Ele foi se chegando aos poucos. Zico e Menina foram dos primeiros a vê-lo. Os meninos brincavam perto do galinheiro quando perceberam que alguma coisa rajada estava se movimentando por entre os arbustos. Eles pensaram que fosse uma raposa. Menina, para se fazer de valente diante do irmão, falou bem alto pra que a suposta raposa pudesse ouvi-la:
_ Hei! Nós somos os guardas das galinhas da vovó! Não adianta vir aqui. O Zico tem uma espingarda!
Ao ouvi-la, o menino ajeitou nas costas a espingarda de madeira que o tio La Fuente havia feito pra ele e, orgulhoso, sugeriu:
_ Moço! Vamos lá mostrar pra essa raposa que eu tenho uma espingarda.
_ Então vamos! Raposa não come gente mesmo. O tio Antônio falou. Vamos cercar as moitas. Eu vou daquele lado e você fica aqui esperando. Não esqueça de apontar a arma pra ela. Se ela aparecer, você atira.
_ Mas como é que eu atiro? - quis saber Zico, cuja arma não fazia nenhum rumor.
_ Você faz barulho com a boca, ora! Você olha bem na cabeça dela, aponta, depois faz: Pô! Pô! Ela vai ter muito medo.
_ Vai doer? - perguntou o preocupado garoto.
_ Acho que não! Quando eu atirei na Maria ela não chorou. Então não vai doer na raposa.
Zico ficou parado ouvindo a irmã e depois perguntou:
_ Moço! Por que você atirou na Maria?
_ Porque quando ela penteia os meus cabelos, ela puxa demais. Agora eu não atiro mais, eu só belisco. Vamos lá, procurar a raposa...
_ Tá bom.
Menina contornou as moitas que, na verdade, eram plantações de alfavaca e capim-santo. Usando um cabo de vassoura, Menina cutucava as moitas. Depois de algumas tentativas, de dentro da moita de alfavaca, um gato saiu correndo em direção ao rio. Menina e o irmão ficaram parados olhando naquela direção. Eles nunca tinham visto um bichano tão grande e gordo como aquele. A reação deles foi seguir os passos do gato. Os dois foram conversando pela estradinha que levava à horta onde a avó trabalhava. Ao avistá-la correram pra ela. Zico foi o primeiro a falar.
_ Vó! A senhora viu ele?
_ Ele quem, meu filho?
_Um gato redondo que tava lá perto de nossa casa.
_ Não, Zico! Sua avó não o viu, hoje.
Ao ouvir isso, Menina ficou animada e perguntou:
_ A senhora conhece ele, vovó? O “nosso” gato?
_ Conheço sim. Aquele é um gato do mato. Criado livre. Um caçador. Ele não pode ser de ninguém, está acostumado a viver só. Não pode ser de criança.
Menina protestou:
_ Pode ser de criança sim! Ele tava lá perto da gente porque queria brincar. Ele só ficou assustado porque eu cutuquei a moita. Nós pensamos que era uma raposa. Mas aí ele foi embora.
_ Se ele gostou de vocês, ele vai voltar.
_ A senhora o vê todos os dias, hein vovó? Pega ele pra gente. Diz pra ele ficar nosso amigo, faz isso vovó. - pediu Zico. Ele achava que as coisas podiam ser resolvidas da maneira mais simples possível. Siá Doninha puxou o pano branco que portava sempre ao ombro e enxugou a testa. Depois olhou docemente para o neto e falou:
_ Aquele é um gato esperto. Um caçador. Eu o vejo muitas vezes passando por aqui, levando na boca suas presas. Cada dia é uma caça diferente. Gato bom, não precisa de ninguém pra dar comida pra ele.
Zico e a irmã ouviram em silêncio o que a avó dizia. Agora mesmo é que eles não podiam prescindir daquele gato. Tinham de ficar amigos dele. Um gato que caçava, era demais! Menina ficou ansiosa e olhou em volta da horta, na esperança de vê-lo. Andou mais um pouco e chamou Zico para ir até as pedreiras, perto de onde estava a avó. Ao chegarem lá, viram que o chão estava cheio de penas e ossos e ficaram animados. De onde estavam, gritaram pra Siá Doninha:
_ Vovó! Vovó! Nós achamos as penas do passarinho que o gato comeu.
A mulher ouviu a neta e ordenou que ela saísse dali imediatamente.
_ Saia já daí! Pode haver cascavel nessa pedreira. O passarinho pode ter sido atraído por ela. Chama o seu irmão, venha logo.
Segurando o irmão pela mão, ela correu até onde estava a avó e perguntou:
_ Vovó! A senhora pode parar de fazer isto que está fazendo?
_ E quem é que vai fazer isto, você? O que é que você quer comigo?
_ Faz uma arapuca pra mim - respondeu ela.
_ O que você vai fazer com uma arapuca?
_ A gente pode pegar o gato e ficar com ele.
_ Arapuca não serve para pegar gatos. Se você quer aquele gato, vai ter de ser muito paciente. Se ele já se aproximou e se deixou ver, vocês devem esperar que ele volte.
O resto do dia os garotos esperaram que o gato aparecesse, mas isto não aconteceu. Nos dias que se seguiram, todos na casa tiveram oportunidade de vê-lo. Teve até quem o visse em companhia de outro gato. De alguma maneira ele se deixava ver e depois desaparecia no mato. Todas as manhãs, Zico e Menina sentavam-se na varanda na esperança de vê-lo. Às vezes eles tinham a sensação de que estavam sendo observados. Isto foi confirmado por Siá Doninha que disse haver visto não um, mas dois gatos escondidos nos arbustos a observarem as crianças enquanto elas brincavam. Depois disso, ela tomou a decisão de ajudar os meninos e os gatos. Começou por deixar pequenos pedaços de carne nos lugares onde eles ficavam pra observar as crianças. Quando passava por eles, chamava-os de “bichanos”, ensinando também os netos a fazerem o mesmo. E foi desta maneira que os gatos se aproximaram. Primeiro da casa e depois dos garotos. O gato gordo foi o primeiro que veio até eles. Chegou e parou a certa distância de Menina. Ela continuou sentada onde estava. Ensaiou algumas palavras de carinho, pra que ele se acostumasse com sua voz.
_ Oi, bichano! Você é muito bonito, não precisa ficar com medo da gente, tá bom?
O gato a olhava firme, como que compreendendo o que ela dizia. Logo depois olhava para Zico, parecia que estava estudando um e outro para fazer sua opção. Em seguida, como se estivesse em dúvida afastou-se das crianças e embrenhou-se na mata. Os garotos se puseram de pé e começaram a chamá-lo de volta.
_ Bichano! Bichano! Volte, a gente gosta de você.
Mas o gato só voltou na manhã seguinte, na hora do café. Foi Maria quem os viu pela janela da cozinha. Ele veio acompanhado. O gato menor e mais magro vinha logo atrás. Zico, ao vê-los, gritou:
_ Um é meu! Um é meu!
Os irmãos saíram pra varanda da casa para recepcionar os bichanos. Como no dia anterior, o gato parou diante deles e sentou-se. Com um miado chamou pra perto dele o outro gato que, obediente, veio sentar-se ao lado dele. Menina falou com ele.
_ Oi gato! Esse outro aí é o seu irmão caçula? Vocês não têm donos?
Antônio, o tio, soltou uma risada ao ouvi-la. Divertido, falou que conhecia aqueles gatos, eles viviam distante dali, numa tapera abandonada, no caminho pra Aragarças. Provavelmente os donos haviam se mudado e deixado os pobrezinhos sozinhos. Menina aproximou-se do gato e tentou fazer-lhe um carinho. Ele soltou um miado de advertência, mas continuou onde estava. Ela falou mansamente com ele e de novo tentou tocá-lo. Desconfiado, mas, decidido a fazer amizade, ele permitiu que Menina alisasse suas costas e suas orelhas. Antônio também descobriu que o outro gato era na verdade, uma gata, que por ser menor e mais leve, foi escolhida por Zico. Daí a duas horas os bichanos já estavam íntimos da casa. Ninguém pensou em dar nomes para eles, seriam apenas “gato” e “gata”.
Como dissera Siá Doninha, o gato era um grande caçador. Não havia um só dia que ele deixasse de trazer perdizes, ratos, preás e até calangos pra dentro de casa. Este era o grande problema, ele trazia as presas pra dentro de casa. Parecia querer mostrar pra todos o quanto ele era bom naquilo que fazia. Em algumas ocasiões caçava duas vezes ao dia e, cada vez deixava a caça num lugar diferente. O trabalho de Maria aumentara com aquela mania do gato. Agora ela devia varrer todos os dias, por baixo das camas, atrás dos armários e cantoneiras, enfim, varrer sempre, pois esses eram os lugares preferidos pelo gato para armazenagem da caça. Um dia, antes de sair pra a escola, Liviva foi pegar água no filtro de barro, na sala de jantar. Quando olhou pra baixo da cantoneira, não conteve um grito que assustou quem já estava acordado e despertou quem ainda dormia. Sob o móvel jazia um gordo preá, sangrando. Os gritos continuaram, parecia que ela havia visto um ser de outro mundo.
_ Não quero dessa água! Está suja deste bicho rasgado! Foi esse gato nojento, ele fez de propósito...
Menina acordou com os gritos da irmã e tentou acalmá-la.
_ Não é um bicho, Liviva. É só um preá que o “Paizinho” pegou.
Liviva olhou pra irmã e zangada perguntou:
_ Que bobagem é essa de “Paizinho”?
_ O meu gato me chama de Paizinho. Ele acha que eu sou o pai dele, é por isso que ele me chama assim. Porque ele sabe que o Zico me chama de “moço”, aí ele pensa que eu sou menino de verdade.
_ Você é muito boba! É igual a esse gato fedido. E ele não pensa nada, nem fala. Ele só assusta a gente com essas porcarias que traz pra casa.
_ Meu gato fala sim! E ele não é fedido. Você é que é. Você é uma... Uma... Menina não concluiu o que ia dizer por que a avó entrou na discussão e ameaçou-as.
_ Vamos parar com essa briga ou vai ter pra todas duas.
Depois que a irmã saiu pra escola, Menina ficou pensando no que ela dissera sobre o seu gato. Definitivamente ele não era fedido. Mas, e se outras pessoas achassem? Nesse caso era preciso fazer alguma coisa. Assim pensando foi procurar a bondosa Maria.
_ Maria, você me ajuda dar banho no Paizinho?
_ Ocê tá maluca Menina? Gato num si banha. Eles só si alambi todo e já tá banhado. Num percisa de ninguém lavá gato não.
Menina ficou ouvindo a empregada e ainda não convencida do que ela dissera, perguntou:
_ Gato fede, Maria? O meu gato é fedorento?
_ Minina, eu num fico pur aí cherando gato não, mais que eles tem um mijo danado de fidido, isso lá eles tem. Inda bein qui us gato doceis faiz tudo lá no matu, mermo.
_ Eu vou perguntar pra minha mãe, você não sabe de nada. Ninguém fica sem tomar banho.
Menina passou pela sala onde Zico tomava o café da manhã e o chamou.
_ Moço, a gente precisa banhar os gatos. A Liviva disse que o Paizinho é fedorento. Você já sentiu algum cheiro nele, já?
Zico levantou no ar a colher suja de mingau de aveia. Segurando-a como se fosse a batuta de um maestro, respondeu à irmã:
_ Não! Os gatos não são fedorentos. A minha gata não é...
_ Então vamos procurar a mamãe. Acaba logo de comer esse mingau.
_ Os dois garotos encontraram a mãe fazendo as unhas. Menina foi logo perguntando se gato tomava banho. Sem desviar os olhos do que fazia, Josefa disse que sim.
_ Gatos tomam banho, mas é muito difícil.
Menina franziu as sobrancelhas sem entender porque era difícil e insistiu.
_ Difícil, por que mamãe?
_Porque eles não gostam de água.
_Ah! Só por isso? Os nossos gatos gostam. Eles bebem água todo dia. A senhora ajuda a gente banhar os gatos?
_ Esqueça. Eu estou ocupada. Vão brincar lá fora.
O temperamento pouco participativo da mãe era motivo de censura pra Menina. Em sua cabecinha havia uma interrogação constante: por que gente grande não brinca? Por que estão sempre ocupados? Por que não conversam com crianças? Fora o tio Antônio, quase ninguém conversava com ela ou com o irmão. “Ocupados”, era a palavra que mais usavam; como acabara de fazer Josefa. Isso obrigava Menina, a agir por conta própria. Chamando Zico para fora do quarto, foram para o quintal e lá comunicou sua decisão de levar os gatos pra tomarem banho no rio. Embora pequeno, o menino lembrou a ela que eles nunca tinham ido ao rio, desacompanhados. Voluntariosa, ela respondeu:
_Não faz mal. Nós não vamos tomar banho, só os gatos. Você tá com medo de ir, é?
_Eu tô. No rio tem boiúna, tem Negro d’água...
_Isto é bobagem da vovó, ela faz medo pra gente, pra ninguém ir sozinho lá. Nós vamos juntos, não vai aparecer nada disso. Você vai ver. Pegue a sua gata que eu pego o Paizinho. Vamos pegar também a saboneteira da mamãe.
Daí a pouco estavam a caminho do rio. Menina desviou-se da horta para que a avó não os visse. Abraçados aos gatos chegaram à margem do rio Araguaia, que passava majestoso e calmo. Para encorajar o irmão, Menina disse:
_Tá vendo? Não tem nada daquilo que você falou.
Na verdade, ela nem quis dizer os nomes dos monstros porque temia que eles a escutassem e saíssem do fundo do rio. Depois, enchendo-se de coragem prosseguiu:
_ Eu vou banhar o meu gato pra ninguém mais chamá-lo de fedido. Vamos ficar aqui na beirinha do rio. Fica perto de mim, tá bom?
Zico desceu com ela até a margem. Com a água na altura das canelas, apressou-se e jogou a gatinha no rio. Essa, ao sentir-se molhada tomou-se de pavor e nadou desajeitada para a margem de onde correndo, desapareceu no mato. Ao ver a reação da gatinha, Menina achou que devia ser mais precavida e segurou paizinho pra que ele não fugisse. E, para assegura-se disso, pediu a ajuda do irmão.
_Moço, eu não vou deixar o Paizinho ir embora sem tomar banho. Eu vou sentar dentro da água abraçada assim com ele. Quando eu estiver sentada, você passa o sabonete nele, tá bom?
Com o sabonete na mão, Zico aproximou-se da irmã, para ajudá-la. O gato parecia desconfiado. Olhava para todos os lados como que pedindo socorro. Menina não deu importância e escolheu um lugar um pouco mais fundo onde pudesse sentar-se com segurança. A água era tão clara que os peixinhos podiam ser vistos nadando em torno das pernas dos dois. Sentindo-se encorajada pela limpidez das águas e também pelo calor que fazia, Menina abraçou-se ainda mais ao gato e sentou-se de uma vez. A reação do bichano foi desesperada. No primeiro momento ela não sentiu as unhas dele porque, como sempre, usava calças de algodão grosso e camisa de mangas compridas. A força do gato, contudo, era maior do que a dela. O gato conseguiu liberar as patas traseiras e começou unhá-la nos braços e no lado direito da barriga. A dor a fez gritar e gritando falou com o irmão:
_Ai! Ai! Ele tá me machucando. Ajuda-me Zico! Tira ele daqui.
_Como é que eu ajudo? O que eu faço moço?
_Bate nele! Bate nele!
O gato enganchara as unhas da pata direita no suspensório dela. Ele se debatia loucamente e cada vez arranhava mais as pernas e os braços de Menina que conseguiu levantar-se da água. O gato, porém, ainda estava agarrado à sua roupa. Zico, ao ver o sangue nas pernas da irmã começou a gritar e chorar ao mesmo tempo. Ela procurava desvencilhar-se do gato, mas ele era muito pesado e ainda por cima se debatia violentamente. Num esforço maior que suas forças, Menina curvou o corpo para frente, assim o animal ficou com as patas traseiras apoiadas no chão, o que aliviou o peso dele, fazendo com que ela conseguisse soltar as unhas do bichano, do suspensório. Ao ver-se livre, o gato correu para o mato, como fizera sua companheira. Os gritos das crianças foram ouvidos por Siá Doninha que veio correndo ver o que estava acontecendo. Ao encontrá-los chorando, assustada perguntou:
_ Como é que vocês vieram parar aqui? O que aconteceu com vocês?
Chorando, o garoto respondeu:
_O moço tá com as pernas todas cortadas. Foi o nosso gato.
Siá Doninha tirou a camisa de Menina e viu que também a barriga e os braços dela estavam muito arranhados. Pegou a garota pela mão e a levou para dentro do rio, para lavar as feridas. Enquanto a lavava, perguntou novamente o que eles estavam fazendo ali na beira do rio.
_O que vocês estavam fazendo aqui? E o que fizeram com o gato para estar assim, toda unhada?
Soluçando, a garota respondeu:
_Eu queria dar banho nele, aí ele ficou agarrado na minha roupa...
_Como vieram parar aqui? Eu não vi vocês passarem. Vou levá-los pra casa, você vai ter de ser medicada. Vai tomar injeção para evitar infecção. Eu nunca vi uma criatura mais atentada do que você, Menina. Como é possível aprontar uma arte atrás da outra. Os dois vão ficar de castigo por muito tempo. Onde já se viu! Dar banho no gato! Só na cabeça de uma capeta como você ocorre essas idéias.
Sem parar de chorar, as crianças acompanharam a avó até o casarão. O choro alto chamou a atenção de Maria e da mãe deles. Ao ver a filha naquela situação, Josefa quis saber o que acontecera. Siá Doninha contou a façanha dos dois, no rio.
_Essa tonta foi se meter no rio pra dar banho no gato. É claro que o gato se rebelou e o resultado é este aí. Você tem de dar um jeito nesta sua filha, Josefa! O pior de tudo é que ela sempre carrega o irmão pequeno com ela.
Siá Doninha não tinha a menor simpatia por Menina. Achava-a rebelde, diferente das irmãs, por isso não tolerava as artes dela. Josefa ouviu o que a mãe disse, mas aquele não era momento para sermões. Pegou a filha e levou-a para o quarto. Após tirar-lhe a roupa molhada, limpou os arranhões de seu corpo e desinfetou-os com mercúrio cromo. Felizmente, os ferimentos eram todos superficiais. Não foi necessário levá-la ao hospital. Talvez pelo remorso por não ter dado atenção à filha, no momento que ela foi procurá-la, Josefa passou o resto da manhã cuidando de Menina e lhe contando estórias. Zico ficou o tempo todo ao lado da irmã. Tudo passado, Josefa perguntou-lhes por que haviam se metido naquela confusão. Menina respondeu:
_A senhora não quis ajudar a gente, a Maria também não. Eu precisava lavar o Paizinho porque a Liviva disse que ele é fedido, eu não quero um gato fedido.
Josefa tentou justificar o que a outra filha dissera.
_Ela só falou aquilo porque estava com raiva. Aquele gato tem de acabar com a mania de trazer os bichos que ele caça pra dentro de casa.
_Ele traz porque a gatinha não sabe caçar e ela precisa comer coisas de gatos. Ela tá muito magra.
_Nossa! Comilona como é aquela gata, ela não engorda de ruim que é - respondeu Josefa.
_ Minha gata não é ruim. Ninguém pode falar dela.
_Tá bom, Zico. Agora me digam. Como é que vocês se meteram lá na beira do rio, se a avó de vocês já havia falado dos monstros e...
_Aquela Boiúna e aquele Negro D’água? - interrompeu Menina - A gente sabe que é invenção da vovó. Nós fomos lá e não vimos ninguém. Nenhum deles tava lá..
Para incutir algum temor nos filhos, pra que não fossem sozinhos ao rio, ela manteve a estória dos monstros.
_Eu, se fosse você, não ficaria tão segura assim. O Negro D’água quase pegou o seu tio Francisco, quando ele foi tomar banho sozinho. E o pai de vocês já viu a Boiúna virar a canoa de garimpeiros e engolir um deles...
Zico, como sempre, quando se admirava de alguma coisa, arregalou os olhos ao ouvir o que a mãe dissera. Menina, ao contrário dele, descobrira que, quando a mãe não dizia a verdade, os olhos dela mudavam de cor, como naquele momento. Ela precisava dizer isto ao irmão. As pessoas grandes pensam que podem mentir para uma criança, eternamente; mas se enganam. Olhando depois para os ferimentos, ela se deu conta de que o gato sumira no mato juntamente com a gata. Sentindo saudades do bichano, falou com a mãe:
_Nossos gatos foram embora pro mato. Não voltam nunca mais.
_Duvido! - respondeu ela. - Daqui a pouco eles vão estar aí de novo. Só espero que você tenha aprendido a lição e não se meta mais com eles. Quando eu disser que não é pra fazer uma coisa, é pra não fazer mesmo, entendeu?
Enquanto a mãe falava, Menina já estava pensando em como castigar o gato. Ele também tinha que entender tudo o que ela dizia e, principalmente, tinha de obedecê-la.
Como que lendo os pensamentos da irmã, Zico perguntou a ela.
_Moço! O que você vai fazer quando o Paizinho voltar?
_Se ele voltar, eu vou botar o rabo dele na lamparina, vou fazer um monte de coisas...
_Que coisas? - quis saber Josefa.
_Coisas, ora! Pra ele aprender a...
_ Você não se atreva! Não vai fazer coisa nenhuma. Se você fizer qualquer bobagem, vai se ver comigo. Quantas vezes eu terei de dizer que os bichos não são como gente? Se eu vir você com uma lamparina perto daquele pobre gato, você vai levar uma surra daquelas.
Depois do almoço, Josefa armou redes na varanda e os pequenos foram brincar lá. Por volta das três da tarde Menina viu o gato esgueirando-se por entre as moitas. Olhando para o irmão, falou quase num sussurro:
_Moço! O Paizinho está atrás das moitas, olhando pra gente. Faz de conta que ele não tá lá. Vamos cantar a cantiga do lobo mau porque ele não gosta. Assim ele vai embora...
_Mas eu estou com vontade de brincar com ele...
_ Eu também quero. Mas ele tem que aprender que não pode me arranhar. Hoje ele não entra na minha casa, eu não deixo.
_Você vai deixá-los dormindo na chuva? - preocupou-se o garoto.
_ Num tá chovendo nada. Você está com desculpas pra que eles voltem. A gata até que pode... Mas, ela não veio. Vai ver, se perdeu no rio.
Menina estava sendo cruel com o irmão só porque ele demonstrara simpatia pelo gato Paizinho. Com os olhos lacrimejando o garoto perguntou:
_Minha gata se perdeu de verdade, moço?
_Claro que não, eu só tô brincando. Gato não se perde, ele volta quando quer.
Em se tratando de Zico, ela não sustentava por muito tempo o temperamento rebelde. Depois, procurando tranqüilizá-lo, disse:
_Amanhã eu falo com o Paizinho, mas só amanhã. Primeiro, eu vou pedir uma tesoura para cortar as unhas dele.
_ Ninguém deixa a gente pegar em tesoura - lembrou Zico.
_ Eu peço pra o tio Antônio, ele corta.
No resto do dia Menina ignorou o gato. Ele também estava arredio. Parecia saber que tinha feito algo de errado. Não se aproximou muito da casa. A gata não deu sinal de vida. Devia estar ainda assustada. À noite, todos quiseram ver os arranhões que Menina sofrera. Ela sentiu-se importante por ser objeto das atenções dos adultos. Exibia orgulhosa a pintura vermelha de mercúrio cromo, que a mãe de tempo em tempo retocava, até que Liviva a comparou com um índio. Ela nunca havia visto um índio, mas não gostou. Índio devia ser horrível. Definitivamente, ela não queria parecer com um.
_Eu não sou parecida com índio. É você que parece, sua boba.
Até Latide que era sempre calada opinou:
_Ela não é índio. Ela é picadinho de gato. Tá toda cortada como as caças que aquele gato idiota traz pra casa.
Quem estava na sala caiu na gargalhada. Menina sentiu-se desprestigiada, mas, pensou consigo mesma, depois eu me vingo dela.
Os arranhões secaram e se não fosse pelas marcas leves que ainda apareciam, Menina nem pensaria mais no ocorrido. O gato foi perdoado e voltou pra casa trazendo uma perdiz, que foi deixada sob a cama de Maria. Para desespero da moça, ele passou a “estocar” as caças, sempre no quarto dela. A gata voltou no terceiro dia, após a fuga. Zico já dizia que o Negro D’água a tinha comido.
Paizinho mudou o comportamento. Passava horas ao lado de Menina, como se quisesse compensá-la pelos ferimentos que lhe causara. Ele obedecia todas as ordens que recebia das crianças. Eles se divertiam com os progressos do gato que, ao ouvir a frase “Paizinho, Paizinho! Vai caçar preá”, saia em desabalada carreira em direção do mato, como se realmente entendesse o que a garota havia dito. Diante disso, ela começou dizer pra Zico, que o gato conversava com ela. O garoto era ingênuo, mas não era tolo, por isso duvidava.
_Eu nunca ouvi esse gato falar nada. Por que só você ouve?
Surpresa com a justa pergunta do garoto, Menina não se rendeu, pelo contrário, insistiu no assunto.
_Porque ele não conversa como eu e você. Você não vê quando ele fica parado me olhando nos olhos? Pois é! É assim que ele fala. Com os olhos. Eu sei tudo o que ele tá dizendo. Não é todo mundo que pode falar com ele. Mas eu posso.
_Então por que você fala com a boca, como gente, quando fala com ele?
_Por que ele me contou que entende tudo o que nós falamos. Ele só não pode falar. E também, assim você pode escutar e entender o que eu falo com ele.
Ainda duvidando, Zico continuou:
_Não sei por que a minha gata não fala comigo, pelos olhos, como o seu gato...
_Mas eu sei! Eu perguntei pro Paizinho por que a gata não fala com você. Sabe o que ele disse? Que ela é muda. Muda só nos olhos. Ela não tem esse poder, ela é fraca, por isso o Paizinho cuida dela.
_Ah! É por isso!
Zico pareceu convencido e também penalizado com a deficiência da gata. Pensativo, ficou sentado alisando o pescoço dela, que olhava o mundo ao seu redor, com a habitual apatia. Depois, observando o gato Paizinho no colo da irmã, comentou:
_Que bom se uma fada fizesse a minha gata ser igual ao Paizinho, aí eu podia conversar com ela...
Menina sentiu pena do irmão e propôs a ele a troca dos gatos. Olhando pra gatinha em suas pernas ele respondeu conformado.
_Não! Eu gosto da gata. O Paizinho é muito pesado, é muito redondo e...
_E... O quê? - Quis saber Menina.
_E ele arranha a gente.
_Não! Não é assim. Ele só me arranhou porque não gosta de tomar banho de gente.
Paizinho, objeto da conversa das crianças, permanecia sentado no colo de Menina, atento a tudo o que se movia à sua volta. O gato tinha um porte elegante, os pelos amarelos com rajas cinza e pretas, eram muito brilhantes. Os olhos claros e inteligentes. Um verdadeiro canal de comunicação. Naquele exato momento, ele fitava os pássaros que estavam pousados na cerca, bem como os anus, que voavam em torno de algumas vacas, logo adiante. Ele era mesmo um caçador. E com todas as qualidades do gato, Zico não aceitou a troca. Menina não sabia o que fazer para ajudá-lo. De repente, ao olhar para os olhos do gato, ela soltou um gritinho de entusiasmo.
_Já sei! Já sei! A gente não precisa trocar os gatos. Vamos correndo lá no paiol de milho pegar umas coisas. Anda logo, vamos!
_ O que você vai fazer? - indagou Zico.
_ Vamos indo que eu explico. Vai ser rápido. Vou pegar dois sacos de estopa lá no paiol. Depois a gente pega espinhos de laranjeira e um cordão pra amarrar.
Ao chegarem ao paiol ela pegou os sacos, pegou o rolo de barbante e cortou dois pedaços grandes no fio do machado que estava pendurado na parede. Interessado, o garoto falou:
_Moço o que você vai fazer com essas coisas? Pra que você quer isso?
_Você já vai ver. Vamos pegar os espinhos lá fora!
Zico não se agüentava de curiosidade. O que a irmã estaria tentando fazer com aquelas coisas? Tomara não fosse confusão. Ele sempre recordava dos conselhos dos adultos. - “Não se metam em confusão! Pois além da surra, vão ficar de castigo”. - De posse de tudo o que precisava ela retornou pra varanda, onde os gatos ficaram deitados. Então ela explicou seu plano para o irmão:
_Sabe o que vou fazer pra sua gata? Vou fazer uma operação. Assim você vai poder conversar com ela.
_Operar como? Você vai abrir a barriga dela como faz com os besouros? Eu não quero! Eu não vou deixar...
_Não é isso não! Eu só vou tirar um olho do Paizinho e botar na sua gata. Depois eu boto o olho da sua gata no Paizinho, pra não ficar um buraco. Assim, cada um deles fica com um olho que fala e um olho mudo. Entendeu? Vai ficar bom.
_Você sabe tirar olho de gato?
_Eu sei! Eu vou tirar com o espinho do pé de laranja. Aí eu tiro o olho da gata e troco com o Paizinho. Você vai ver, vai ser fácil.
_E os sacos? Pra que você quer os sacos?
_É pra botar o Paizinho em um saco e a gata no outro. Aí eu amarro, pra eles não fugirem pro mato.
_E se o Paizinho não quiser trocar de olho com a gata?
_Aí ele vai estar dentro do saco. Vai ter que deixar. Ele também gosta da gata e quer que ela converse com você.
A seguir ela tomou o gato no colo e falou com ele:
_Paizinho, você gosta muito da gata, não é? Então eu vou emprestar o seu olho pra ela. Assim ela vai poder conversar com o Zico. Não vai doer não. Eu até peguei dois espinhos bem grandes pra poder tirar logo o seu olho. Depois eu tiro o olho da gata e coloco no lugar do seu, tá bom? Então, agora entra no saco.
Praticamente vestido no saco, Paizinho deu mostras imediatas de que a brincadeira não lhe agradava. Temendo que ele escapasse, Menina prendeu a boca do saco e amarrou o suficiente pra que ela pudesse enfiar a mão. Fazendo a mesma coisa com a gata, que foi menos resistente. Pegando um dos espinhos, chamou o irmão pra assisti-la na operação. O garoto deveria ajudá-la a segurar o gato, no caso de resistência. Paizinho tentava desembaraçar-se do saco, mas a estopa prendia suas unhas, deixando-o mais nervoso. Com cuidado, Ela enfiou a mão no saco, pegou a cabeça do gato e alisou-a carinhosamente. Paizinho deixou de resistir e Menina aproveitou para passar a cabeça dele pela abertura. Satisfeita, falou:
_Paizinho, agora você abre bem o olho porque eu vou fazer a operação.
Com a proximidade do espinho o gato fechou instintivamente o olho. A garota tentou novamente e o gato começou a soltar miados altos e a agitar-se no saco. Lembrando-se dos arranhões que sofrera há pouco tempo, falou: - ainda bem que você está no saco. - Voltando à operação ordenou que ele abrisse os olhos. O gato resistia e Menina começou a impacientar-se. Os miados foram se tornando mais altos, apavorados mesmos. Nervosa, ela falou alto:
_Paizinho, você prometeu que deixava eu tirar o seu olho!
Foi aí que ela sentiu-se agarrada pelos ombros. Era sua mãe, que viera atraída pelos miados. Josefa levantou Menina, apertando forte o seu braço. A garota tentou explicar-se:
_Eu só queria trocar o olho dele, mas aí ele ficou miando por nada e...
Josefa a interrompeu, gritando com ela.
_Basta, sua peste! Eu havia dito que se você se metesse outra vez com o pobre gato eu lhe dava uma surra, não foi? Onde foi que você ouviu essa besteira de trocar olho? Você ia gostar, se alguém espetasse o seu olho?
_Eu só fiz porque a gata do Zico precisa falar com ele.
Nada convenceu Josefa. Menina levou tantas chineladas que suas pernas e nádegas ficaram pegando fogo. Zico também apanhou um pouco. Menina se mortificou por isso; afinal, o irmão não era culpado de nada. Apenas fora assistente da fracassada cirurgia.
Menina era uma criança ativa e curiosa com tudo. Sua imaginação superava em muito, os limites permitidos pra sua época. Siá Doninha costumava dizer que a neta “não era deste mundo”. O episódio da operação de Paizinho, não foi uma maldade planejada. Naquele momento ela realmente acreditava que podia trocar os olhos dos gatos.
Paizinho, após ver-se livre do saco de estopa, correu para o mato seguido pela gata. No dia seguinte, na hora do café, os dois retornaram pra casa trazendo, cada um deles, um preá. Era a primeira vez que a gatinha caçava.