Contou que aquelas máscaras haviam sido feitas por La Fuente, o tio deles. Não precisavam ter receio de nada. Eles se acalmaram um pouco.




Porém, naquela noite Menina teve pesadelos horríveis. O bode aparecia comandando o bloco de homens que usavam as máscaras. Juntos, tentavam agarrá-la. Todo esse pavor tinha um motivo. Para mantê-los sob controle, os pais e principalmente a avó, contavam que o diabo se apresentava às pessoas na forma de bode. Diziam que, na maioria das vezes, ele se apresentava em forma de gente. Nessas ocasiões, porém, conservava os pés de bode. Era um método de educar, bem pouco ortodoxo, mas era assim mesmo que faziam. Às crianças, só restava acreditarem na palavra dos adultos.

Siá Doninha vivia rezando e fazendo todos rezarem. Menina se perguntava: será que vovó reza por medo do bode? A verdade é que por qualquer coisa que não a agradava, a avó dizia logo: “cuidado com o bode preto!”. Ele era realmente perigoso.



Certa vez o bode escapou misteriosamente do cercado e investiu raivoso contra Siá Doninha e Zico. Eles estavam no pátio da casa. Para evitar que o neto fosse atingido pelas chifradas, ela o protegeu com o próprio corpo. Foi chifrada na barriga e nas costelas. Felizmente, Antonio chegou a tempo de salvá-la e a Zico. O rapaz conseguiu dominar o bicho e levá-lo para o cercado.

Era impossível não ter medo dele. Mas muitas vezes, Menina se esquecia do bode e caia em tentação, fazendo suas artes.

Num domingo, logo após o almoço, como de costume, a avó serviu goiabada e frutas de sobremesa. Menina teria ficado satisfeita, não fosse a atitude estranha da avó. Ela serviu todo mundo e, em seguida, levou a lata de doce pra cozinha. Por que ela fez isto? Perguntou-se. Seria melhor verificar. O costume na casa, era deixar o doce enquanto alguém estivesse à mesa. Pensando assim, levantou-se, foi até à cozinha e chegou a tempo de ver Siá Doninha guardar a lata de doce na parte mais alta do armário. Retirou-se sem ser vista pela avó. Algumas pessoas foram pra varanda, outras foram tirar um cochilo. Menina ficou à espreita. Quando Maria terminasse de arrumar a cozinha ela iria descobrir a razão daquele doce ter sido escondido.





Maria terminou o trabalho, pegou um vestido de domingo e foi para o rio banhar-se. Era a hora esperada pela garota. Encostando uma cadeira no armário ela subiu. Sua altura, no entanto, não permitia alcançar a última prateleira. Daí decidiu escalar as prateleiras. Subiu até a terceira e estendeu o braço para pegar a lata. Ao tocá-la, sentiu o dedo ser espetado na borda da lata. Puxou a mão com força. A lata veio junta e caiu se abrindo no chão. A prateleira não resistiu ao peso dela e cedeu. Menina caiu, arrastando com ela alguns utensílios de cozinha. O barulho foi enorme. Até quem estava na varanda ouviu. Vieram todos correndo. Menina estava caída com a testa dentro da lata de goiabada. Liviva ajudou-a levantar-se. Sofrera um corte que lhe valeria uma pequena falha, para sempre, na sobrancelha esquerda. A avó, ao vê-la ferida, exclamou:




_ Bem feito! Quem mandou agir dessa maneira? Se você estava querendo mais doce por que não pediu?

_ Eu não queria mais doce. Eu só queria ver porque a senhora escondeu a lata lá no alto.

_Eu botei lá por causa das formigas, sua intrometida! Está satisfeita agora? Ainda por cima vai dar trabalho pra alguém que terá de levá-la ao hospital.


Depois do bode e do capeta, a coisa mais temida por Menina era hospital e injeções. Agora sua avó dizia que ela iria ao hospital. Só lhe restava chorar muito. Antônio, seu tio querido, a levou ao hospital. Levou três pontos no corte. Ao retornar, à tardinha, Siá Doninha não perdeu tempo. Para amedrontá-la, perguntou ao filho se ele não tinha visto um bode preto perto da cancela da chácara. Menina agarrou-se ao tio e se pôs a chorar novamente. O rapaz, vendo a intenção da mãe, apressou-se em dizer que não vira coisa alguma.

Naquela noite, Menina sonhou com o bode e seus filhos. Todos eles eram capetinhas. Acordou aos gritos e foi socorrida pela mãe que a levou para sua cama.





Coincidência ou não, na manhã seguinte, quando todos haviam saído para o trabalho, o sol já estava na altura das dez horas e Siá Doninha retornava da plantação de melancias, viu o que não queria. A roupa que ela deixara no quarador estava sendo devorada pelo bode. Aflita, pegou uma vara e correu para salvar as peças do apetite dele. Menina que estava proibida pelo médico de tomar sol, por causa dos pontos no corte, ouviu os gritos da avó. Lá no quarto, onde brincava com Zico e sua manada de bois de rabada, os gritos chegavam furiosos. Os dois correram pra janela da cozinha. Viram a avó tentando tirar uma peça de roupa da boca do bode, mas o animal insistia em mastigá-la. Maria procurava ajudá-la empurrando o bode pra direção do cercado. Quando a avó conseguiu finalmente resgatar a peça, essa já estava irremediavelmente perdida. Siá Doninha ficou tão enfurecida que bateu com a vara, diversas vezes, nas costas do bode. Menina olhou para o irmão e comentou:

_ Ontem a vovó me fez tanto medo com o bode preto e agora ele veio atentá-la.

Finalmente Maria conseguiu devolver o bode para o cercado e voltou logo pra perto de Siá Doninha que continuava a verificar, quantas, e de quem eram as peças mastigadas. Tudo indicava que a maior prejudicada fora a tia Regina, a filha mais nova da avó. A tia era uma pessoa que não se aproximava dos pequenos. Menina, por sua vez, não ligava pra ela. Assim permaneceu indiferente enquanto a avó exclamava indignada:

_ Olha só o que esse maldito bode fez! Comeu um lado da saia de tafetá de minha filha. Oh! Meu Deus! Veja, comeu também uma combinação. E esse? O que é esse bolo que nós tiramos da boca desse infeliz?

_Maria aproximou-se, pegou os farrapos da mão de Siá Doninha, examinou bem e concluiu;

_ Esse é bein o bolero de siá Regina, que ela bota cum o vistido de arça.



Menina ficou imaginando a tia com o vestido de alças, sem o bolero. Ficaria parecendo uma garça, pensou. Regina, embora fosse mocinha e bem magra, tinha seios muito grandes, tanto que os irmãos a apelidaram de “Peituda da Mata”. A garota, ao vê-la caminhando, tinha a impressão de que a cada passo a tia fosse tombar pra frente; era mesmo parecida com uma garça.



Sem parar de resmungar, Siá Doninha recolheu as peças danificadas, enxaguou-as todas e deixou-as no varal pra secarem. Menina observava cada passo da avó. Que será que ela pretendia fazer
com as roupas mastigadas? E os dois lençóis furados? Agora só serviriam pra brincar de fantasma. Mas olhando bem, nem pra isto serviriam, os buracos eram muito grandes. Zico, que estivera calado até aquele momento, perguntou à irmã:

_ Moço, o que é bolero?

_ Bolero é uma blusa curta que parece asa de pato e que as mulheres usam. E é música também.

_ Então o bodão vai virar mulher? Ele comeu roupa de mulher...

_Não sei. Acho que não. Ele comeu lençol, comeu toalha de rosto e não vai virar nada disso! Só vai ficar entupido...

_ Entupido, como?


_Entupido é quando não faz mais cocô. Ele não vai mais fazer aqueles caroços de azeitonas que ele solta por aí. A barriga dele vai crescer, crescer... Vai estourar. Aí ele morre e não corre mais atrás de mim.

_Nem de mim. Então eu vou poder brincar com os cabritos lá no cercado...


_Aqueles cabritos também têm chifres. Sabia que eu sonhei que o bode e os cabritos estavam virando diabos na minha frente?



_ Você ficou com muito medo deles, moço? Mas os cabritos são pequenos, não têm chifres ainda.

_É, mas tem diabos pequenos também, sabia? Mas eu não quero falar mais disso, pra não sonhar de novo.

_ Então vamos voltar pra brincar com os meus bois.

Na hora do almoço as duas crianças tinham muito que contar. A façanha do bode foi contada com detalhes e muito humor. Menina imitava Siá Doninha e seu desespero ao ver o bolero da filha destruído. Antônio ouvia divertido e sugeriu às crianças batizarem o bode, dando-lhe um nome. Zico se interessou e quis saber que nome o tio daria. Só pode ser “Bolero” - respondeu o rapaz.

_ E como é que a gente faz para batizar aquele bodão? - indagou Menina.

_ Batizar é só modo de dizer. Desde que ele recebe um nome, ele já está batizado. Mas se vocês quiserem, vamos depois do almoço lá no curral batizá-lo, vocês querem?

_ Queremos sim, queremos sim - respondeu Zico.

Mal terminaram de comer os garotos já estavam ao lado do tio, puxando-o pela camisa. Antônio acompanhou-os, levando com ele um copo cheio de água. Ao chegarem ao cercado do bode, encontraram-no sentado sobre as quatro pernas. Como sempre, mastigava um chiclete imaginário. Menina detestava o cacoete do bode.

_ E agora tio? Como é que o senhor vai batizar o bode?

_ É simples - respondeu o rapaz. - Prestem atenção ao que eu vou fazer.



O bode permanecia sentado e indiferente. Antônio levantou o copo de água, jogou um tanto na cabeça do animal e falou: “eu te batizo e pelo nome de Bolero serás conhecido para sempre”. O restante da água foi lançada sobre as costas de Bolero que se levantou e veio lamber a mão do rapaz, apoiada na cerca. As crianças riram e até acharam que ele já não era tão feioso como antes. A partir desse dia, Bolero não foi mais chamado apenas de “bode”.

O batismo, contudo, não melhorou o comportamento de Bolero. Sempre que ele se via em liberdade, aprontava as maiores confusões. Bolero mastigava tudo o que surgisse à sua frente. Era o flagelo de Siá Doninha, que, além da horta, devia vigiá-lo para que não alcançasse a plantação de melancias. E foi justamente o melancial que recebeu a indesejável visita. Não se sabe como, o bode escapava do cercado. Siá Doninha afirmava que ele tinha “parte com o diabo”. Na verdade, o que ele tinha era a habilidade natural dos caprinos, de escalar qualquer obstáculo e pular pra fora.

Foi assim que ele fez quando escapou para a preciosa plantação de melancias. Siá Doninha quase desmaiou ao deparar-se com o quadro de destruição. Sua bela plantação estava sendo devorada.

Bolero banqueteava-se não só com os pequenos frutos, como também com os ramos das plantas. Como se não bastasse, suas grandes patas pisoteavam tudo, os ramos, as flores e os frutos que estavam nascendo. Sem ter o que usar para enxotar o animal, Siá Doninha serviu-se de um balde velho, com o qual batia com raiva na cabeça e nas costas de Bolero. Seus gritos foram ouvidos da casa. Josefa e Maria correram para ajudá-la. De posse de vassouras e uma corda, as duas alcançaram a mulher, na perseguição ao bode pela plantação. Os estragos eram visíveis. Era uma judiação! Melancias pisoteadas espalhavam-se pelo terreno.

Menina e Zico foram atraídos pelos gritos das mulheres. Vieram correndo pra ver o que se passava. A cena foi assistida pelos dois, de cima dos galhos de uma goiabeira. Ali estariam a salvo das chifradas de Bolero. Entre divertidos e medrosos, eles viram as três correndo atrás de Bolero, tentando pegá-lo. Josefa, armada com a vassoura, procurava cercá-lo. Maria, além da vassoura, tentava laçá-lo com uma corda. Siá Doninha, com o balde fechava o cerco. Sentindo-se encurralado, ele tentou escapar, foi na direção da avó dos garotos. Como um miúra na arena, Bolero levantou a cabeça, ciscou o chão com as patas dianteiras, mirou o alvo e avançou abaixando os chifres ameaçadores. Siá Doninha foi rápida, levantou o balde enferrujado na altura dos chifres do animal, corrigiu a postura do corpo e esperou firme. Quando Bolero investiu, ela desviou subitamente o corpo e com as duas mãos enfiou o balde na cabeça do bode. O impacto foi tão forte que os chifres saíram pelo fundo do velho balde. Foi um movimento belíssimo. Uma tourada de bode! Os pequenos assistiram empolgados a ação da avó. Era uma pena acabar ali.




Com o balde enganchado nos chifres, Bolero só podia ver as próprias patas, assim mesmo, só as da frente. Não lhe restou alternativa senão parar. Maria aproximou-se e com a corda que trouxera, amarrou no pescoço dele. Sem tirar-lhe o balde da cabeça, ela começou puxá-lo para fora da plantação. Todas estavam arfantes pela correria. Siá Doninha enxugou o rosto com o pano branco que portava sobre os ombros e acompanhou Maria. Josefa vinha logo atrás e lamentava o estrago causado pelo bode. Bolero, que já não era simpático, agora estava ridículo com o balde enferrujado na cabeça. Maria o puxava com esforço. Ele ainda resistia em voltar para o cercado. Siá Doninha

reclamava os prejuízos que tivera e ameaçava dar fim em Bolero. Ao chegarem ao cercado dos bodes Maria abriu o portão e o empurrou pra junto dos outros animais. Por vingança, não tirou balde da cabeça dele. Ao fechar o portão, gritou pra ele como se o animal pudesse entendê-la:

_ Ocê agora vai ficá ansim inté aprendê, mardito! Ocê cumeu as melencia quais tudo. Agora fica aí nu mei de suas muié e de seus fio, sem pudê oiá pra eles.

Josefa e Siá Doninha assistiram o sermão de Maria e acharam que ela fizera bem em deixar o balde na cabeça do animal. Mais tarde, quando os homens da casa retornassem, um deles o tiraria dali. Bolero estava merecendo um castigo, um dia inteiro impedido de olhar para os lados não lhe faria mal nenhum.

Na discussão sobre o assunto, naquela noite, os adultos chegaram à conclusão de que o Bode estava ficando inconveniente e até perigoso. Decidiram que ele devia ser vendido. Sua função como reprodutor estava cumprida. Só na chácara havia mais de quarenta cabritos, todos seus filhos. Alguns deles fugiram para a mata e se tornaram selvagens. No lugar de Bolero, assumiria o posto, seu filho Big, que era alto e gordo como o pai, mas com uma vantagem; não era feio. Ele tinha o corpo quase todo branco e sua cara era bem simpática. As crianças gostavam dele e até montavam em suas costas.




Bolero foi vendido para um criador de bodes. Menina não quis vê-lo na hora da partida. Ainda tinha medo de sua figura. A família inteira foi pra varanda despedir-se dele. De seu quarto, onde brincava com o gato Paizinho, ela ficou pensando que eles estavam lá fora só para terem a certeza de que o bode ia embora de verdade.











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