Apaixonou-se pela mulher madura. Sonhava com o rosto sofrida, os cabelos crespos, os braços roliços, o andar meio saltitante, as pernas grossas, a voz sumida de quem vive com medo das acontecências da vida.
Tinha dezoito anos, estava, como se diz, na flor da idade, poderia namorar tantas garotas da sua idade, mas, caprichosamente, seu coração fora aprisionado pela mulher madura, ainda por cima, casada, mãe de dois filhos...Não sabia explicar aquela armadilha amorosa em que se metera.
Trabalhava na quitanda do Sr. Raimundo e fora encarregado de entregar umas comprar que ela fizera lá.
Bateu à porta, timidamente.
Ela veio com aquele semblante triste, os olhos esverdeados num tom de verde bem esmaecido, aquele rosto muito alvo, a boca pequena, os lábios carnudos, os dentes muito alvos:
- Boa tarde, senhora, as suas compras.
- Por favor, coloque-as ali na área de serviço. Obrigada.
Ofereceu-lhe uma moeda. Recusou, polidamente:
- Senhora, muito grato, mas eu ganho para fazer o meu serviço. De qualquer forma, é muita gentileza.
Ela não insistiu, apenas, sorriu para ele. Foi o bastante. Aquele rosto triste esboçando um sorriso fez toda a diferença, ficou retido na sua memória e dali, rapipdamente, ganhou o rumo direto do coração.
Passou a noite inquieto. Não conseguia dormir direito. Mexia-se na cama, agitado, tendo pesadelos: "...escalava o muro da casa do Linhares, sorrateiramente. Linhares trabalhava à noite, na compensação do Banco. O quarto estava com a porta aberta e ela, deitada de bruços, esperava por ele impacientemente...abriu os braços, mas não eram braços humanos, eram patas de animal com cascos e estranhamente dotadas de garras um pouco acima dos cascos, dando uma aspecto grotesco àquela visão..." acordou aflito, desencantado, com um misto de decepção e de pavor.
No outro dia, foi trabalhar acometido de dores no corpo e de um certo torpor.
Sr. Raimundo notou-lhe as olheiras e os olhos injetados:
- Que aconteceu, rapaz? Viu assombração?
Será que ele está lendo os meus pensamentos? Imaginou, entou o Sr. Raimundo penetrando nos seus sonhos, vasculhando sua alma.
Pigarreou e soltou uma resposta mentirosa:
- Não, estou com alergia. A garganta me doi. Passei a noite quase toda sem dormir.
Na noite seguinte, outra vez, o sono veio agitado. Novos pesadelos. A figura daquela mulher madura não lhe saía da mente: "...escalou o muro outra vez, mas o cachorro do Linhares começou a latir forte. Luzes acenderam na vizinhança. Ouviram-se vozes: deve ser um ladrão da casa do Linhares! Chamem a polícia! Coitada da D. Mirtes, sozinha em casa com os dois pequenos... Escondeu-se atrás da coluna do alpendre. O coração batia forte. Quando tudo se acalmou, procurou o quarto. Ela estava em pé, junto à cômoda, os cabelos soltos, desgrenhados, os olhos pareciam duas tochas de fogo esverdeado que vinham direto ao seu coração, queimando-lhe as entranhas...gritou de dor".
A mãe acordou no quarto ao lado, correu para acudir o filho.
- Que é, filho? Algum problema. Está sentindo alguma dor?
Olhou-a com espanto:
-Eu disse alguma coisa? Falei o nome der alguém?
- Não, meu filho, sua voz estava ininteligível, você apenas emitiu sons que a gente não podia entender.
Ficou aliviado por ter revelado seu segredo. A mãe, muito católica, vivia falando dos pecados capitais: Não desejar a mulher alheia.
E os dias foram passando, mas a paixão só fazia crescer.
Estava quase alucinado. Não podia olhar para nada que não visse o rosto dela com aquele sorriso único.
Noitges seguidas ficava murmurando baixinho: Mirtes, Mirtes, Mirtes, Mirtes...e ficava tremendo de desejo, queria abraçá-la, apertar-lhe os braços roliços, beijar os lábios carnudos, ver o corpo inteiro que os vestidos caseiros encobriam.
Linhares passava pela algumas vezes pela quitanda para comprar cigarros ou tomar uma dose de cachaça, antes de ir para o trabalho. Olhava para os braços dele, invejava-o.
-Toma, garoto, fica com o trôco.
E ficava imaginando: se ele soubesse, além de querer me agredir, logicamente, não me daria gorjeta alguma.
Mas, so que parece, as grandes paixões, certas vezes, produzem uma energia que consegue sobrepujar a couraça com que as escondemos, a redoma de vidro onde nós as colocamos e, de algum modo, chegam até o espírito da pessoa a quem devotamos tanto sentimento desenfreado.
Mirtes, na solidão das noites que passava sem o marido, retorcia-se no leito, procurava um jeito melhor para dormir e não conseguia. Certa noite, estando fora o Linhares, sonhou que o garoto da Quitanda escalava o muro e vinha até seu quarto que, de propósito, depois de beijar os filhos no quarto ao lado, deixara com a porta aberta. Desnudara-se e ficara com o rosto no travesseiro.
O jovem chegava de mansinho, tomava-a nos braços, beijava-a e, de repente, tudo se esvanecia...estava novamente sonainha no seu leito de espera, não havia ninguém espreitando a sua insônia.
Dois meses depois daquela noite o Linhares foi transferido para outro município, mudou-se rapidamente.
O garoto, tomado de surpresa, sentiu um choque violento e, sozinho no escuro do seu quarto, chorou amargo pranto de paixão.
O tempo passou. O menino de ontem, homem maduro de hoje, não casou. Vive esperando pela mulher do Linhares, cuja viuvez está próxima, segundo ouviu falar, pois o marido está desenganado.
Mirtes, na outra cidade, com os olhos marejados, respondeu à carta que chegara na véspera:
"Querido, guarde sua impaciência. Linhares está à morte. É uma questão de dias, não chega a um mês. Depois da missa de sétimo dia, quando as formalidade todas estiveram resolvidas, você pode vir me visitar...quem já esperou quinze anos, pode esperar mais uns dias. Beijos
Mirtes"
Recebeu a carta com carinho, beijou o papel e foi dormir em paz. Acordou, porém, na eternidade.