“Moça, é nova aqui? Uma cerveja e uma sardinha. Um quebra-gelo”. Não é fácil, não, carregar caminhão até essas horas, trabalhar no sábado. É bom que paga extra, mas cansa demais, braços doendo. Dulcinha vai reclamar, chega cansado, cheirando a álcool, e esse cheiro de sardinha de ontem, parou no boteco, amigos, samba, e eu? Você, Dulcinha, é meu cansaço, minha cerveja, minha sardinha, meu samba, é minha amiga, morena linda! Você é a inveja do pessoal, eu sou João da Dulcinha...João dos seus olhos negros, do seu rosto magro, do seu cabelo alisado, do seu corpo mulato, da sua boca, sou João da sua língua, minha menina. O que faz hora extra no sábado, cheio de dores, que compra vestido novo, que ajuda na pensão, que ama, que faz samba para você dançar, que passeia de braços dados, João orgulhoso da sua beleza, minha santa! O que dividia o lanche roubado, na escola, lembra? O do primeiro beijo, boca fechada, medrosa, que ensinou e aprendeu coisas do amor com você.
“Moça, como é seu nome? Cida, cerveja e quebra-gelo, outra sardinha”. Bonita essa moça nova, prazer: João, é isso mesmo, João da Dulcinha, você me conhece? Ouviu falar. Já sabe do samba novo, escutou na quadra, e dançou. Fiz para a Dulcinha, pensando nos seus quadris, no rebolado, na sandália nova que comprei, nas suas coxas brilhantes de suor, nos olhares da moçada, no meu olhar, ela é minha e só dança comigo. Foi no dia da briga, cheguei tarde, cabeça cheia de tudo, ela ficou furiosa, esperava para ir ao samba, chegou até a me ameaçar com a tesoura, tesoura que eu comprei para suas costuras, é que ela sentiu o perfume da Dinha. Como pode? Perfume misturado com pinga, cerveja e sardinha de ontem. Deu o que fazer, fiz o samba e as pazes com ela, coisas de amor, eu acho. Fica linda, quando está zangada, o rosto parece que vai explodir de tanta beleza, igual quando a gente faz amor...Ai, Dulcinha.
“Cida, um quebra-gelo”. Conheço você, Cida. Trabalhei na padaria, na copa, você bebia cerveja por lá, lembrou? E pegava um maço de cigarros, de manhã, quando ia trabalhar. Faz tempo, você parece mais nova. Dulcinha tem vinte e oito, eu trinta. Pareço ter vinte e cinco? Bondade. Ela parece ter vinte, sempre moça, e olha que não usa cosmético. Perfume? Usa. Semana passada dei um de presente, estrangeiro, não sei falar o nome, custou todas as horas extras da semana, comprei do coreano. Ela gostou, mas tambem não soube falar o nome. Prefiro o cheiro dela, cheiro de mulher, cheiro de mulata, não tem flor nem perfume igual. Quanto mais me abraça, aperta e beija, mais seu cheiro entra em mim. Semana que vem é nosso aniversário, de namoro, todo ano nós comemoramos na pizzaria, doze anos de namoro, vinte de amizade. É sim, uma vida. Ela vai ter uma surpresa esse ano, não vou comprar presente, vou pedir em casamento! Quero filhos, sim, quantos ela quiser, gosto de criança, Cida. Você casou? Não? Gosta de criança? Tem uma? Dulcinha tambem tem, menino, garoto bonito, sacudido, ajudo a cuidar do coitado. Foi quando ela se engraçou com o filho do patrão, moço de dinheiro, estudado, essa gente que promete e não cumpre. Eu? Fiquei um ano longe dela, no garimpo, enganado tambem, um ano sofrido, de pouco dinheiro, muita ilusão e doença. Quando consegui voltar, dei de cara com o moleque. Ela querendo tomar veneno, o filho do patrão sumido por esse mundo, e o João aqui amando. Registrei, tá no meu nome, não gosto de filho sem pai, registro com pai ignorado, essas coisas que não trazem respeito.
“Cida, um quebra-gelo, põe limão”. Não carrego dor, nem minha nem dos outros, vou jogando fora, no caminho de todo dia. Faço assim: volto do serviço andando, devagar, pensando, na primeira esquina jogo uma dor fora, na seguinte jogo um problema, na próxima largo uma dívida. Só assim é que dá para continuar levando a vida, continuar amando. Coração? O amor está no coração, sim, mas se não tiver cabeça limpa o coração parece que fica preso, apertado, pequeno. E não cabe amor grande em coração pequeno. Onde aprendi? Vivendo. Por isso é que Dulcinha fala que tenho o maior coração do mundo. Tenho mesmo, é para guardar nosso amor, menina.
“Cida, pega outra sardinha. E uma gelada”. Bonita essa moça nova. Está cansada? Seu serviço cansa demais. Gosta? As gorjetas compensam. Nem almocei hoje, não sei de onde apareceu tanta carga. Carreguei tudo, o patrão não pode reclamar. Nada de falar de trabalho, é meu fim de semana. Sardinha salgada. Essa pinga tá misturada, cerveja sem gelo. Quanto é? Manda o Toninho marcar, pagamento só pra semana.
Tirando o avental, Cida? Sai às oito? O que vai fazer? Não, pra casa não. Pra quadra? Tá linda nesse jeans, não precisa trocar de roupa. Tou com roupa de serviço .Vamos, tem um barzinho novo, cerveja bem gelada, pinga boa, sardinha de hoje. Depois canto um samba que acabei de fazer pra você, minha lindinha...